segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

"Armazém de músicas" na web

Texto publicado no jornal "Folha de São Paulo" de 28/dezembro/2009, no caderno "The New York Times"

Acervos musicais podem viver em jukeboxes na web
por Brad Stone e Claire Cain Miller

SAN FRANCISCO - Com seu recente acordo para comprar o Lala, serviço de música na web, a Apple pode estar indicando o caminho para o futuro da música.

Nesse futuro, os acervos de música digital nos computadores pessoais poderão se somar a discos em vinil, fitas cassete e CDs no sótão empoeirado dos formatos musicais em extinção.

Os fãs de música usarão seus computadores e "smartphones" sempre on-line para visitar uma vasta jukebox na internet, onde cantos gregorianos, canções de Shakira e os vários séculos de música entre eles estarão instantaneamente disponíveis.

Para um pequeno, mas crescente, grupo de amantes da música, essa visão não é tão absurda. O consultor Josh Newman, 30, paga US$ 16 por mês pelo Spotify, um serviço de música por assinatura que está disponível oficialmente apenas na Europa e que permite que se escute ilimitadamente sua biblioteca musical on-line.

Desde que o Spotify introduziu um aplicativo para o iPhone, há alguns meses, Newman começou a escutar o serviço quase exclusivamente, embora ele tenha 35 mil canções em discos rígidos em casa. "A ironia é que eu nem sequer uso aquela música", disse Newman. "Sou um pouco preguiçoso. Se há um artista que eu quero verificar, prefiro escutar no Spotify do que ter de vasculhar minha coleção."

A ideia de uma jukebox ilimitada na web existe há algum tempo, mas agora está consumindo a atenção dos executivos da música. As gravadoras, que tinham US$ 40 bilhões em vendas anuais dez anos atrás, hoje faturam a metade disso.

Mais terrivelmente, o crescimento da receita de downloads digitais, que ainda é apenas 20% das vendas totais, está diminuindo.

O acordo pela pouco conhecida Lala foi pequeno para a Apple; o preço passou de US$ 80 milhões, segundo uma pessoa próxima ao negócio. Mas está gerando muito interesse pelo que pode dizer sobre os planos da Apple para a música "streaming" (em fluxo contínuo).

Com uma receita anual estimada de US$ 2 bilhões do iTunes, a Apple está em condições de orientar os consumidores pelo processo de armazenar suas coleções de música em servidores da web e executá-las de novas maneiras. Ela também pode integrar esse serviço de música ao iPhone, o iPod Touch e outros aparelhos.

Os usuários não precisariam mais sincronizar suas coleções de música entre os equipamentos, não teriam de se preocupar em ficar sem espaço de armazenagem no telefone e poderiam compartilhar playlists com facilidade.

A Apple também poderia pedir que os usuários paguem uma assinatura mensal pelo acesso a um catálogo de músicas do tipo Spotify, baseado na web. Dois executivos da indústria musical disseram que a Apple considera há anos um serviço de assinatura desse tipo.

David Pakman, sócio da firma de investimentos Venrock, disse que a Apple "poderia acelerar mais que qualquer outra companhia a passagem para a mídia na web". A aquisição da Lala, ele disse, "nos diz que já está fazendo isso".

Outros avanços recentes sugerem uma mudança iminente em uma abordagem da música na qual esta era vista como algo a ser possuído, fosse em formatos físicos ou digitais em seus computadores.

Em agosto, a Spotify lançou seu aplicativo para o iPhone, que armazena cópias temporárias de canções e playlists no telefone, de modo que a música continue tocando mesmo quando o aparelho sai da rede. O executivo-chefe da Spotify, Daniel Ek, disse que o número de assinantes saltou desde a introdução do aplicativo, mas não deu números exatos.

As novatas de tecnologia esperavam há anos que a vasta seleção e a conveniência da música baseada na web atraísse as pessoas a gastar alguns dólares por mês em assinaturas. Esse negócio ainda não se concretizou. Mas, com a atração adicional de que agora esses serviços podem ser acessados em "smartphones", muitos estão reavaliando o modelo.

"Não acho que os consumidores se importam com onde a música está arquivada, desde que eles possam obtê-la quando quiserem", disse David Hyman, executivo-chefe da Mog, que recentemente lançou o serviço de assinatura Mog All Access.

Bobby Mohr, fã de música que acumulou 100 gigabytes de canções, mantém algumas delas em serviços de armazenagem gratuitos na web, de modo que pode baixar as faixas quando viaja e "queimá-las" em CDs para o carro.

Mas Mohr, 23, hesita em abandonar a ideia de possuir a música. "Eu gosto de ter discos rígidos externos que são as arcas do tesouro da minha música", ele diz.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Pirataria versus pirataria

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 14/dezembro/2009, caderno "Dinheiro"

Pirataria on-line derruba venda nos camelôs
por Verena Fornetti, da Redação

Facilidade para baixar músicas de forma ilegal na web reduz oferta de cópias de CDs nos ambulantes, que agora priorizam arquivos de MP3

Mercado de DVDs falsos foi menos afetado pela internet devido à baixa penetração da banda larga no país, diz associação antipirataria

Nos camelôs na região central de São Paulo, um CD com cópias ilegais de músicas custa R$ 3, dois saem por R$ 5. As opções, porém, são limitadas. Tem Victor & Leo, com o álbum "Borboletas", e Mariah Carey, com o hit de novela "I Want to Know What Love Is". Mas nada de Pitty e NX Zero, que também estão entre os artistas mais tocados em rádios do país.

O motivo é a concorrência da pirataria na internet. De acordo com especialistas em propriedade intelectual, os consumidores preferem copiar arquivos da rede diretamente para os tocadores de MP3, sem passar mais pelos CDs.

"A mercadoria está escassa aqui. O pessoal não procura mais, já baixa tudo pela internet. Logo, logo vai acontecer o mesmo com os CDs de jogos. As vendas já caíram bastante", diz um vendedor de jogos eletrônicos piratas da rua Santa Ifigênia, no centro de São Paulo.

Em sete quadras, a Folha não encontrou nenhuma banca com cópias de álbuns de artistas.
Só havia CDs com canções gravadas em formato MP3, reunidas de acordo com o estilo musical. "Esse aqui é muito melhor que CD normal. Tem mais de cem músicas", propagandeava o vendedor.

Na região da rua 25 de março, no centro de São Paulo, só dois camelôs vendiam CDs gravados com músicas em formato tradicional nas seis quadras percorridas pela reportagem.
De acordo com a APCM (Associação Antipirataria de Cinema e Música), o número de CDs gravados apreendidos no país caiu 74% desde 2006, no período de janeiro a setembro.

"Estamos encontrando menos CDs nas ruas porque há uma quantidade menor sendo vendida", afirma Antonio Borges Filho, diretor-executivo da associação.

CDs x DVDs

A Associação Brasileira de Produtores de Disco destaca que a diminuição da pirataria de CDs gravados não significa queda no número de cópias ilegais de músicas. Paulo Rosa, presidente da entidade, afirma que o mercado fonográfico é o mais exposto à pirataria digital porque o arquivo de música pode ser copiado rapidamente na internet, ao contrário do que ocorre com filmes, jogos e programas de computador.

Borges destaca que o mercado de DVDs piratas é menos afetado pela concorrência da internet que o de CDs. "A banda larga só agora se difunde no Brasil. A demora ainda é muito grande para baixar um filme ou um desenho", diz Borges.

Ele diz que, com a disseminação da internet rápida, a tendência é que haja migração também no mercado audiovisual. Segundo dados do IBGE, o acesso à banda larga duplicou no país entre 2005 e 2008. Segundo o instituto, 80% da população brasileira que acessou a internet em domicílio no ano passado usou banda larga.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Em Sampa, preservando o melhor da MPB...

Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo" de 26/novembro/2009, caderno "Metrópole"

Esquina mais famosa de SP reencontra a MPB
por Ana Bizzotto

Palestras quinzenais sobre o assunto estão no calendário do cruzamento das Avenidas Ipiranga e São João

Bem antes de ser imortalizado por Caetano Veloso na música Sampa, de 1978, o cruzamento das Avenidas Ipiranga e São João, no centro, já era ponto de encontro de cantores e instrumentistas de orquestras, bares e gafieiras. Alguns deles, frequentadores de esquinas nas madrugadas dos anos 1950, 1960 e 1970, se reuniram ontem no Bar Brahma para inaugurar a Associação Esquina da MPB e para o lançamento do projeto Vá ver se eu tô na esquina!

Com início previsto para 3 de março de 2010, o projeto vai promover quinzenalmente no bar, às quartas-feiras, palestras e um bate-papo sobre história da Música Popular Brasileira (MPB), com entrada grátis e participação de estudantes, historiadores e músicos convidados.

Emocionados, os artistas levaram fotos e recortes de jornal e relembraram histórias vividas ali. O "Ponto dos Músicos", segundo eles, se formava na frente do Bar Avenida. "Todo mundo vinha depois dos shows, teatros e musicais para conseguir trabalho. Os bailes e TVs tinham grandes orquestras, e os empresários buscavam músicos aqui. Os mais boêmios ficavam até de manhã, mas não era só boemia. Discutíamos filosofia, literatura e política", conta o trompetista José Roberto Branco. O saxofonista Carlos Alberto Alcântara diz que a esquina era o "escritório". "Tudo era acertado ali, telefone era difícil na época."

Pianista do quinteto do programa Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues na TV Record, Luiz Loy se considera sortudo. "Pertenci à época em que músicos eram valorizados. Seria muito bom se a gente voltasse a se encontrar."

VOCAÇÃO

Segundo o empresário Álvaro Aoas, dono do Bar Brahma e diretor do conselho da associação, a ideia surgiu quando o estabelecimento, criado em 1948, finalmente conseguiu alugar o imóvel da esquina, em 2008. Eles planejam criar uma "calçada da fama" e promover shows gratuitos.

"Queremos contribuir para a esquina cumprir a vocação de promover a música brasileira", afirma Aoas. A associação adquiriu um acervo de 43 mil fotos de Mário Luiz Thompson, tido como um dos mais importantes fotógrafos da história da música brasileira. O acervo, parte já digitalizado e disponível no site http://www.associacaoesquinadampb.com.br/, servirá para projetos educacionais.

CD tem recorde de pré-venda

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 26/novembro/2009, no caderno "Ilustrada"

Estreia em disco de Susan Boyle, 48, bate recorde de pré-venda
por Thiago Ney, da Reportagem Local

Ex-participante de um concurso da TV britânica, escocesa lança primeiro CD

Em 11 de abril, Susan Boyle deixou de ser apenas uma escocesa desajeitada dona do gato Pebbles para se tornar uma voz de alcance planetário. Naquele dia, ela espantou o mundo com uma interpretação estonteante de "I Dreamed a Dream" (do musical "Les Misérables") no programa de televisão britânico "Britain's Got Talent".

Boyle, 48 anos, não ficou com o primeiro lugar — perdeu para um grupo de dançarinos meia-boca chamado Diversity —, mas sua fama ficou maior do que a do programa. Tanto que nesta semana saiu na Europa e nos EUA o primeiro disco da agora cantora profissional Susan Boyle (a Sony promete lançá-lo em breve no Brasil).

"I Dreamed a Dream" é o nome do álbum, que bateu recorde como o disco que teve o maior número de pré-vendas da história da Amazon — a empresa não divulgou números, mas especula-se que tenha batido nos 150 mil pedidos.

Em tempos de escassez na indústria da música, Boyle é um investimento seguro. Seus vídeos no YouTube já ultrapassaram as 100 milhões de visualizações. Os shows dificilmente são realizados com lugares disponíveis na plateia. E até foi mencionada em "Simpsons".

Em "I Dreamed a Dream", além da canção-título, Boyle tenta investir em áreas menos óbvias — a primeira faixa do disco é "Wild Horses", balada dos Rolling Stones.

Há espaço para Madonna ("You'll See") e Monkees ("Daydream Believer"). Segundo o encarte, foi Boyle quem escolheu as faixas.

Mas a cantora não foge das baladas e do sentimentalismo superficial — estão no álbum versões para "Cry Me a River", "Amazing Grace" e a natalina "Silent Night".

O fim do ano está aí. Para o bem e para o mal, "I Dreamed a Dream" estará em vários amigos-secretos por aí.

sábado, 14 de novembro de 2009

Modern Sound, RJ — "Como pode morrer um lugar assim?"

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 14/novembro/2009, no caderno "Ilustrada"

Superloja de discos do Rio deve R$ 3,3 milhões
por Caio Barreto Briso, da Sucursal do Rio

Em Copacabana há mais de 40 anos, Modern Sound perdeu 40% do faturamento

Proprietário planeja transformar parte do lugar em uma casa de shows; loja teve clientes como Paulo Francis e Fernando Sabino

Com modestos 60m² quando inaugurada em 1966 pelo baiano Pedro Passos, a Modern Sound se tornou a maior loja de música do Rio, tendo hoje 1.300m² em Copacabana (r. Barata Ribeiro, 502) e um acervo de 80 mil CDs, 30 mil LPs e 4.000 DVDs. E uma dívida de R$3,3 milhões.

Desde 2006, o faturamento caiu 40%. Reflexo dos tempos de internet, o endividamento levou Passos a um pedido de recuperação judicial, já autorizado. Se os credores concordarem, o pagamento será em 30 vezes, após um ano de carência.

"O Rio morreria um pouco sem a Modern Sound, clube onde os amantes da música se encontram, loja especializada na música do mundo todo. Perdê-la seria um fim de linha para a cidade", diz a atriz Fernanda Montenegro, uma das muitas fãs da casa, que teve entre seus clientes o jornalista Paulo Francis ("Um amante de Wagner", diz Passos) e o escritor Fernando Sabino ("Comprava todos os lançamentos de jazz").

"Sempre buscamos um diferencial, como importar discos raros. Hoje isso não basta. Tudo está na internet", diz Passos, 70. Ele quer transformar a parte da loja adquirida em 1999 (800 m2) em uma casa de shows para 500 pessoas. Segundo ele, já há duas grandes empresas interessadas em apoiar o projeto. "Também pensamos em vender 50% do capital da loja. Estamos buscando parceiros."

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Comentário
Com a Modern Sound na cidade, não precisávamos viajar em busca de discos
por Ruy Castro, colunista da Folha

Assim que botei no bolso meu primeiro salário em jornal, tomei um táxi na avenida Gomes Freire, na Lapa, fui direto à Modern Sound, em Copacabana, e comprei um LP importado do pianista e cantor de jazz Fats Waller, que tenho até hoje. Isso foi em 1967, e a Modern Sound também estava no começo.

Desde então, nesses 42 anos, calculo ter deixado lá o valor de um ou dois apartamentos, em milhares de LPs, CDs, videolasers e DVDs — e não me arrependo de nenhum deles. Acompanhei a luta de Pedro Passos por todos esses anos, adaptando-se a cada novo formato que a indústria inventava para vender música, até fazer da Modern Sound, em minha opinião, a melhor loja de discos do mundo no seu tamanho — um meio-termo entre uma gigamega e uma loja de esquina.

E olhe que conheci a Tower, a Virgin e a HMV de vários países e, antes dessas, a Sam Goody's, a Colony, a RKO e outras grandes lojas de Nova York.

A Modern Sound era, de longe, a melhor: tinha quase todos os discos de jazz, cantores, Broadway, cinema, rock e clássicos que as outras tinham, e mais a música popular brasileira completa (que elas não tinham) e a música de qualquer país do mundo — Islândia, Venezuela, África do Sul —, mesmo que fosse apenas na forma de um único LP ou CD.

O Rio e todos nós lhe devemos muito da nossa formação musical. Por causa da Modern Sound, não precisávamos viajar para comprar discos.

Pedro não gosta só de música, gosta também de disco, e conhece tudo. Nunca trabalhou com outra coisa e é amigo de todos os músicos do Rio desde os anos 50. Seu filho Pedro Otavio herdou essa cultura e acrescentou sua capacidade para produzir shows no bistrô Allegro, criado há alguns anos no local. Algumas das noites mais inesquecíveis que passei nos últimos dez anos foram ali, ouvindo os cobras do samba-jazz que passaram e passam por lá.

Mas veio a crise e, quando todas as megastores internacionais já ameaçavam fechar as portas, no começo do século 21, Pedro ainda estava se atrevendo a expandir a loja, aumentando o estoque e fazendo grandes planos. Se passara por todas as crises e continuara invicto, por que não superaria mais esta?

Nunca deixei de frequentar a Modern Sound e até hoje procuro ir lá toda semana. Conheço seus funcionários um a um, dos vendedores de discos aos garçons e os frequentadores — é mais que um clube, é a minha casa. E gosto de levar gente de fora para visitá-la.

Um dos últimos foi o jornalista espanhol Carlos Galilea, do "El País". Acabado o show no bistrô, o contrabaixista Bebeto Castilho sentou-se à nossa mesa e começou a contar histórias. Galilea mal acreditava que estava diante do lendário músico do Tamba Trio, que toca ali toda quarta-feira. É o único lugar do mundo onde se pode ouvir música fabulosa pelo preço de uma Coca-Cola.Como pode morrer um lugar assim?

domingo, 8 de novembro de 2009

Nova etapa na evolução humana

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 8/novembro/2009, no caderno "Ciência"

40 anos de internet
por Marcelo Gleiser

Será que a tecnologia está redefinindo quem somos?

Faz 40 anos que os computadores de Leonard Kleinrock, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e de Douglas Engelbart, do Instituto de Pesquisas na Universidade de Stanford, foram conectados por uma "linha especial" da Arpanet, um sistema de apenas quatro computadores que faziam parte de um projeto do Departamento de Defesa dos EUA.

Com o passar dos anos, o sistema exclusivo de tráfego de informação evoluiu, saiu dos laboratórios de cientistas para o público e hoje é conhecido como internet.

Não há dúvida de que a internet está transformando o mundo, de que vivemos em meio a uma revolução. A questão, ou uma delas, é que tipo de revolução é essa: será que a internet pode ser comparada, por exemplo, ao telefone ou ao carro, ou mesmo à imprensa de tipo móvel, que revolucionou o livro? Ou será que ela pertence a outra classe de tecnologia, que não só transforma a sociedade mas que vai além, redefinindo quem somos?

A questão é complicada, difícil até de ser formulada. O telefone e o carro transformaram o modo como as pessoas se comunicavam, iam ao trabalho, viajavam, viam o mundo. Como toda tecnologia que se torna de uso público, primeiro começaram pequenos, com alcance limitado: eram poucas as linhas telefônicas e as estradas.

Aos poucos, as coisas foram crescendo e, em meados do século 20, telefones e estradas estavam pelo mundo todo. Uma diferença bem importante é que a internet, por ser acessível por computadores, é bem mais aberta aos jovens.

Telefones celulares também; os jovens têm a sua privacidade, o seu espaço virtual separado do dos pais e irmãos. A comunicação é tão fácil e rápida que chega a tornar o contato direto, em carne e osso, desnecessário.

Talvez seja uma preocupação dos meus leitores mais velhos, que, como eu, nutriam as amizades no campo real e não por meio de sites como Facebook e Twitter, mas será que a internet nos fará desaprender como nos relacionar diretamente com outros seres humanos?

Deixando esse tipo de preocupação de lado, se olharmos para a história da civilização, veremos que podemos contá-la como uma história da tecnologia. À medida que novas tecnologias foram sendo desenvolvidas, do controle do fogo e da rotação de terra na agricultura até a roda, o arado e os transistores e semicondutores usados em aparelhos eletrônicos, nossa história foi, em grande parte, determinada pelas nossas máquinas. Valores e interesses mudam, e visões de mundo se transformam de acordo com nossos instrumentos.

O Homo habilis, nosso ancestral que usou ferramentas pela primeira vez, evoluiu rumo ao Homo sapiens e, agora, este se transforma no Homo conectus. Será que nossos avanços tecnológicos são, hoje, a principal mola da nossa evolução como espécie? Nesse caso, será que a tecnologia está redefinindo o que significa ser humano?

Descontando uma grande devastação biológica, como uma epidemia de proporções globais ou um cataclismo climático ou ecológico, somos donos da nossa evolução: nossa transformação como espécie ocorre muito menos devido a mutações aleatórias e ao processo de seleção natural do que, por exemplo, devido a um maior intercâmbio racial, à melhor alimentação e aos avanços da medicina, à integração de tecnologias diversas com o corpo (marca-passos, órgãos e membros artificiais) e com a mente (drogas que mudam nossas emoções, implantes nos olhos e ouvidos, chips no cérebro).

A internet talvez represente uma nova fronteira, a da integração coletiva da humanidade a um nível sem precedentes. Se não no mundo real, ao menos no virtual.
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MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Profecia pós-Olimpíadas?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 2/novembro/2009, no caderno "Ilustrada"

Sambista faz disco enquanto é tempo
por Marcus Preto, da Reportagem Local

Um dos principais compositores da nova geração, Edu Krieger diz que ciclo do samba dura só uns sete anos

O tempo está se esgotando. Dentro de seis ou sete anos, a Lapa carioca, hoje efervescente reduto sambista, estará às moscas. O cavaco, o pandeiro e o tamborim serão instrumentos fora de moda. As rádios segmentadas de música brasileira terão enfraquecido e mudado desse para algum outro nicho — o rock, possivelmente.

A profecia não vem de um roqueiro, mas de Edu Krieger — cantor, compositor e instrumentista carioca que lança agora o segundo álbum, "Correnteza", de vínculos estreitos com tudo isso: Lapa, samba, cavaco, pandeiro e tamborim. "A euforia nacionalista que a gente vive deve chegar ao auge nas Olimpíadas de 2016. Em seguida, virá a sensação de desgaste", aposta.

"O sucesso da Mallu Magalhães, que é uma artista que não tem nada de Brasil, já é o começo disso. Quando esse ufanismo olímpico passar, muitas outras Mallus vão tomar conta do espaço — e com todo o direito."

Krieger afirma que não há nenhum tipo de ressentimento nessa constatação. São ciclos naturais, segundo ele, que necessariamente se fecham e voltam a se abrir décadas adiante. E para os quais ele e seus colegas de geração devem estar bem prepararados.

"Nosso trabalho é agora", diz. "O mercado, hoje, está totalmente aberto para o que a gente está fazendo. Quem construir agora vai permanecer mesmo quando a maré mudar."

"Correnteza", o disco, é pedra importante nessa construção. Reconhece-se em suas faixas o mesmo bom compositor que, nos últimos tempos, vem sendo repetidamente divulgado também por outras vozes (Maria Rita, Roberta Sá, Pedro Luís e a Parede). Mas ouvem-se também ecos vindos da história da música brasileira. Matrizes de diversas frentes e tempos dão sustentação ao trabalho do compositor.

"Ela Entrava" soa Martinho da Vila, "Galileu" tem o mesmo universo ingênuo e sofisticado de Sidney Miller, "A Mais Bonita de Copacabana" tem um quê de Noel Rosa, o violão de "Clareia" remete a João Bosco, "Quando Ela Ri" poderia estar em um disco do Los Hermanos, "Rosa de Açucena" evoca Luiz Gonzaga, "Sobre as Mãos" é puro João Donato — esse, aliás, faz participação na faixa, ao piano.

Krieger detecta, ele mesmo, várias dessas referências. "Um amigo outro dia me disse: "Cara, que maravilhoso esse teu samba do Paulinho da Viola". É um elogio. Todo mundo deveria ter direito de compor seu próprio samba do Paulinho da Viola." Ao menos enquanto o tempo estiver propício para isso.

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CORRENTEZA
Artista: Edu Krieger
Gravadora: Biscoito Fino
Quanto: R$ 30, em média

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

CD: a embalagem (ainda) conta

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 19/outubro/2009, no caderno "The New York Times"

Pacote reúne épicos da música
por Daniel J. Wakin

As caixas de CDs de música erudita têm chovido sobre o mercado nos últimos anos.

A Brilliant Classics lançou coleções maciças com as obras completas de Mozart (170 CDs) e Bach (155 CDs). Comemorando o bicentenário da morte de Haydn, a Naxos vai lançar grandes pedaços de sua obra neste ano: todos seus quartetos de corda, todas as sinfonias, as sonatas completas para piano, os concertos e as missas.

A caixa completa de obras gravadas pelo violoncelista Yo Yo Ma, a ser lançada neste mês, chega a meros 90 CDs. Mas chama a atenção por outros motivos. Primeiro, porque Ma ainda está vivo e dispensa recordações póstumas. Depois, porque embora a maior parte da coleção seja remasterizada, muitos dos CDs ainda estão disponíveis nas lojas. A embalagem luxuosa, completa com livreto de 312 páginas em capa dura, interior forrado em veludo e retrato clicado por Annie Leibovitz, destoa do estilo simples do próprio instrumentista. Mas o que mais se destaca é o preço do conjunto: US$ 789. Em comparação, uma caixa de CDs dos Beatles foi lançada recentemente por cerca de US$ 200.

É verdade que Yo Yo Ma é possivelmente um dos instrumentistas eruditos mais famosos do mundo. Sua música combina carisma extraordinário, habilidade técnica e musicalidade fora do comum.

Mas US$ 789?

“Para mim, é uma pechincha”, disse Alex Miller, e vice-presidente sênior da Sony Masterworks, chamando a atenção para o fato de que o custo representa menos de US$ 10 por CD.

Miller disse que o projeto foi idealizado por ele, não por Ma. “É uma maneira de reapresentar ao público contemporâneo esses discos que estão no mercado há tempo e nunca foram revistos.” Indagado se a Sony espera ganhar dinheiro com o lançamento do pacote, Miller respondeu que “a intenção foi render homenagem a uma carreira musical singular”.

Os pacotes de CDs não constituem novidade, é claro. Mas sua presença aparentemente crescente agora se deve a razões especiais. As gravadoras tentam atrair consumidores mais velhos, com mais dinheiro para gastar e cujo período de atenção pode ser mais longo. Mas a razão mais profunda é que a digitalização converteu a música gravada em coleções de dados. O recipiente que os contém é irrelevante, explicou Evan Eisenberg, autor de “The Recording Angel”, estudo sobre o impacto cultural da música gravada.

Mesmo assim, o impulso de ter e conservar um objeto e colecioná-lo permanece vivo. Um conjunto de CDs em uma caixa “preserva um tempo do qual queremos nos recordar”, disse Eisenberg.

domingo, 18 de outubro de 2009

Cantora da 2ªGuerra volta ao 1º lugar no Reino Unido

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 18/outubro/2009, no caderno "Ilustrada"

Aos 92, musa do Pink Floyd derrota os Beatles
por Marianne Piemonte, colaboração para a Folha, de Londres

Vera Lynn é a artista viva mais velha a ter o disco em 1º lugar no Reino Unido

Coletânea da cantora que animou tropas britânicas na 2ª Guerra vende mais que os remasterizados do quarteto e bate marca de Bob Dylan

O racionamento de comida acabara de terminar no Reino Unido pós-guerra e, nos Estados Unidos, Elvis Presley começava a carreira. Era 1952 e Vera Lynn, a namoradinha das Forças Armadas britânicas, alcançava pela primeira vez o topo das paradas com o disco "We'll Meet Again".

No último dia 15 de setembro, aos 92, Lynn fez história novamente. Tornou-se a artista viva mais velha a colocar um disco na primeira posição do ranking de vendas, tomando o posto de Bob Dylan, que o fizera aos 67. "We'll Meet Again -The Very Best of Vera Lynn", com 24 músicas que ela cantava para as tropas no front, bateu os aclamados discos remasterizados dos Beatles e deixou para trás o novo do Arctic Monkeys. Ela é a cantora que inspirou o Pink Floyd na faixa "Vera", de "The Wall" (1979).

Com as comemorações dos 70 anos do início da Segunda Guerra, as músicas da nonagenária voltaram a tocar. No entanto, ela não receberá por isso. Como foram gravadas há mais de 50 anos, ela não detém mais os direitos das canções pelas leis britânicas. Mas a gravadora Decca, um braço da Universal Music, anunciou que a gratificará. Outro presente que recebeu foi o título de Mulher do Ano, no dia 12, em Londres.

Ela ficou feliz, mas sentiu estranheza porque a música não faz mais parte de sua vida desde a morte do marido, o clarinetista e seu empresário Harry Lewis, em 1990. "Tenho um gramofone em casa, mas nunca o ligo. Nem no banho eu cantarolo", disse ao "Sunday Times".

Vera começou a cantar aos sete anos em clubes para homens no leste de Londres. Aos 11, deixou a escola para excursionar com um show de variedades pela Grã-Bretanha. Em 1941, comandava o programa "Sincerely Yours" na rádio da BBC. Não foi surpresa que as músicas empostadas, estilo diva do jazz, fossem escolhidas para alegrar as tropas.

Vera voava nos aviões da Força Aérea Real e passava meses acampada com as tropas britânicas em instalações idênticas às dos soldados. O comediante Harry Secombe, do programa "Goon Show", o mais popular no radio britânico da época, disse ao "The Independent" que "Churchill não havia abatido os nazistas, mas a voz de Vera os tinha encantado para a morte".

Atualmente, ela não entende por que há soldados britânicos no Afeganistão. "Na Segunda Guerra, lutavam pelo nosso país. Hoje, estão envolvidos em problemas de outros países. Alguém pode me explicar?", disse ao "Sunday Times".

Hoje, as aventuras são duas temporadas anuais na França em busca de sol. No resto do ano, vive na pacata Sussex. Cozinha, faz compras e retira sua aposentadoria sozinha. Vera, que foi considerada a Marlene Dietrich britânica, diz que o segredo da saúde é a rotina. Acorda às 7h30, nunca pula uma refeição e não dorme maquiada.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Blogs musicais ameaçados

Texto publicado no "JBonline", página "Cultura" de 4/outubro/2009, fonte: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/10/04/e041011198.asp

Google persegue blogs brasileiros
por Luiz Felipe Reis, Jornal do Brasil

RIO - Ferramenta popular para distribuição de arquivos musicais pela internet, os blogs de mp3 — sites que listam links através dos quais pode-se fazer o download de discos novos e antigos — estão, mais do que nunca, na mira da indústria fonográfica. E o Brasil não é exceção.

Um dos endereços brasileiros mais conhecidos, o Umquetenha (que funcionava em http://umquetenha.blogspot.com/) foi, há pouco mais de um mês, sumariamente retirado do ar pelo Google (que controla os blogs hospedados pela empresa Blogger.com). O que não impediu que os internautas tivessem acesso aos mais de 4.500 discos (todos de música brasileira) que o blog disponibilizava.

Com o fim do endereço original, o administrador do material resolveu transferir todo o seu acervo digital para outro servidor; enquanto reposicionava o seu conteúdo na web, o dono do Umquetenha passou a postar seus links via Twitter (twitter.com/umquetenha).

— O que o UQT faz não é pirataria — defende o criador do site, que prefere manter-se anônimo e só comunica-se por email, sob o pseudônimo Fulano Sicrano. — Não existe no Umquetenha uma única forma de remuneração envolvida, nenhum ganho direto ou indireto. Logo, não há motivo para perseguição ou punição.

Legislação dos EUA

Na atual guerra de ameaças e medidas jurídicas contra os internautas que baixam mp3, o blogueiro (que chegou a ter mais de 20 mil acessos diários em sua página) não vê muita esperança para quem defende a proibição da prática.

— Eu não conheço o aparato tecnológico ou procedimento que será usado para impedir que um determinado usuário acesse a internet. Mas me parece ser uma grande bobagem. Pode dificultar, mas duvido que impeça.

O administrador do Umquetenha foi obrigado a tirar o site do ar depois de receber uma notificação dos administradores da rede Blogger. A nota avisava que o blog havia recebido uma queixa de que estaria violando a DMCA, norma da indústria americana que regulamenta os direitos autorais (mesmo que o site só contasse com artistas brasileiros).

Caso semelhante ocorreu no ano passado com o blog Som Barato, também especializado em discos brasileiros — em sua maioria, raridades fora de catálogo — que teve os links para mais de 2 mil títulos deletados pelo Google.

Aos poucos, começam a aparecer no Brasil iniciativas da indústria fonográfica semelhantes às que já ocorrem nos EUA e Europa há tempos. No exterior, empresas de controle de direitos e segurança virtual como a Web Sheriff — uma das mais ativas e odiadas pelos baixadores de mp3 — passaram a ser contratadas por grandes artistas internacionais.

À frente dos interesses de selos e artistas como Prince, Arctic Monkeys, Franz Ferdinand, The Prodigy, Van Morrison, Bryan Adams, Black Crowes e Placebo, a empresa vasculha a rede para eliminar possíveis vazamentos de álbuns antes do lançamento oficial.

No Brasil, a Associação Anti-Pirataria Cinema e Música (APCM) também estende seus tentáculos. A entidade, que representa os braços operacionais de combate à falsificação da indústria fonográfica (ABPD) e da indústria de cinema e vídeo (MPA), retirou do ar, no início do ano, a comunidade Discografias, uma das mais acessadas pelos usuários do site de relacionamentos Orkut.

A associação, vinculada aos interesses de gravadoras e de produtoras de cinema, também eliminou sites dedicado a compartilhar filmes e seriados, como o IsLifeCorp. Em balanço que revela sua ações na rede, divulgado em 24 de setembro, a APCM indica que, na última quinzena daquele mês, solicitou a retirada do ar de 33.558 links estes encontrados em blogs, redes sociais, fóruns e sites. Também foram removidos 3.965 arquivos torrents — gerados para facilitar o compartilhamento através de rede P2P.

O administrador do Umquetenha prefere olhar a questão pelo lado dos artistas, e não o das companhias.

— O artista tem de usar todos os canais possíveis de divulgação. No caso do Umquetenha é de graça, como é na maioria dos blogs musicais que eu conheço. Os blogs têm a capacidade de equilibrar as oportunidades, aumentando as chances de reconhecimento daqueles que não têm muito dinheiro.

Liminha: “Música de graça é utopia”

Contrário aos sites e blogs que disponibilizam música sem autorização legal, o produtor Liminha defende que o acesso livre ao mp3 é pernicioso mesmo para artistas mundialmente estabelecidos.
— Quando se fala em download ilegal, as pessoas pensam, num primeiro plano, nos danos causados à gravadora. Mas na verdade, devemos olhar para o começo da cadeia: o compositor, o intérprete e o músico — alerta o produtor. — É um preço muito alto.

Apesar de a maior parte dos artistas independentes usar a internet para a divulgação de suas músicas, Liminha — um dos produtores mais consagrados da MPB e do pop brasileiro, tendo trabalhado com Gilberto Gil, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso e Titãs — acredita que o panorama se torna ainda mais perigoso para o estabelecimento de jovens talentos.

— O cantor oferece a música de graça e depois vai fazer o show de graça. É muita gente trabalhando sem ganhar nada. Isso é uma utopia, só piora a situação da música. É preciso ter um mínimo de remuneração.

O produtor lembra que, mesmo com os avanços da tecnologia digital e da evolução dos softwares “caseiros” para a produção musical, o custo para a produção de um álbum ainda é muito elevado.
— Muita gente já não consegue viver só de música — diz. — É uma questão para ser resolvida de forma ampla. Poderiam criar um imposto artístico. Ou mesmo os provedores de internet, fabricantes de computadores podiam criar um fundo para ser distribuído entre as pessoas que produzem música.

Liminha ressalta que o preço cobrado por um álbum digital, muitas vezes próximo ao valor estipulado pelo produto físico, é um entrave ao comércio musical online.

— Nisso as gravadoras estão erradas. Não existe motivo para que o download custe o mesmo preço de um CD, que é transportado fisicamente, com um imposto sobre ele. Acho o preço do download exagerado.

* Taís Toti

Miranda: “Grátis é mais prazeroso”

Produtor musical, ex-diretor artístico de gravadoras (Banguela, Excelente, Trama) e hoje jurado do programa Qual é o seu talento? (SBT) Carlos Eduardo Miranda acha que a discussão sobre download de músicas não é mais necessária.

— O download já é algo consolidado, todo mundo já sabe como funciona. Quem quer comprar, compra, quem quer pagar, paga, quem quiser pegar de graça pega, é opção do usuário.

Miranda acredita que não há como controlar o compartilhamento de arquivos pela rede, e que em vez de impedir o download gratuito e ilegal, as gravadoras deveriam tornar mais prático e atrativo o comércio de música online.

— As pessoas vão se dispor a pagar quando valer a pena. Hoje é mais fácil, prazeroso e enriquecedor baixar de graça do que pagando. Vá a um blog de mp3 por exemplo, e lá você encontra grandes discos, comentários sobre eles, artistas novos. Isso instiga a descobrir novas músicas. Se você vai numa loja de mp3, vai ser conduzido para obviedades. Não há nada de interessante, de novo, e ainda é mais demorado. No blog é um clique e pronto.

O aumento dos downloads ilegais, na opinião do produtor, é culpa dos próprios artistas, que sempre afirmaram que “eram roubados pelas gravadoras e que a venda de discos não era lucrativa para eles”.

— Quando o artista fala isso publicamente não pode esperar que o público vai agir diferente. O fã vai pensar: “se o artista não ganha nada com isso, então está liberado roubar”.

Só que agora, lembra o produtor, é preciso entender que quem perde com o download gratuito não é só a gravadora, mas também o artista.

— É preciso conscientizar o público que pegar de graça foi algo importante, revolucionário. Mas agora é algo retrógrado, que vai contra o artista e contra o que ele gosta. (Taís Toti)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Preço justo, oferta variada...

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 30/setembro/2009, no caderno "Ilustrada"

CONEXÃO POP
Piratear ou não piratear?
por Thiago Ney, da Reportagem Local

Gente como Fred Zero Quatro e Lily Allen são um refresco dentro dos debates de cultura pop. Porque, diferentemente da maioria dos artistas, não se apegam ao oba-oba, tentam fugir do discurso fácil, raso, cômodo, do senso comum que impera nos discursos envolvendo música e internet.

Duas semanas atrás, em entrevista à Folha, Zero Quatro criticou o que chama de "fundamentalismo tecnológico": a aceitação universal de que a pirataria deve ser aceita e que é inútil lutar contra.

Dias antes, Peter Mandelson, ministro de Negócios do Reino Unido, anunciou plano de desconectar -sem a necessidade de processo judicial- usuários acusados de fazer download ilegal de arquivos (de música, games, filmes etc.).

Como reação a Mandelson, artistas como Radiohead, Robbie Williams, Billy Bragg criou o Featured Artist Coalition, grupo que apoia a troca de arquivos sem autorização.

Lily Allen, então, iniciou uma campanha em que ataca a pirataria, dizendo que o download ilegal é prejudicial principalmente aos novos artistas. Ela foi apoiada por Elton John e James Blunt.

*

Não concordo com muitos dos argumentos de Zero Quatro e de Lily Allen, mas eles são corajosos de permanecer distantes de uma maioria que se baseia em falácias e em ações hipócritas.

Falácias como as de Chris Anderson, cuja "teoria" da cauda longa (muitos se manterão vendendo pouco) já foi desmantelada e que lança um livro, "Free - O Futuro dos Preços", em que enaltece a economia gratuita -gratuita para os outros, claro, pois as 88 páginas de "Free" custam, no Brasil, R$ 59,90.

E ações hipócritas como a do Radiohead, que enriqueceu dentro do esquemão das gravadoras e que depois, para ganhar uns trocados em cima dos fãs que fariam de qualquer jeito o download do disco, lançou "In Rainbows" no formato "pague quanto quiser" (ou seja: em vez de não receber nada com o inevitável vazamento do álbum na internet, a banda ganhou bom dinheiro maquiando o lançamento digital do disco).

Mas Zero Quatro e Lily Allen esquecem diversos fatos. No Brasil, pouquíssimos artistas ganhavam dinheiro com disco. Artistas médios e pequenos conseguiam, no máximo, pagar as contas com a venda de CDs; o grosso da receita vinha de shows e de publicidade.

*

Outro ponto. Faz-se o download ilegal hoje porque a indústria do entretenimento ainda não conseguiu acompanhar o desejo e a necessidade dos consumidores.

É inexplicável sermos obrigados, no Brasil, a esperar meses para assistirmos a uma série de televisão, ou de não termos a possibilidade de baixarmos, por um preço justo, o novo álbum de artistas gringos.

Se o preço for justo, e a oferta, variada, continuaremos pagando.
thiago.ney@uol.com.br

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Livro: suporte imbatível... por enquanto?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 16/setembro/2009, no caderno "Opinião"

Bonito, gostoso e prático
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Um dos temas mais momentosos da Bienal do Livro, em cartaz no Riocentro, é se o livro impresso, de papel, corre o risco de desaparecer, fulminado pelas novas tecnologias. Eu próprio, zanzando entre os stands no último domingo, fui perguntado várias vezes sobre isso.

Curiosamente, quem olhasse ao redor diria que a pergunta não fazia sentido e que a indústria do livro nunca esteve tão robusta neste país. Era um domingo de escandaloso azul, com as praias, os passeios e todas as formas de lazer grátis no Rio convidando o povo a estar em qualquer lugar, menos ali, num conjunto de pavilhões em Jacarepaguá, a mais de uma hora de Ipanema, e tendo de comprar ingresso para entrar.

Pois essa pergunta estava sendo feita em meio a montanhas de livros expostos e 125 mil pessoas, número de visitantes que, segundo a Bienal, compareceu no fim de semana. Gente que não pagou para ver malabaristas, engolidores de fogo ou artistas globais, mas romancistas, biógrafos, poetas ou autores de livros para crianças.

Respondi que, como formato, o livro é difícil de ser superado — porque já nasceu perfeito, e não é de hoje. Ele é bonito, gostoso e prático. É também portátil: pode ser levado na mão, na mochila ou na bolsa, e lido no sofá, na cama, no banheiro, na mesa do jantar, no bonde, no ônibus, no jardim, na praia, na banheira, onde você quiser.

É também barato: quem não tiver dinheiro para comprar livros novos, encontrará farta escolha nos sebos e até na calçada da rua.

Um livro pode nos alimentar por uma semana, um mês ou o resto da vida. E, ao contrário do CD e do DVD, não precisa de uma máquina para tocar. Basta ser aberto para poder ser lido. Na verdade, o livro só precisa de nós.

Neste momento, mais do que nunca, talvez.

domingo, 6 de setembro de 2009

A discografia mais esperada

Texto publicado no site JBonline, do "Jornal do Brasil", de 5/setembro/2009 às 19:53

Cultura
Depois deles, o fim dos discos
por Ricardo Schott, "Jornal do Brasil"

RIO - Agora não falta mais ninguém. Com o projeto "Remastered", que chega às lojas de todo o mundo nesta quarta-feira, os Beatles finalmente têm toda a sua obra relançada em duas caixas especiais — uma em estéreo e outra em mono — após um cuidadoso trabalho de masterização, fazendo justiça à trajetória da banda, que havia chegado ao CD, na maioria das vezes, em edições descuidadas, tanto em relação ao som quanto à qualidade dos encartes.

A reunião da obra remasterizada dos Fab Four acontece bem depois de bandas que estão, historicamente falando, aquém do seu legado, como Queen (The crown jewels), Pink Floyd (Oh by the way), Led Zeppelin (Definitive collection, com réplicas dos antigos LPs em CD), Rolling Stones (The London years, com singles, além das recentes remasterizações). Na verdade, bem depois de grupos do segundo escalão do rock. Até mesmo Yoko Ono, viúva de Lennon, já teve uma boxset, Onobox, uma compilação de seus álbuns solo, lançada em 1992 pelo selo Rykodisc com fonogramas licenciados da mesma Apple montada por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr em 1968.

O lançamento, aguardado por mais de 20 anos pelos fãs, cria um novo paradigma para a indústria fonográfica: que projeto especial em CD seria capaz de mobilizar o público como a obra completa do maior fenômeno da música pop?

Restará ao mercado reciclar o catálogo das bandas dos anos 80 e 90 – muitas vezes apenas reempacotando o que já nasceu digital, como aconteceu recentemente com o relançamento “de colecionador” do debute homônimo da banda grunge Pearl Jam (1991)?

— Pode ser que pare por aí mesmo, porque espremeram a laranja até o bagaço. Parece ser o fim de uma era — relata o produtor Liminha. — Fui à loja da Sony em Nova York recentemente e vi poucos CDs lá. O formato realmente não representa mais a maior parte do negócio de música gravada. Eu mesmo compro CDs porque o som é melhor e tem mais informação. Mas passo para o computador e iPod por ser mais cômodo.

Diretor de marketing estratégico da EMI, gravadora responsável por lançar as caixas dos Beatles, Luiz Garcia é outro a contar com tal possibilidade.

— Acho possível que seja o último grande lançamento, porque não se vê outra coisa tão importante quanto os Beatles — explica. — É a discografia mais esperada da história do CD. Muitos até duvidavam que fossem deixar alguém mexer nos masters originais. Chegou-se a cogitar na EMI a remasterização dos discos em separado, quando cada um deles fizessem 40 anos.

Fã dos Beatles, pesquisador musical e dono do selo Discobertas, Marcelo Fróes acha que o que o CD tem mais a oferecer para o público comprador é o seu charme.

— Para quem, como eu, acredita que música é algo mais do que apenas o áudio executável, o formato continuará existindo – explica Fróes, que, por seu selo já lançou exemplares da série "Letra & música" dedicados a Lennon, McCartney e Harrison e também prepara para esta semana os três CDs da série "Beatles 69", com regravações de tudo o que o quarteto gravou no ano de 1969. — Mas acho que será o fim do formato no que diz respeito às grandes campanhas. Na sequência realmente vem a música digital.

O veterano produtor Pena Schmidt, outro grande fã da banda, desdenha dos relançamentos.

— Será que tem alguém que ainda dá importância para isso? — questiona. — Bom, se tem, que sejam felizes, né? Não vejo nada de mais, é só mais uma operação caça-níqueis. Tudo isso só dá saudade do vinil original em mono, que é o que me dá vontade de escutar sempre que vejo esses projetos.

João Augusto, presidente da Deckdisc, crê que, após a febre beatle, a saída para a indústria musical é realmente atacar as bandas dos anos 80 e 90.

— São elas que certamente terão seu catálogo revitalizado. Trata-se de um fluxo normal — afirma o produtor. — Quanto ao relançamento, sempre é uma cereja no bolo poder contar com algo que você não tinha de um disco do qual é fã. "Thriller", do Michael Jackson (1982) marcou fortemente minha carreira de produtor e, recentemente, tive uma grande aula ao encontrar uma versão em vinil com um LP bônus cheio de faixas com mixagens especiais.

O produtor Armando Pittigliani, responsável pela gravação de alguns dos discos pioneiros da bossa nova, acredita que apenas a obra de um brasileiro possa criar interesse semelhante, guardadas as devidas proporções: — Só falta o João Gilberto. Mas ele não deixa de jeito nenhum. A EMI já tentou diversas vezes relançá-lo e isso já gerou até processo.

O projeto — que traz, além dos 13 lançamentos avulsos em estéreo (indo do primeiro disco, "Please please me", de 1963 ao derradeiro "Let it be", de 1970, estendendo-se à coletânea "Past masters", de 1989), uma caixa estereofônica e outra relembrando os 10 primeiros álbuns como eles haviam sido lançados originalmente, em mono — tem caráter definitivo para a indústria do disco, já que os discos dos Beatles eram praticamente os mesmos há mais de 20 anos.

Os CDs da série "Beatles remastered" substituem as edições lançadas em 1988, que frustraram vários fãs por trazerem álbuns como "Help!" e "Rubber soul", ambos de 1965, remixados.

— A discografia não foi verdadeiramente remasterizada naquela época — relembra Fróes. — São meras digitalizações das matrizes não-equalizadas dos LPs, e portanto sem o punch que as prensagens originais tinham. Houve uma reclamação geral com relação ao som naquela época.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

New York dá samba!

Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo", de 25/agosto/2009, no "Caderno 2"

Samba aprende-se no colégio. Do Harlem

Cativados pelo ritmo brasileiro, alunos de escola pública do bairro de NY, famoso pelo gospel, dão show com minibateria

por Tonica Chagas

Batuque é um privilégio mas, contrariando o Feitio de Oração, de Noel Rosa, pode-se aprender samba no colégio, sim. E em colégio público americano, como mostraram, no começo da noite de quinta-feira passada nos jardins do Lincoln Center, em Nova York, alunos da Frederick Douglass Academy (FDA), escola secundária municipal no bairro do Harlem. Integrantes da Harlem Samba, uma minibateria formada lá há três anos, desfilaram pelos caminhos e pracinhas do centro cultural nova-iorquino célebre pelas óperas, concertos eruditos e espetáculos de balé, dando um show de 40 minutos no programa de música ao ar livre Lincoln Center Out of Doors. O batuque brasileiro - com mistura de reggae e hip hop - que animou o público americano é uma das matérias preferidas dos alunos da escola, que fica a poucas quadras do Yankee Stadium e no bairro onde um dos estilos prediletos de música é o gospel.

"Fazer parte da Harlem Samba é como fazer parte de uma banda de rock, a gente se diverte muito", diz Ariel Moyé, de 18 anos, caloura no curso de Artes do City College of Technology. Como muitos dos instrumentistas, mesmo já tendo saído da escola Ariel, ela continua tocando agogô na bateria que é dirigida pelo professor de música Dana Monteiro. Trompetista erudito por formação, com diploma da New York University e da Columbia University, Monteiro (o sobrenome luso vem de Cabo Verde, onde nasceram os pais dele) dá aulas na FDA desde 2001. Mas até ele mesmo aprender o que é samba, música era uma coisa que os alunos só aprendiam por pura obrigação.

"Sempre tentei ensiná-los a tocar instrumentos de sopro ou de cordas, mas eles só queriam saber de bateria e atabaques e era impossível tocar juntos", conta ele. A razão dessa preferência está no sangue, explica o diretor da FDA, Gregory Hodge, ao apontar os dados etnográficos da escola: 75% dos 1.600 alunos são afro-americanos e 24% são hispânicos.

O estalo sobre como entrosar a molecada na mesma harmonia veio nas férias que Monteiro passou no Rio, em 2004, onde um amigo o levou a um ensaio da Unidos de Vila Isabel. "Quando ouvi cerca de 200 pessoas tocando tambores ao mesmo tempo, senti que aquela seria a forma de entrosar os alunos", diz o professor. De volta a Nova York, com discos de samba-enredo na mala, ele foi aprender a tocar todos os instrumentos da percussão brasileira com outro americano, o etnomusicólogo Philip Galinsky, criador e diretor da Samba New York, a "school of samba" mais famosa e atuante da cidade.

A batucada foi entrando no currículo da FDA conforme Monteiro e Hodge convenciam amigos que viajavam para o Brasil a trazer-lhes bumbos, repeniques e tamborins. E todo aluno que não gostava ou não conseguia aprender o dó-ré-mi no piano, na flauta ou no violão foi cativado pelo baticumbum. "Uma das grandes vantagens do samba é que ele é democrático", diz Monteiro.

"Temos 250 alunos que compartilham pouco mais de 50 instrumentos, todos podem participar, aprendem rápido e gostam disso. Como professor, é gratificante vê-los aprendendo algo novo, como se estivessem estudando uma língua estrangeira, abrindo a cabeça para o mundo."

Em 2006, Monteiro formou a Harlem Samba com quatro garotos e quatro meninas escolhidos entre os melhores no novo idioma ensinado na FDA. O grupo agora tem 35 integrantes fixos.

Muitos já estão na faculdade, estudando em outros Estados, mas voltam sempre que podem para participar nem que seja só de um ou outro ensaio. A maioria mora, como eles dizem, "cruzando a ponte", no Bronx, onde o quadro socioeconômico é mais duro que o do bairro onde fica a escola que frequentam. O grupo unido pelo samba tem um significado especial para muitos deles.

A experiência que passou depois de aprender a tocar chocalho e ficar na linha de frente da bateria foi reveladora para Nikkita McPherson. "Antes, eu só conhecia o carnaval dos imigrantes de Trinidad que desfilam um dia por ano pelas ruas do Bronx, nunca tinha ouvido falar do carnaval brasileiro", lembra Nikkita que, por ter sempre boas notas, já viajou por um programa da FDA duas vezes para o Brasil e conheceu o Rio, São Paulo e Salvador. "Depois de cruzar uma distância de nove horas de voo, bem maior do que a da minha casa até a escola, descobri que aquelas pessoas não são diferentes de mim", diz ela. "São gente pobre que, no carnaval, são muito felizes. São como eu. O samba trouxe muita alegria para a minha vida." Em setembro, com bolsa de estudos integral, ela começa a cursar Ciências Políticas no Darthmouth College, em New Hampshire, uma das oito universidades americanas que integram a tradicional e conceituada Ivy League.

Da viagem que fez ao Brasil, Maurice Julius Evans, de 18 anos, outro dos integrantes originais da Harlem Samba, voltou com lembranças iguais às de Nikkita e um repenique - ou "happy Nick", como soa a palavra na pronúncia dele. Evans acabou de ingressar no curso de Física no Hostos College que, por ficar no Bronx, não o deixa longe dos ensaios na FDA. Esta semana, ele divertia os colegas contando que sua mãe, que o faz praticar os solos com toalhas sobre o instrumento para não incomodar os vizinhos, o surpreendeu na missa do domingo passado ao lhe entregar o tamborim com que acompanhava o gospel e pedir que a ensinasse a tocar samba.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

The Beatles, uma análise faixa a faixa

Texto publicado no "Jornal da Tarde", de 18/agosto/2009, na seção "Variedades"

Tintim por tintim

Guia Beatles disseca solo por solo, música por música, álbum por álbum

por Felipe Branco Cruz, felipe.cruz@grupoestado.com.br

Muitos livros já foram publicados sobre os Beatles abrangendo praticamente tudo. Desde fofocas e brigas até análises em profundidade das gravações no estúdio Abbey Road, em Londres. Então, por que lançar mais um?

Isney Savoy, da editora Larousse, responde: “O foco agora não são as intrigas. O trabalho faz análise inédita apenas da música.” O livro em questão é o The Beatles - Gravações Comentadas e Discografia Completa, lançado pela Larousse.

Escrito pelo britânico Jeff Russel, nascido em Liverpool, cuja a vida foi praticamente dedicada a pesquisas sobre o grupo, o livro apresenta a discografia completa, com notas dos bastidores das gravações.

São informações sobre cada canção lançada oficialmente, os títulos, as faixas (com a duração), as datas de lançamento, os créditos dos compositores e comentários sobre cada faixa. Na introdução, Russel justifica sua pesquisa.

“Não há nada mais a ser dito? Ao contrário. Muito ainda pode ser dito sobre a razão de ser dos Beatles. Sua música e, sobretudo, seus álbuns.”

Durante anos os mesmos álbuns que eram lançados no Reino Unido saíam em outros países retalhados pelas gravadoras que mudavam o desenho da capa, a sequência das canções e até cortavam músicas para lançar dois LPs em vez de um e faturar mais.

A prática foi comum nos Estados Unidos e no Brasil. Por isso, Isney Savoy, de 57 anos, fã da banda, foi recrutado para incluir na obra um capítulo com a discografia brasileira.

“Os álbuns dos Beatles no Brasil tiveram algumas particularidades. Por isso, os discos lançados por aqui são raridades”, diz Savoy, que começou a ouvir Beatles quanto tinha apenas 12 anos.

Dentre as características dos álbuns brasileiros está uma falha na canção Penny Lane, no álbum The Beatles Forever, de julho de 1972, lançado apenas por aqui como uma coletânea aleatória que reúne músicas de Magical Mystery Tour e outras faixas de compactos duplos.

A falha mostra um corte brusco após o verso “Full of fish and fingerpies”. “Foi uma falha no disco matriz recebido da Inglaterra. Como os brasileiros achavam que os Beatles faziam coisas inovadoras, acharam que a falha era proposital”, explica Savoy.

Graças a essas mudanças feitas pelas gravadoras de outros países, os Beatles passaram a exigir que seus álbuns fossem lançados da mesma forma no mundo inteiro.

“Eles criaram o conceito de álbum, com as canções seguindo uma sequência. Antes, cada país incluía as músicas em qualquer ordem, de acordo com o que eles imaginavam que o mercado local gostaria mais”, diz.

Uma das exigências da banda era que nunca fossem lançadas coletâneas. Recomendação ignorada no Brasil, já que por aqui foram lançados títulos como Juventude em Brasa, O Mundo em Suas Mãos - Vol. 3 e Ídolos da Juventude - Vol. 2, todos de 1965.

Contra o retalhamento feito nos Estados Unidos, a banda decidiu protestar e a capa do disco The Beatles Yesterday and Today (lançado apenas nos Estados Unidos em junho de 1966) saiu com eles vestidos de açougueiros segurando pedaços de carne e bonecas decapitadas.

O público reagiu e não gostou, tanto que a capa foi substituída por outra mais comportada. O exemplar é hoje extremamente cobiçado entre os fãs da banda.

Em seguida, a banda lançou Revolver, em agosto de 1966. O livro conta uma curiosidade do trabalho. Na canção de abertura, Taxman, quem toca o solo de guitarra não é George Harrison, mas sim Paul McCartney (apesar da canção ser de autoria de Harrison). Na última do álbum, Tomorrow Never Knows, o mesmo solo de Taxman é executado de trás para frente, por Harrison.

O livro abre com a história do primeiro álbum da banda, batizado de The Early Tapes of the Beatles, gravado em Hamburgo, Alemanha, em 1961. Eles tocam seis canções com o cantor Tony Sheridan, mas uma outra banda também aparece no LP, a The Beat Brothers.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Cantor desafinado nunca mais?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 30/julho/2009, no caderno "Ilustrada"

"Photoshop musical" não deixa cantor desafinar

por Clarice Cardoso, colaboração para a Folha

Muito usado na indústria fonográfica, software Auto-Tune divide opiniões

Programa é usado para afinar vozes de intérpretes ou criar efeito "robotizado" como o da música "Believe", da cantora americana Cher

Se para capas de revista sumir com rugas e gordurinhas é trabalho para o Photoshop, na música o segredo para afinar o gogó é o Auto-Tune. No último mês, o software criado em 1997 virou notícia e alvo do rapper Jay-Z, que lançou a música "D.O.A. (Death of Auto-Tune)" -"morte ao Auto-Tune".

Na carona, Wyclef Jean lançou "Mr. Auto-Tune", em que canta: "Sou o sr. Auto-Tune/ Se você desafinar/ Transformo você em celebridade". Reações não tardaram: Kanye West tirou-o de seu CD; Mary J. Blige e Black Eyed Peas defenderam o programa. "Usamos com bom gosto", disse Fergie.

A Antares Audio Tech, que produz o software, levou com bom humor. À Folha, enviou uma charge em que a embalagem do programa diz que sua morte é um "rumor exagerado". "Divulgaram nosso nome entre um público que não o conhecia", diz Marco Alpert, vice-presidente de marketing.

Polêmicas à parte, o Auto-Tune e um similar, o Melodyne, são usados todos os dias em estúdios do Brasil e do mundo. Normalmente, corrigem trechos que "passariam despercebidos", dizem músicos e produtores ouvidos pela reportagem.

"Não se pode dizer que quem usa esses programas não canta bem. Na verdade, eles permitem que se aproveite uma gravação mais emotiva, que pode ter saído do tom em algum momento", diz Jorge Vercilo. "No meu DVD, supervisionei o trabalho do afinador e desfiz correções que o programa tinha feito em trechos que "passeavam pelas notas", um recurso do intérprete que o programa nem sempre entende."

Fábrica de mentiras

"Os puristas dizem que você tem que cantar sem errar, mas sou prático", diz Rogério Flausino, do Jota Quest. "Gravo tudo num dia e repasso com o técnico no outro. O cantor deve arrumar a afinação porque é ele quem sabe o que cantou."

Preta Gil, que usa o programa "em detalhes", acha que há exagero. "Tem cantor que relaxa porque o programa depois corrige. Mas ele também tira a espontaneidade. E tem muita cantora nova com voz de pato por causa do Auto-Tune."

O produtor Deeplick, que já trabalhou com Wanessa Camargo e Seu Jorge, concorda. "Ouço pessoas que me dão a impressão de não cantarem nada, de serem construídas." "Mas cantor montado não faz sucesso, desaponta ao vivo", diz o produtor Luis Paulo Serafim, que já trabalhou com Maria Bethânia e Rita Lee e ganhou sete Grammy. "O Auto-Tune é a fábrica de mentiras da nossa música, deixa qualquer um afinadinho. Mas o público percebe que soa pior."

Apollo Nove, que já produziu de Otto a Bebel Gilberto, não usa mais o programa. "Já fiquei uma semana de segunda a quinta passando Auto-Tune numa música [risos]. Mas desencanei, ele dá uma detonada na voz. O melhor som é o puro."

"Como público, acho legal os efeitos do software. Mas meu interesse em um cantor que não canta direito e usa o programa como maquiagem é bem pequeno", diz João Marcello Bôscoli, presidente da Trama.

Brendan Duffey, que já produziu bandas como Linkin Park e Maroon Five, disse à Folha se irritar com os puristas. "A tecnologia muda a arte. Pra que deixar seu disco meio estragado se ele pode ficar superbonito com tecnologia?".

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Paulinho da Viola e Roberto Silva

Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo", de 17/julho/2009, no "Caderno 2"

Paulinho se diz "vassalo" do verdadeiro príncipe do samba
por Lauro Lisboa Garcia, RIO

Reverenciando o mestre Roberto Silva e cantando clássicos, novidades e pérolas esquecidas, ele está de volta ao Canecão

Paulinho da Viola é daqueles patrimônios cariocas que a gente devia ter o privilégio de poder visitar toda vez que fosse ao Rio. Na sexta-feira passada ele reestreou no Canecão, onde volta hoje para mais três apresentações, o show do projeto "Acústico MTV".

A certa altura do desfile impecável de seus elegantes sambas, um fã gritou do fundo da plateia: "Faz mais shows". O público saudoso tem por que pedir. É pena que Paulinho não tenha vindo a São Paulo ainda desta vez. Portanto, mais um bom motivo pra pegar a ponte aérea e fazer um programa desses para voltar com a cabeça arejada.

O desgastado "Acústico", como todo mundo já sabe, é um projeto revisionista. Por isso, não faltam os grandes êxitos do artista em questão. Mas, como também não se cansa de dizer, Paulinho sempre foi acústico e sua nobreza está muito além disso. Discretamente, ele explica por que incluiu tantos sucessos antigos no roteiro. Como se pedisse passagem ou licença para fazer a gente ouvir de novo maravilhas como "Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida", "Coisas do Mundo, Minha Nega" (em momento sublime de voz e violão), "14 Anos", "Por Um Amor no Recife", "Sinal Fechado", "Coração Leviano" e tantos outros achados de lamento e alegria que povoam a boa consciência coletiva.

Se tudo se transformou, Paulinho não mexe com seu samba para parecer moderno. Ele já nasceu outro, eterno, está sempre atual, tem sempre um frescor nas sutis mudanças que faz para ser quase o mesmo, atemporal. Tanto é que ele conta que pegou uma melodia que tinha guardada, de samba tradicional, "bem antiga" e, por brincadeira, mandou para Marisa Monte, que replicou para Arnaldo Antunes. Os três assinam o "Talismã", agora já assimilado pelo público, o que confere ao samba um tom de velha novidade. Seu tempo é hoje.

Versos de clássicos que ele canta são lapsos de declarações de princípios: "Quando penso no futuro/ Não esqueço do passado" (Dança da Solidão); "Tá legal/ Eu aceito o argumento/ Mas não me altere o samba tanto assim" (Argumento); "Não sou eu quem me navega/ Quem me navega é o mar" (Timoneiro).

Alternando ao cavaquinho e ao violão — e acompanhado por uma ótima banda que tem Mário Sève, Cristóvão Bastos,João Rabello, filho de Paulinho, e três vocais femininos, todos absolutamente afinados com seu estilo e sua história —, ele é ao mesmo tempo despojado e sofisticado, velha guarda e menino.

Outro toque de atualidade vem de "Amor à Natureza", que não está no DVD "Acústico". Agora chega a notícia de que as praias do Leme ao Leblon estão com níveis acima do aceitável de coliformes fecais. Paulinho lembra que este samba de 1975 nasceu de uma charge de Jaguar, que ironizava justamente o fato de os banhistas terem de conviver com poluentes estranhos boiando ao lado. Mas há uma esperança de sobreviver, como ele diz no fim da canção, em forma de samba-enredo.

Ele também rende tributo a seus parceiros Capinam (Coração Imprudente), Mauro Duarte (Foi Demais) e Eduardo Gudin (Ainda Mais) e a seus mestres. Quando alguém da plateia o chama de "príncipe do samba", Paulinho corrige dizendo que o verdadeiro detentor desse título de nobreza é Roberto Silva, com quem aprendeu muitos sambas. "Sou apenas um vassalo dele", reforça, antes de mandar ver "Nervos de Aço" (Lupicínio Rodrigues). Essencial.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

50 anos sem "Lady Day"

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo", de 15/julho/2009, no caderno "Ilustrada"

Gardênia no cabelo
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em 1948, o baiano Jorge Cravo, Cravinho, 21 anos, relapso estudante de administração em Nova York, não saía do cinema. Não pelos filmes, de que não queria nem saber, mas pelos minishows de palco que os cinemas apresentavam entre as sessões -cinco ou seis por dia, estrelando um grande cantor ou orquestra.

Com um único ingresso, Cravinho assistia ao primeiro show, via o filme uma vez, assistia ao segundo show, dormia na sessão seguinte, assistia ao terceiro show, ia namorar a garota da bombonière durante mais uma sessão e assim por diante. E quem se apresentava nos cinemas? Frank Sinatra, Duke Ellington, Billy Eckstine, Tommy Dorsey, Nat King Cole etc. Certo dia, foi a vez de Billie Holiday.

Ao fim do último show de Billie, o emocionado Cravinho postou-se nos fundos do cinema e a viu sair, linda, de vestido justo e gardênia no cabelo. Seguiu-a até um botequim, entrou também e sentou-se ao balcão, a um ou dois banquinhos da deusa. Mas respeitou sua solidão e não a importunou.

Dois anos depois, de volta ao Brasil, Cravinho escreveu-lhe uma carta, aos cuidados da Decca, sua gravadora, convidando-a a cantar na Bahia. Para sua surpresa, Billie respondeu, autorizando-o a falar com um brasileiro amigo dela, chamado Guinle (Jorginho, claro), a respeito disso. Mas nada resultou, e a própria carta se perdeu.

Passaram-se séculos e, nos anos 80, Cravinho vendeu sua fabulosa coleção de LPs de cantores de jazz para um americano. E pode-se imaginar a surpresa deste ao abrir um LP de Billie Holiday e ver cair uma carta da cantora, dirigida a seu fã brasileiro, o qual só depois se lembrou de que a guardara dentro de um disco.

Nesta sexta-feira, são 50 anos da morte de Billie. Foi uma morte anunciada, mas Cravinho e o mundo até hoje não se refizeram.

domingo, 5 de julho de 2009

A canção em declínio

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 05/julho/2009, no caderno "+Mais!"

Canto para quem?
por Marcos Augusto Gonçalves, da Reportagem Local

José Miguel Wisnik questiona o "fim da canção", mas diz que gênero perdeu atenção e centralidade no país
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Caetano, Gil e Chico ainda produzem, mas não são ouvidos como antes
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"O título é uma pista falsa, uma provocação. Quem acreditar em seu sentido aparente corre o risco de levar um drible", avisou o músico, ensaísta e professor José Miguel Wisnik na noite de terça-feira passada ao abrir, ao lado do crítico e também músico Arthur Nestrovski, a sessão de encerramento de um ciclo de "aulas-shows" sobre música popular brasileira. O título ardiloso ao qual se referia Wisnik é "O fim da canção".

Embora já não fosse propriamente novo, o tema do fim da canção atraiu atenções e causou certo frisson com a publicação de uma entrevista de Chico Buarque a Fernando de Barros e Silva, na Folha, em dezembro de 2004, na qual o compositor considerava a possibilidade de o gênero a que se dedica ser um fenômeno característico do século passado.

Nessa linha, a ideia do fim da canção se inscreveria num contexto de esgotamento formal e de deslocamento de sua função social, num cenário em que se modificam parâmetros técnicos, culturais e ideológicos. Não por acaso, o enunciado ecoa outros análogos, como "o fim da pintura" ou o mais amplo e polêmico "fim da história", de Francis Fukuyama.

A canção que está no centro do debate não é uma canção qualquer, mas aquela, na definição de Wisnik, "sofisticada melódica e harmonicamente, com letras densas e polissêmicas, intimamente entranhadas com a música, sílaba por sílaba, capaz de atingir e interessar grandes públicos, atravessar diferenças sociais, irradiando lirismo e crítica social".

Para o professor e crítico Lorenzo Mammì, "em geral, toda arte, quando chega a um grau determinado de maturação, começa a se interrogar sobre sua própria morte".

Ele observa que "o tema da morte da arte existe desde o Renascimento (após Michelangelo não restaria mais nada a fazer) e é central na arte moderna, desde Hegel". Mas lembra, para evitar o drible: "É uma estratégia expressiva, nunca uma morte real: significa que cada obra se coloca no limite, tensiona a tradição até um ponto extremo."

Wisnik argumenta que, embora o lugar ocupado pela canção brasileira no século passado e o tipo de atenção concentrada que ela conquistou tenham se dissipado, isso não atesta o desaparecimento ou o mero empobrecimento da canção enquanto tal.

"É uma visão simplificada, porque esses mesmos não veem a canção, quando ela está na frente do nariz. "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, lançada no ano passado, mais bela ainda no YouTube, com ele cantando sozinho num quarto, é uma límpida afirmação de que a canção universal está viva", diz. Mas ao mesmo tempo — e paradoxalmente — "o fato de que quase ninguém a reconheça é um sinal de que a canção, tal como a conhecemos, acabou".

Em 2007, no ensaio "O Sonho dos Outros", publicado em "Lendo Música" (Publifolha), Mammì referia-se a uma declaração do artista norte-americano Robert Smithson, prevendo, nos anos 1960, que as redes de signos da cultura contemporânea chegariam a uma densidade tal "que formariam uma casca lisa e uniforme, sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto incontaminado".

Seria o caso da canção brasileira, cujo cânone, em seu entendimento, fecha-se num arco que vai de Ernesto Nazareth a Chico e Caetano.

Sobre a superfície sólida desse núcleo acabado poder-se-ia, agora, "correr à vontade" e já não haveria distâncias, "porque, descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções.

"O que teríamos, então, na cena contemporânea, como decorrência da "posse plena" do código da canção? Já de início uma produção que poderia ser chamada, sem viés negativo, de maneirista, na tradição do cânone. Além dela, um tipo de música que nasce nas franjas do pop, com o impacto do rap e da eletrônica, que se inclinaria, segundo Wisnik, "a uma linguagem menos travada entre música e letra, mais fluida, mais nebulosa, cheia de interstícios instrumentais ou sonoridades buscadas, como se quisesse não a atenção concentrada da tradição que veio da bossa nova e do tropicalismo mas a atenção flutuante que se ouve nos discos de Los Hermanos".

Por fim, permaneceria viva a tentativa de levar a canção ao paroxismo —"as últimas canções de Chico e Caetano me parecem ser um exemplo disso", diz Mammì.

Mas, para Wisnik, o mesmo ambiente que torna invisível — ou inaudível — a canção de Gil por ele citada não confere mais a Chico e Caetano o crédito de antes. "Não me refiro ao crédito da celebridade, que eles recebem em cotas de adulação, polêmica ou escândalo, mas ao do artista vivo", diz.

Em relação a Chico, "que se protege sabiamente da entropia reinante", parece mais fácil "não ouvi-lo no presente, mas no passado, onde ele soa mais palatável". Já sobre Caetano, "que se lança atiradamente por temperamento e que se confunde com a entropia reinante", parece mais fácil para muitos apenas "vê-lo como um narcisista frívolo".

Seja como for, é de perguntar se esse tipo de canção não estaria mesmo condenado a se tornar objeto de culto em círculos restritos, num fenômeno talvez semelhante ao que ocorre com a poesia. Lorenzo Mammì responde: "Nas décadas de 1960 e 70, a vida foi ritmada por canções: eram objetos de consumo, mas também tinham uma importância cultural nunca alcançada antes, nem depois. Essa fase acabou, não apenas no Brasil, mas no mundo: não há novos Chicos ou Caetanos, mas também não há novos Bob Dylan ou John Lennon. Quem compõe canções, hoje, ou faz apenas entretenimento, sem outras pretensões, ou explora um patrimônio consolidado, trabalhando de certa maneira na forma da variação ou do comentário. Cada canção remete a uma quantidade de outras canções. É nesse sentido que a canção atual se aproxima da poesia: não há mais canção ingênua, como não há, já há muito tempo, poesia ingênua."

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Tinhorão e Chico Buarque debateram o fim do gênero
Da Redação

Um dos primeiros registros da ideia da crise da forma "canção" na cultura brasileira foi feito durante um debate entre José Miguel Wisnik e o crítico e historiador José Ramos Tinhorão, em 2001, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Em entrevista a Pedro Alexandre Sanches, na Folha, em 2004, Tinhorão defende que esse tipo de composição, associado ao individualismo na arte, "feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra", havia chegado ao fim.

"A canção acabou, é inconcebível", dizia o veterano pesquisador nacionalista. "Hoje é tudo coletivo, com recursos eletroeletrônicos.

"No final daquele mesmo ano, falando à Folha, o compositor e escritor Chico Buarque afirmou que a canção, tal como é conhecida, talvez seja um fenômeno do século passado no Brasil. "A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito", avaliou então o compositor.

Para Chico, a marca dessa novidade está no rap, "uma negação da canção tal como a conhecemos" e, talvez, "o sinal mais evidente de que a canção já foi, já passou".

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Nobreza do samba
por Luís Augusto Fischer, Especial para a Folha

Ao longo do século 20, a canção se tornou um gênero "elevado" e fez síntese cultural e social decisiva do país
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O gênero cumpriu uma função formativa na cultura no Brasil
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Em 1820, quando Walter Scott foi agraciado com o título de baronete, houve algum embaraço na argumentação que justificou a concessão: o motivo real para conferir a nobilidade estava em seus romances, como "Waverley" e "Ivanhoé", mas o autor mesmo não os assinava, porque não via dignidade artística neles, comunicativos mas sem prestígio letrado; daí, o título acabou sendo justificado por livros de poesia que ele publicara na juventude, infinitamente menos importantes mas tidos como coisa elevada, condizente com a exigência aristocrática.

Quem evoca essa história é Antonio Candido, na abertura de um ensaio — e a anedota é preciosa para falar sobre a natureza contingente dos gêneros artísticos.

Scott, inventor do romance histórico, não viu nobreza no gênero que o consagrou; apenas uma geração depois, Balzac (1799-1850) se regozijava de sua condição de romancista; depois, pelo menos mais três gerações levaram os limites do gênero mais adiante, mantendo-o vivo e prestigiado. Finalmente, na altura da Segunda Guerra, não faltou quem detectasse o fim do romance.

Morreu? Não; nem ele, nem qualquer dos outros vários gêneros artísticos, que como toda criação humana no campo simbólico, nascem, se desenvolvem, encontram significação exemplar e depois mirram, mas não deixam de ter cultores e praticantes. Não está aí até hoje o soneto, criação renascentista que conheceu o zênite barroco, mas retornou algumas vezes ao cartaz, e só em língua portuguesa foi capaz de encantar talentos como Cláudio Manuel da Costa, Olavo Bilac, Cruz e Sousa e Vinícius de Moraes? Que dizer então do romance, forma muito mais complexa, capaz de se reinventar há quase 300 anos?

Com a canção se dá algo parecido. Sintetizada em momentos particulares, numa trajetória cumulativa hoje bastante visível, a canção brasileira talvez comece por Domingos Caldas Barbosa, no século 18, passa pelo encontro do lundu e da modinha locais com a habanera e a polca européias ao longo do século 19, encontra Sinhô e seu samba maxixado cem anos atrás, desdobra-se em samba, samba-canção, marchinha e algo mais na geração de Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva e outros, depura-se e lança-se em diálogo internacional vigoroso com a Bossa Nova, desenvolve ainda mais suas possibilidades na geração de Chico, Caetano e Paulinho da Viola e...

Século 21

Bem, aqui estamos, neste começo de século 21, na presença dessa geração, florescida nos anos 1960 e agora em seu esplendor, já seguida de algumas levas de novos e novíssimos, entre os quais tanta qualidade expressiva se vê, de Itamar Assumpção e Vitor Ramil a Chico Science e tantos outros.

Aqui estamos de posse de um magnífico patrimônio, que já configura concretamente muito mais do que as gerações antigas suspeitavam — nem Mário de Andrade, que se ocupou tanto da música brasileira, percebeu que a canção era, já em seu tempo, uma síntese cultural de alto nível de elaboração e de eficácia.

Jorge Luis Borges não imaginava que a canção seria um gênero de autores, mas suspeitava, no começo dos anos 1950, que as letras de tango, no primeiro meio século de vida, constituíam já um "inextricável corpus poeticum" coletivo argentino. Pois a canção brasileira é isso e é bem mais: um gênero artístico, literário e musical em aliança íntima, praticado por artistas complexos, que já passaram pela dura prova do tempo, talvez a única realmente relevante em matéria de história estética.

A maturidade do gênero dá o que pensar, mesmo que pelo caminho curto do debate sobre seu presumido fim, que talvez não seja mais que o auge de uma geração, certamente a melhor de todas até aqui. Que elementos se pode detectar de algo parecido a um limite, para além do acúmulo notável de obras-primas e da proximidade do aniversário de 70 anos daqueles grandes cancionistas?

Primeiro: a canção chegou a seu apogeu em estreita proximidade com os meios massivos de comunicação, o rádio para a geração de 30 e a televisão para a geração de Chico, e com suportes de fácil divulgação, em particular o disco.

Ocorre que esses elementos toparam com um destino inamistoso nos anos 90, a internet, que relativizou o papel do rádio e da tevê na busca de informação e diversão e afundou o navio das empresas gravadoras de larga escala. A prática de três gerações perdeu o sentido, justamente quando o gênero canção chegou a sua capacidade máxima.

Segundo: a canção nasceu, em parte, do analfabetismo, que está acabando. Gente que nunca soube escrever (letra ou música) foi imantada pela capacidade estética do gênero, e também pôde compor maravilhas no gênero: em grande medida, a história da canção brasileira acompanha, como virtude, a mazela da pouca cultura letrada.

Escolas da música

Mais ainda, a escola, com méritos e com vícios, tem tratado a canção como uma forma cultural válida, seja estudando Noel, Chico e Caetano, nas escolas sofisticadas, seja prestigiando o rap, nas escolas populares. A universidade também está aprendendo a lidar com essa riqueza, seja na área da literatura (mais favorável aos aspectos literários da canção), seja na área de Música (em geral mais resistente à canção, pelo peso da tradição erudita européia).

Terceiro: os meios de criação da canção são amplamente disponíveis hoje em dia, muito mais do que em qualquer outro tempo. Se um século atrás os pobres lidavam apenas com instrumentos de percussão para cantar e compor, agora o sujeito sem muita dificuldade pode ter em casa um computador capaz de milagres técnicos com que nem sonhava o inventivo produtor dos Beatles.

Tal disseminação altera o patamar da produção, da fruição, da circulação do gênero, e a médio prazo deve significar alguma outra reviravolta. Juntando o item anterior com este e forçando um pouco a barra, dá pra dizer que, ao contrário da frase-tese de Noel Rosa, agora samba se aprende na escola.

Quarto: vendo a coisa pelo lado estético-histórico exigente, e tomando a obra do citado Candido como referência, a canção cumpriu também uma função formativa na cultura no Brasil — cumpriu e está cumprido, para sempre.

Nascida de intensa negociação, formal e conteudística, entre matrizes européias e afroamericanas, entre preocupações elevadas e sutis ao lado de outras cotidianas e banais, a canção encontrou pontos de síntese irrecusáveis para quem observa o país, os quais além de tudo carregam a notável marca de conseguirem estabelecer pontes de comunicação estética de alto a baixo, entre brancos e negros, de norte a sul, de tudo quanto é jeito, num ambiente social tão desigual. (Estabeleceu pontes sem deixar de falar das desigualdades, ainda que muita fantasia conciliatória e muita trivialidade escapista circule pelas veias da canção.)

O Brasil se vê, se expressa, se afirma, se pensa na canção, tendo produzido ao menos dois momentos altos, a geração de 30 e a de 60, aquela nascendo junto com o rádio e a gravação elétrica do bolachão de 78 rpm, esta junto com a televisão e o longplay estereofônico de 33,3 rpm. O século 20 brasileiro como um todo não pode ser compreendido sem esses atingimentos.

O ponto do debate agora parece ser fruto de uma combinação singular: na maturidade do gênero — vistas as coisas tanto pelo ângulo dos artistas de obra comprovada, quanto pela ângulo da significação ampla e duradoura obtida por eles e sua obra —, seria esperável, historicamente, alguma crise, algum declínio, como sucedeu por exemplo ao romance brasileiro depois da geração de Graciliano, Erico, Lins do Rego, Guimarães Rosa, ou como sucedeu à poesia depois de Drummond e João Cabral.

Mas essa simples mudança de turno se potencializou enormemente com as mudanças tecnológicas, que tornaram acessíveis meios sofisticados de produção ao mesmo tempo que desorganizaram um mercado forte havia pela menos 60 anos. O que virá ninguém sabe e gera incerteza, até pessimismo; mas sim conhecemos a força do gênero, sua história vitoriosa, o largo patrimônio legado a todos, para sempre.

— LUÍS AUGUSTO FISCHER, crítico literário, leciona canção popular brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Parada de sucessos

Intelectuais elegem composições que contribuíram para a sua formação; "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso, é a mais lembrada

RUY FAUSTO

FILOSOFIA (Noel Rosa)
"O mundo me condena, e ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome"Tem uma melodia simples, que em si mesma parece não ter nada de especial. Mas isso, precisamente, faz com que esse samba se conserve melhor do que outros sambas mais elaborados. A letra exprime uma tristeza beirando o ressentimento.
TOURADAS EM MADRI (Braguinha e Alberto Ribeiro)
"Eu fui às touradas em Madri E quase não volto mais aqui"A melodia tem uma certa complexidade. A letra é uma joia. A tourada é conversa fiada. Há aí uma espécie de diluição satírica da grandeza (tudo somado, covarde) das corridas de touros.
CHEGA DE SAUDADE (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Vai minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser"Claro, o samba é muito bom, mas também entram as circunstâncias. Sabíamos que a música brasileira estava num compasso de espera [na segunda metade da década de 1950]. E lamentávamos. Então apareceu um samba, "o samba do Vinicius", como diziam (o Jobim ainda não era muito conhecido, pelo menos em São Paulo). Depois parti para a Europa, na minha primeira viagem. Quando voltei, era bossa nova por todo lado.

— RUY FAUSTO é professor aposentado de filosofia da USP e da Universidade de Paris 8.

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MANOLO FLORENTINO

MEMÓRIAS CONJUGAIS (Paulinho da Viola)
"Lapidar Foi a sua frase Proferida de um jeito natural Registrei esta preciosidade Sem alarde No meu livro de memórias conjugais"Para errar, com razão, várias vezes por dia.
BASTANTE (Sergio Natureza e Zé Luiz Mazziotti)
"Não havia nada além da réstia de sol Noite apagada e a madrugada ao redor Mas a luz que anunciava a manhã alaranjada Já bastava pra eu te enxergar melhor Não havia nada além da flor no lençol Rosa amassada pelo corpo e o cobertor Mas a luz que se infiltrava pelas frestas da vidraça Já bastava pra eu te decorar melhor"Para aprender a nunca esquecer de alguém, qualquer alguém.
MORA NA FILOSOFIA (Monsueto e Arnaldo Pessoa)
"Eu... vou lhe dar a decisão botei na balança... e você não pesou botei na peneira... e você não passou"Para aprender a esquecer alguém muito específico.

— MANOLO FLORENTINO é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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BORIS SCHNAIDERMAN

A FLOR E O ESPINHO (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha)
"Tire o seu sorriso do caminho Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho Espinho não machuca a flor Eu só errei quando juntei minh'alma à sua O sol não pode viver perto da lua"Temos nessa letra um dos grandes momentos da poesia brasileira.
ODETE (Herivelto Martins)
"Odete, ouve o meu lamento Lamento de um coração magoado Atenda o seu pobre seresteiro Vem de novo pro terreiro"Ela não me sai da memória desde o dia em que a ouvi cantada por um grupo de cariocas de morro, embarcados no navio que levou a Nápoles [na Itália], em julho de 1944, o primeiro escalão da Força Expedicionária Brasileira.
ATÉ QUEM SABE (João Donato e Lysias Ênio)
"Até um dia, até talvez, até quem sabe Até você sem fantasia, sem mais saudade Agora a gente tão de repente nem mais se entende"Marca um momento importante, pois aí temos um máximo de expressão com uma construção de texto muito arrojada.

— BORIS SCHNAIDERMAN é tradutor e crítico literário.

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MARIA RITA KEHL

SALA DE RECEPÇÃO (Cartola)
"Habitada por gente simples e tão pobre Que só tem o sol que a todos cobre como podes, Mangueira, cantar?"Cartola sonhou um Brasil chamado Mangueira. A pergunta que abre este samba resume a sociabilidade que ainda caracteriza o povo brasileiro. Cartola não explica o mistério, só responde: "Pois então saiba que não desejamos mais nada".
ESTRADA DO CANINDÉ (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
"Automóvel, lá, nem se sabe se é homem ou se é muié quem é rico anda em burrico quem é pobre, anda a pé"A linda toada de Gonzaga embala a miragem do Nordeste que poderia ter sido: mais pedestre e menos desigual.
TEMPESTADE (Clayton Barros e Lirinha)
"Quando o vento bate forte Que aspira o ar castigado Estremece o pulmão da seca"Para entender a poesia de Lirinha, é preciso conhecer o repentista Manuel Chudu: "Tem certas coisas no mundo/que eu olho e fico surpreso/ uma nuvem carregada/ se sustentar com seu peso/ e dentro de um bolo d'água/ sair um corisco aceso!". Dialogando com Chudu, Barros e Lirinha compuseram duas espantosas elegias sobre o acontecimento trágico da chuva no sertão.

— MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta.

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LAURA DE MELLO E SOUZA

ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"Caminhando contra o vento Sem lenço sem documento No sol de quase dezembro Eu vou"A linguagem era nova, cheia de referências visuais, e tudo estava ali, combinando o que nem sempre parecia possível combinar: despreocupação, engajamento político, revolução comportamental, orgulho latino-americano, amor, tecnologia, lirismo... Traduzia o espírito consagrado pelo Maio de 1968, e uniu todos os jovens do meu mundo.
ACORDA AMOR (Julinho da Adelaide e Leonel Paiva)
"Acorda, amor Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora Batendo no portão, que aflição"Era a primeira faixa de um disco histórico ["Sinal Fechado", 1974] do Chico [Buarque], que se ouvia até gastar, e sobretudo a primeira faixa. No limiar da idade adulta, entrando na universidade, traduzia todo o medo, a impotência e a sensação de absurdo daqueles anos horrorosos. Chico virou Julinho da Adelaide, com direito a uma entrevista concedida a Mário Prata no jornal "Última Hora".
GAROTA DE IPANEMA (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Olha que coisa mais linda Mais cheia de graça"É o horizonte utópico de um Brasil, como foi aliás o daquele Rio bonito e feliz que a dupla genial [Tom e Vinicius] amava tanto.

— LAURA DE MELLO E SOUZA é historiadora e professora na USP.

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JURANDIR FREIRE COSTA

CARINHOSO (Pixinguinha e João de Barro)
"Meu coração, não sei por quê Bate feliz quando te vê E os meus olhos ficam sorrindo E pelas ruas vão te seguindo Mas mesmo assim Foges de mim Ah, se tu soubesses como sou tão carinhoso E o muito, muito que te quero E como é sincero o meu amor Eu sei que tu não fugirias mais de mim"Sussurrada ou aos brados, desafinada ou no tom certo, é a cara do Brasil que se olha com ternura e sem vergonha de si.
JOÃO E MARIA (Chico Buarque)
"Agora eu era o herói E o meu cavalo só falava inglês A noiva do cowboy Era você Além das outras três Eu enfrentava os batalhões Os alemães e seus canhões Guardava o meu bodoque E ensaiava um rock Para as matinês"Pelo poder de evocar o encantamento da eterna infância de qualquer sonho de amor.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas Eu vou"Pela força mágica de afirmar a potência criativa da vida em meio à fragmentação do mundo.

— JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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BORIS KOSSOY

EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim Que nada nesse mundo levará você de mim"Marcou meus 17 anos, coreografia de uma paixão assumida numa estação de férias inesquecível no interior de São Paulo naquele ano de 1958.
RONDA (Paulo Vanzolini)
"De noite eu rondo a cidade A te procurar sem encontrar"Era, no meu tempo de reuniões e festinhas, a música que sempre acabava sendo dedilhada no violão. Todos conheciam a canção. Já maduro, tive a percepção que "Ronda" continuava sendo a canção que sempre teve um lugar especial no imaginário paulistano.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot"Foi a marcha-canção envolvente que teve profunda repercussão na minha geração. Caetano transmitiu sua mensagem poética com uma sucessão de fragmentos concatenados da mudança que a contracultura provocava nos EUA e na Europa e suas repercussões no mundo; sua canção tinha raiz na terra, mas sua visão era universal, contextual, basta analisarmos sua letra e seus códigos.

— KOSSOY é fotógrafo e professor de jornalismo na USP.

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ALCIR PÉCORA

CORAÇÃO MATERNO (Vicente Celestino)
"Disse um campônio à sua amada: Minha idolatrada, Diga-me o que quer"A sua narrativa é o seu trunfo: amplificação catastrófica e alucinada, imaginação voluptuosa a serviço de uma ideia de amor monstruoso e triunfante.
QUERO QUE VÁ TUDO PRO INFERNO (Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
"De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar Se você não vem e eu estou a te esperar"O decisivo é a carga declaratória de tesão que se acumula programaticamente até explodir em desabafo. O refrão acaba sugerindo bem mais do que diz, como se soltasse um palavrão desaforado, com gosto de cantada, "carpe diem" e ofensa ao mesmo tempo.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou"Não dá margem a moralismos, patriotadas ou fundamentalismos. Trata-se de acolher decidamente os muitos chamados da cidade e da vida moderna. Acordes marcados e distorcidos, refrão desencanado, descrição fragmentária, voz desafiadora: tudo concorre para a vibração urbana, intelectual e sensual ao mesmo tempo.

— ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas.

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LUIZ COSTA LIMA

CHÃO DE ESTRELAS (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa)
"Minha vida era um palco iluminado Eu vivia vestido de dourado"Composição excepcionalmente favorecida pela qualidade de alguns versos como "Foste a sonoridade que acabou" e, sobretudo, "Tu pisavas nos astros distraída". A expressão alcança tal concentração semântica, isto é, contém tantos planos expressivos, que poderia se definir como polifocal. O que vale dizer: os muitos planos formam uma metáfora inusitada.
MORTE E VIDA SEVERINA (Chico Buarque sobre poema de João Cabral de Melo Neto)
"Esta cova em que estás, com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida" Canção que nos ajuda a sustentar a resistência, aparentemente tão inútil, contra a ditadura de ontem e a arbitrariedade que continua conosco. A luta do poeta migra para o seu leitor.
A NOITE DO MEU BEM (Dolores Duran)
"Hoje eu quero a rosa mais linda que houver E a primeira estrela que vier"Os versos são banais e o sentimentalismo bem barato porque repete formulações repetidas que tornam sua expressão gasta porque saturada. Mas, por isso mesmo, a canção se destaca.

— LUIZ COSTA LIMA é crítico literário e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na PUC-RJ.

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Ruínas do pop
por Luís Augusto Fischer, Especial para a Folha

Michael Jackson realizou em seu corpo, e levou ao limite, a lógica da indústria do entretenimento

O mundo pop já conhece suas próprias ruínas. Toda ruína é semelhante na fisionomia, mas guarda uma história particular, perdida em suas lacunas.

A vida e a morte, e sua dança na dinâmica da vida pop — em que personalidade, expressão, imagem e mercadoria se imbricam de modo único —, já podem ser catalogadas em um conjunto de possibilidades, "topoi" existenciais dos que atuam no império da imagem espetacular.

Há muito se conhecem os suicídios desejados, atuados, da impossibilidade de sobreviver à contradição entre a arte e a negatividade social da crítica; o movimento da contracultura, moderno, versus o império do espetáculo e a imagem capital do ídolo, que se torna um reprodutor e também um responsável pelo sistema geral do fetichismo, do poder.

Os "war heroes" dos anos 1960 e 70 ou se mataram — Hendrix, Joplin, Morrison, Vicious — ou foram mortos, em um processo que revela a articulação de suicídio e assassinato, como o de Lennon; ou sobreviveram ao próprio suicídio protelado, como [Keith] Richards, ou [Eric] Clapton, ou o nosso Arnaldo Baptista; ou, ainda, aceitaram serem mortos simbolicamente ao reduzir o seu nível de conflito ao grau zero da mera reprodução do mundo como ele é.

O processo do apaziguamento histórico da ilusão de massas da contracultura foi muito violento, uma guerra simbólica, em que os ajustes foram feitos na carne e na vida, e à qual muitos não sobreviveram. A responsabilidade dessa violência foi totalmente transferida aos dionisíacos.

Michael Jackson representou outro modo de viver e de morrer no universo tanático dionisíaco do pop. Ele é um artista positivo, da afirmação do que existe, e da realização total desse próprio espaço social e histórico em seu corpo. Em primeiro lugar, tudo já foi dito sobre ele, e tocar outra vez no sistema explícito de suas formas e de seu dilema é simplesmente confirmar um clichê, uma reiteração do espetacular.

Mas, paradoxalmente, é este mesmo um dos aspectos mais importantes de sua forma humana e política: Jackson se transformou em um objeto de visibilidade total, ele passou a viver sob o signo daquilo que os psicanalistas chamam de "atuação", em uma escala de massas talvez jamais vista.

Isso quer dizer que apenas externalizando tudo o que sentia e vivia e passando ao ato, ao teatro da realidade exterior visível, o que portava em si, ele podia chegar a conhecer algo de si mesmo. Ao contrário de alguém que sonha, e preserva um ponto de mistério em seus sonhos, e uma relação de interioridade consigo mesmo, Jackson expulsava o sonho de si realizando-o na onipotência de seu lugar real de poder, no espetáculo e no dinheiro.

Zumbi

Sua atuação total dos anos 1980 e 90, seu espetáculo total, incluindo aí o próprio corpo, a ponto de virar uma coisa de si próprio, sinalizou mesmo a época de mudança do modo de orientar a subjetividade frente ao crescente poder do mercado e o falimentar valor da política: do humanismo do sujeito sonhador ao fetichismo e exibicionismo do psiquismo atuador, que busca se identificar com o poder crescente e total da coisa na cultura, a ação visível da própria forma mercadoria sobre os homens.

Seu sonho realizado, exposto ao voyeurismo desejante de milhões, totalmente projetado na realidade que o cercava, tornou-se de fato o pesadelo da regressão humana ao polimorfo perverso das origens de todos nós, metamorfoseado em espetáculo, hipervisível para todos, sem mais dimensão de intimidade ou interioridade.

Desde "Thriller" Jackson tornou-se o efeito especial por excelência, a imagem técnica da própria indústria atuando sem parar, encarnada.O sonho foi acompanhado universalmente em tempo real.

Um travestismo total, estranhamente familiar, que invertia e suspendia o sentido de tudo: o bonito jovem negro tornou-se andrógino, mas também branco, não apenas Diana Ross, mas também Liz Taylor, mas também, à medida que envelhecia, tornou-se imune ao tempo, perpetuamente jovem, ou criança, mas também coisa, brinquedo, o próprio corpo da mercadoria, boneco do sonho pop americano, ou Barbie, que virou Chuck, ou ídolo pop que virou múmia, ou Michael Jackson que virou zumbi...

Este novo Frankenstein espetacular, que realizou em sua metamorfose milionária e sinistra o estatuto autoritário da técnica, do dinheiro e da mercadoria sobre o corpo humano e sobre as relações do sentido das coisas, acabou por virar, e revelar, o pesadelo americano e, se todos os seus consumidores contribuíram com seu gozo diante da degradação do jovem ídolo, no fim das contas Jackson simplesmente não poderia ser preso pela América, como deveria ter sido, quando passou a "devorar" criancinhas como em um conto de fadas bizarro, que vem do real.

Todos sabemos, e Michael Jackson teve a loucura (ou a sanidade?) de deixar isto explícito, que aquela criança linda que entrou para a indústria do espetáculo aos cinco anos de idade, com voz de "castrato" e o soul de Marvin Gaye, é que foi devorada pelo verdadeiro monstro do nosso tempo. Mas o seu próprio desejo também criou esse monstro.

No final dos anos 1960, quando os Jackson 5 assinavam seu contrato com a Motown, um outro gênio, de outra família da música negra e pop americana, Sly, com sua família Stone, cantava ironicamente aquilo que o lindo menininho Jackson, com seu canto e sua dança de fazer chorar, um dia representaria inteiramente, sacrificando a isso todo corpo e espírito: "All the plastic people" [Toda a gente de plástico].

O amor de Diana Ross por ele era ao mesmo tempo admiração pelo enorme talento da música negra e simples amor materno, numa preocupação limite sobre o destino humano daquele profissional bebê. Em 1989, Gilberto Gil sinalizava a conexão interior de transformismo, poder e morte, que todos intuímos no ídolo: "Bob Marley morreu/ Porque além de negro era judeu/ Michael Jackson ainda resiste/ Porque além de branco ficou triste".

Entre o menininho maravilhoso que foi invadido pela indústria tão radicalmente cedo e a coisa em si do espetáculo, e a cena perversa acompanhada por todos, do adulto que era pura visibilidade, temos a história da assimilação negra ao mercado e ao fetichismo industrial americano, que não se tornou libertária. Michael foi um verdadeiro cidadão Kane do momento avançado do capitalismo turbinado. De fato, um "cidadão quem?"; ou, melhor, "cidadão o quê?".

— TALES AB'SÁBER , psicanalista, é autor de "O Sonhar Restaurado" (Ed. 34).