sábado, 9 de fevereiro de 2013

O amor à música e aos discos

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo", de 9/fevereiro/2013, seção "Opinião"

Duas coleções
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em 1991, conheci em São Paulo o acervo de um colecionador de discos, recém-falecido, posto à venda pela viúva. A casa ficava no Jardim Europa, e parecia que os 100 mil LPs e 78s, comprados entre 1928 e 1980, a tomavam inteira.

Victor Simonsen, o colecionador, tinha tudo de quase tudo: clássicos, ópera, jazz, big bands, Broadway, Hollywood, cantores americanos, franceses e brasileiros, valsas, tangos, boleros, mambos, bossa nova.

Simonsen era rico e, só com os lucros da sua Cerâmica São Caetano, poderia comprar um apartamento por semana onde quisesse. Em vez disso, comprava discos. Trazia-os às centenas de suas viagens e, como não podia se lembrar de tudo, vinham duplicatas. Em São Paulo, as lojas Brenno Rossi e Bruno Blois eram instruídas a levar-lhe, em consignação, tudo que saísse na praça. Sem tempo para examiná-los um a um, acabava ficando com o lote.

A coleção de Simonsen não tinha quem a comprasse fechada. Com isso, levou anos de mão em mão, dissipou-se no varejo e alimentou sebos e discotecas particulares, inclusive a minha.

Outro colecionador pôs a sua à venda em 2005. Era menor, mas magnífica: 8.000 LPs importados; a maioria, de jazz. Ele também dedicara décadas a construí-la, só que com enormes sacrifícios -quantas vezes deixou de comprar sapatos e até remédios para adquirir um disco. No fim, estava morando numa humilde casinha na rua do Oratório, na Mooca, onde os LPs tomavam chuva.

A coleção foi arrematada por um lojista da avenida São João, que lhe pagou um preço justo. Muitos discos tiveram de ser postos para escorrer. O colecionador era um compositor, pianista e cantor que todos amavam e admiravam, mas nunca teve uma carreira à altura. Duro, doente e deprimido, Johnny Alf não queria mais ouvir os discos que o tinham acompanhado pela vida.

sábado, 7 de julho de 2012

Colocando na rua uma coleção incrível

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo", de 7/julho/2012, seção "Opinião"
Quando o dia chegou
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO — Para quem gosta de cinema é um dos melhores sebos do Rio. Aliás, leva o nome de um filme de Chaplin. E, como todo sebo do gênero, tem também discos. Visitei-o outro dia e, ao espiar casualmente os CDs, a surpresa. Um estoque de primeiríssima — a maioria, importados, e muitos, lacrados, virgens, em edições de luxo e superluxo.

Lá estava o fino do jazz de todos os tempos. Duke Ellington, Count Basie, Benny Goodman. Os gigantes do sax-tenor, Lester Young, Sonny Rollins, John Coltrane. CDs duplos, triplos e quádruplos de Charles Mingus, Miles Davis, Modern Jazz Quartet. A caixa do trompetista Clifford Brown, na Mercury, com dez CDs. Em outra bancada, os clássicos. Estojos e estojos de Mozart, Beethoven, Wagner. Ou de Ravel, Mahler, Stravinsky. Os pianistas definitivos, as orquestras fundamentais, os solistas desse ou daquele instrumento.

Fui ao balcão. Perguntei se aquele acervo era de uma loja de CDs que tivera a infelicidade de falir. O lojista respondeu que não, que tudo viera de um colecionador. Não me disse o nome do homem nem lhe perguntei, mas me deu a ficha.

Tratava-se de um cinquentão, profissional bem-sucedido e comprador compulsivo. Ao entrar numa loja no Rio, em Nova York ou Paris, saía com dezenas, centenas de discos. Muitos mais do que a sua capacidade de escutá-los. Mas tudo bem: estava se estocando para quando se aposentasse. Aí, sim, mandaria vir os chinelos, relaxaria e ouviria a grande música.

Há um ano, a aposentadoria chegou. Nas primeiras semanas, ele cumpriu seu projeto e começou a tocar os discos. Mas, aos poucos, desconfiou de que bom mesmo era sair à rua, andar à toa, namorar, tomar um chope, desfrutar a praia, os amigos, o Rio. Finalmente, convenceu-se: aposentadoria era isso. Para evitar recaídas, chamou o sebo e vendeu tudo de uma vez — 5.000 CDs.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Gal Costa desafina e se humaniza

Texto publicado no portal "Estadao" em 25 de maio de 2012,  12h46

Gal Costa desafina e sofre em estreia de show

por João Luiz Vieira


Gal Costa está rouca e desafinou como se iniciante fosse em sua apresentação de estreia do show Recanto no HSBC, em São Paulo, na noite de quinta-feira (24). Isso corresponde a, por exemplo, eu estar incapacitado de continuar a escrever esse texto, como se estivesse com os movimentos dos braços ou o cérebro comprometidos. Uma cantora está refém de suas cordas vocais, e as da Gal estavam baqueadas, consequência da série de infecções no aparelho respiratório que uma das cinco maiores cantoras do País ainda vivas teve há poucos dias e a fez cancelar shows da Virada Paulista.
Gal Costa está rouca, e daí? Se fosse qualquer uma dessas jovens mocinhas que cantam como se virgens ainda fossem, não preciso nem citar nomes, seria grave. A carreira delas ficaria arranhada como a garganta da Gal, que em três anos chega a 70 anos. Mas uma mulher que não precisa mais provar que é excelente pode até ficar doente, mesmo que os ingressos mais baratos do show custassem R$ 100. Vale pagar até mais para ver um mito mostrar-se vulnerável diante de você. Como se descesse do pedestal e dissesse: "Sim, falho". Gal chegou a segurar o pescoço enquanto cantava Minha Voz, Minha Vida, canção onde ela assumiu, de novo, que depende daquele pedaço do corpo para ficar de pé.

Por isso, o show foi, no mínimo, histórico. Ela não conseguiu acertar os agudos na primeira metade do show, e chegou a constranger quanto tentou seguir Divino Maravilhoso. Como os grandes, que se sabem falíveis, foi ao microfone e disse: "Estou rouca, mas mesmo assim vamos fazer um show bonito". Aplausos, claro, e não era de uma plateia sádica. Gal se humanizou diante de nós e ganhou um gesto de amor, de compaixão.

Daí para frente, foi como se uma Força Estranha - que ela defendeu no bis - tomasse conta dela. Lindo também foi ela várias vezes recorrer ao diretor e mentor do espetáculo, além de amigo de 50 anos, Caetano Veloso. Como só os cúmplices conseguem, o cantor e compositor baiano passou, pelo olhar, que, sim, também a perdoava, e não parou de cantar com sua musa. "Caetano tá ali nervoso com minha voz. Imagine eu!", disse para o senhor de cabelos grisalhos à sua frente.

Dito tudo isso, dá para dizer que o show teve, no mínimo, quatro momentos de rasgar o peito em dois. Recanto Escuro, música sobre dignidade, parecia um recado pungente aos que acham que não cairão. Vapor Barato ganhou um arranjo de altíssimo nível amparado pela espetacular atuação do guitarrista Pedro Baby. A já citada Minha Voz, Minha Vida e Autotone Autoerótico onde ela, disparou, a mando de Caetano, frases como "O autotone não basta pra fazer o canto andar/pelos caminhos que levam à grande beleza/americana global, minha voz na panela lá/uma lembrança secreta de plena certeza". E não se fala mais nisso.



sexta-feira, 9 de março de 2012

Musica "antiga" interessa mais?

Texto publicado no site do jornal "O Globo", página de "Cultura", de 9/março/2012, às 7h30, atualizado às 8h40

Reedição de discos antigos supera lançamento de inéditos no Brasil

por Leonardo Lichote

Levantamento mostra que gravadoras consideram o passado menos arriscado que o presente

RIO - A observação atenta dos CDs de artistas brasileiros que chegam ao mercado não deixa dúvidas: o passado é cada vez mais presente. Desde as caixas que reeditam obras completas dos grandes nomes da MPB, passando pelas raridades do samba e das primeiras décadas da canção no Brasil e chegando às pérolas obscuras ou consagradas do rock nacional, a impressão que se tem é que a indústria fonográfica hoje lança mais CDs antigos reeditados do que produtos inéditos.

Impressão que se confirma num levantamento feito pelo GLOBO junto a quatro gravadoras (Sony, Universal, Warner e Biscoito Fino), somente levando em conta CDs (DVDs e Blu-Ray não foram considerados) de artistas brasileiros lançados desde janeiro de 2011 — e acrescentando o planejamento até o fim de 2012. A proporção é de 55% de relançamentos contra 45% de lançamentos — uma conta confirmada por executivos da indústria fonográfica.

Há muitas razões para o fenômeno — que se repete em todo o mundo, notam os executivos. Uma delas é levantada por José Celso Guida, diretor executivo da Biscoito Fino — gravadora que investe pouco em relançamentos até por ser jovem, de pouco mais de uma década, e não dispor de um catálogo enorme.

— Para se produzir um CD novo ainda se gasta muito, e o retorno demora e é incerto. Algumas gravadoras podem escolher não ter risco e se capitalizar com produtos antigos — argumenta. — É o momento que estamos passando. É aquela história: durante o nevoeiro, o marinheiro leva o barco devagar. Neste momento de maré baixa, é até prudente investir menos. Há um crescimento no mercado digital, mas no físico não. Quando se fala em crescimento do físico, ele se dá por conta de fenômenos como a Paula Fernandes, não é generalizado.

O aumento da participação no mercado de um consumidor mais exigente, que procura comprar os discos originais, também provocou o fortalecimento das reedições. O momento atual vem sendo alimentado ao longo da última década, quando o formato das coletâneas — que teve um sucesso incontestável nos anos 1990 — entrou em decadência.

— A primeira leva de reedições veio com a chegada do CD — lembra José Eboli, presidente da Universal Music Brasil, traçando um histórico. — Aquela foi uma época áurea para a indústria: com um novo formato, ela começou a vender de novo aqueles discos para as pessoas que já os tinham. Depois veio a fase das séries de coletâneas, como "Millennium", "Personalidade", cada gravadora tinha as suas. Isso foi explorado à exaustão, e os clientes passaram a recusar porque era sempre mais do mesmo. Às vezes, um mesmo artista tinha coletâneas parecidas lançadas por gravadoras diferentes, era confuso. Com a fonte das séries secando, começaram os relançamentos mais bem produzidos. Aí entrou o trabalho dos pesquisadores especializados, para valorizar esses produtos com um olhar diferente, o levantamento de raridades.

Pesquisadores como Charles Gavin, Rodrigo Faour e Marcelo Fróes estão por trás de várias reedições, em parcerias com as majors. Com seu selo Discobertas, Fróes é um dos responsáveis, talvez o maior na esfera independente, pela atual enxurrada de relançamentos. Só de 2011 para cá, ele pôs nas lojas (em caixas ou em CDs avulsos) artistas como Celly Campello, Zimbo Trio, Ed Lincoln, Moreira da Silva, Xangô da Mangueira e Candeia. Outra independente que procura valorizar os arquivos da música brasileira é a Joia Moderna, do DJ Zé Pedro. Ela já relançou CDs de Vanusa, Lecy Brandão e Edy Star, entre outros.

A tendência não parece dar mostras de enfraquecimento em 2012. Há produtos fortes no planejamento das gravadoras: o relançamento de "Transa", de Caetano Veloso, e de uma caixa com a discografia de Chico (ambos na Universal); a reedição da obra de Luiz Gonzaga (Sony); a coleção completa de álbuns dos Titãs (Warner). Em todos os casos, o material traz bônus, algo que Sergio Affonso Fernandes, presidente da Warner Music Brasil, chama de "aprofundamento do olhar sobre o catálogo".

— As edições dos Titãs serão especiais — adianta Sergio Affonso. — Teremos uma totalmente inédita do "Cabeça dinossauro", por exemplo.

iTunes: novo olhar sobre os catálogos

Há uma força simbólica no fato de haver mais relançamentos que lançamentos no mercado da música brasileira. Mais do que isso, nota o diretor da Biscoito Fino:

— Relançamento demais é estagnação. Mas não acredito que seja esse o caso com o mercado brasileiro.

O fantasma da estagnação é afastado, explica Eboli, quando se olha a importância das reedições e dos produtos inéditos no faturamento da gravadora:

— A conta mais importante para nós é a do número de vendas. O ideal é que ela esteja dividida com 60% do faturamento de produtos novos e 40% para catálogo. É claro que isso varia, mas se for muito diferente disso, por exemplo o contrário, é preocupante. Porque significa que você não está produzindo hoje o catálogo para o futuro.

O presidente da Warner acrescenta:

— Normalmente, a reedição é para compor venda, não é um produto que faz uma diferença fundamental no faturamento. Mas é claro, se você bota 35 títulos juntos no mercado e cada um vende duas mil unidades, você tem 70 mil discos vendidos, o que é considerável.

Há um dado novo na relação das gravadoras com o catálogo. A chegada do iTunes ao Brasil promete um novo olhar sobre o material que eles possuem em seus arquivos.

— O iTunes te obriga a olhar para o catálogo, porque você tem que digitalizar, disponibilizar tudo. E mexer ali te leva a pensar em novas reedições — nota Sergio Afonso.

Eboli foi avisado pelos diretores da Universal internacional sobre a força do catálogo para o iTunes, mas mesmo assim se surpreendeu.

— Discos como "Elis & Tom" foram top ten — conta.

O digital, aliás, é visto por ele como o possível futuro dos catálogos. O executivo crê que as atuais reedições, como aconteceu com as coletâneas, entrarão em decadência:

— Vai chegar uma hora em que o atual formato de reedições vai se esgotar também. Estamos chegando perto do esgotamento da exploração desse catálogo com produtos físicos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

...E por falar em “pirataria”...

Texto publicado no site http://www.estadao.com.br/, de 17/fevereiro/2012, 3h 04

Quase música
por Nelson Motta - O Estado de S.Paulo

Steve Jobs criou o iPod e revolucionou nossos hábitos de ouvir música, mas em casa só ouvia discos de vinil, contou seu amigo Neil Young, lenda viva do rock. Eles não se contentavam só com música e letra, canto e instrumentos - queriam que tudo isso soasse nos ouvidos com a potência, os timbres e a integridade da sua massa sonora original.

Como Tim Maia, queriam mais grave! Mais agudo! Mais eco! Mais retorno! Mais tudo! Porque nos fabulosos iPods, iPhones e iPads de Jobs o som que se ouve está comprimido em MP3 com apenas cerca de 10% dos sons que foram gravados. Para ouvi-lo mais próximo da gravação original, só em formatos como o wav, que contém muito mais dados, em arquivos muito mais pesados. Ou em vinil.

Mais do que uma discussão idiótica de audiófilos, de loucos por som, é um debate sobre pirataria, troca de arquivos, livre circulação de músicas na internet. Como a grande maioria dos consumidores de música se contenta em ouvir uma versão "popular" em MP3, isto também sugere novas ideias sobre o assunto. Neil Young (des)considera esses MP3 vagabundos que rolam na rede e nas bancas piratas como um novo rádio da era digital, uma difusão incontrolável, quase música; quem gosta de música de verdade compra um CD de boa qualidade sonora ou paga um download pesado de alta definição. Ou um vinil.

Mas como nada se compara ao impacto e sensação de ver e ouvir música ao vivo, de perto, em ambientes com boa acústica, a consequência direta da difusão maciça de (quase) música digital é uma espetacular valorização dos shows ao vivo, por ser uma experiência sensorial única e irrepetível, como o teatro.

No tempo do cassete, copiar músicas para um amigo era visto pelas gravadoras como divulgação de seus discos, por que agora fazê-lo por e-mail, ou num site de trocas, seria um crime? A irracionalidade e a ganância são atropeladas pela realidade tecnológica, o caminho sem volta faz uma curva ascendente.

Nos Estados Unidos, pela primeira vez o volume de downloads pagos superou as perdas com a comercialização de CDs, o futuro finalmente chegou para a nova indústria da música gravada.

Link original: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,quase-musica-,837009,0.htm

sábado, 21 de janeiro de 2012

R.I.P. Etta James — I love you!

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo", de 21/janeiro/2012, seção "Opinião"

Explosiva, ela privilegiava a emoção, na vida e na música

por Carlos Calado, colaboração para a Folha

Na cena da música popular norte-americana, Etta James foi uma das cantoras que melhor expressaram, na década de 60, a dualidade poética e política da soul music.

Em canções repletas de referências a frustrações amorosas, esse gênero musical embutia também o desejo do negro de possuir os mesmos direitos dos outros cidadãos.

Ela colocava suas emoções à frente de tudo, tanto nos palcos como na vida. Era uma mulher extremada, capaz de revelar amor ou ódio com a mesma intensidade.

Cantava como falava: sabia ser suave, mas ficou conhecida pelas explosões, fossem de raiva, ressentimento ou sensualidade.

Quando esteve pela primeira vez no Brasil, em 1978, deu um show de excessos. Usando roupas espalhafatosas e um cabelão "black power", chocou parte da plateia com insinuações sexuais e gestos obscenos, mais apropriados a uma estrela junkie do rock.

Na década seguinte, surpreendeu de novo os fãs paulistanos. Já próxima dos 50, mais sóbria, entrou no palco como uma "lady", com joias e os cabelos alisados, mesmo deixando claro, logo depois, que não abandonara a atitude intensa e provocadora.

"Sou esquizofrênica até os ossos", diria ao escritor David Ritz, que assinou com ela a autobiografia "Rage to Survive" (algo como "avidez por sobreviver"), publicada em 1995. "Tive duas mães, duas infâncias e vivi duas vidas diferentes, em duas cidades. Talvez por isso tenha me tornado duas pessoas diferentes", completa.

Jamesetta Hawkins foi criada pelos tios. Sua mãe, que engravidou aos 14 anos, demorou a revelar à filha a identidade de seu pai.

"Eu a via como uma deusa distante, uma estrela que eu não podia tocar, não podia entender, nem mesmo chamar de mãe", contou a cantora, expondo uma de suas feridas mais profundas.

Juntando a isso seu precoce ingresso no "showbiz", seguido pelo envolvimento com drogas pesadas, pode-se entender o explosivo contexto de suas interpretações para sucessos como "Tell Mama", "I'd Rather Go Blind" ou "All I Could Do Was Cry".

Pena que a romântica balada "At Last", um de seus maiores hits, tenha sido pivô de um episódio constrangedor, já nos seus últimos anos.

Etta não perdoou o fato de Beyoncé, que a interpretou no filme "Cadillac Records" (2008), ter sido convidada a cantar a música em festa que comemorou a posse do presidente Obama, em 2009.

"Ninguém vai roubar essa canção de mim. Ela é minha", desabafou ao se apresentar no Jazz Fest de Nova Orleans, assim como faria em outras aparições naquele ano.

Uma intérprete de sua importância não precisaria ter escancarado publicamente esse ressentimento. Mas a impulsiva Etta James preferiu dar voz às suas emoções até o final da vida.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Era digital provoca mudança dos ventos

Texto publicado no site do jornal "O Globo", de 18/dezembro/2011, 7h35, atualizado 8h01, link: http://oglobo.globo.com/cultura/era-digital-da-musica-pune-os-artistas-que-nao-fazem-shows-3470469

Era digital da música pune os artistas que não fazem shows
por Luiz Fernando Vianna

Compositores veem queda de sua renda e da importância das canções

RIO - O letrista Mauro Aguiar diz que ser compositor hoje equivale a ter começado a fazer sexo na época da explosão da Aids.

A comparação se baseia nas dificuldades enfrentadas pelos autores que não costumam fazer shows, já que os avanços digitais, embora ampliem as possibilidades de gravação e divulgação, retiram os direitos autorais do centro do sistema de remuneração de artistas, lugar ocupado agora pelas apresentações ao vivo.

Na imensidão da internet, não há como aferir o quanto uma música é trocada ou tocada, enfraquecendo mais os que já arrecadam pouco com vendas de discos e execuções em rádios, privilégios de uma minoria. Um alento para eles foi o lançamento, na semana passada, da loja iTunes no Brasil, que poderá transformar em renda parte dessa movimentação virtual.

"O futuro do artista está no palco. O disco será só o ingresso. Imagino o momento em que vou me apresentar numa cidade por um preço que muita gente achará caro, mas quem pagar terá o seu artista num momento único, e ganhará um kit com CD, DVD e MP3", disse Lenine à revista "Piauí" em novembro.

Esse cenário torna nebuloso o futuro do artista que não ganha cachê para subir ao palco.

— As críticas ao capital no século XX são eivadas dessas atitudes receosas em relação às novidades: "Vai tirar do mercado uma quantidade significativa de criadores, produtores." Não tem jeito, é assim — afirmou Gilberto Gil em recente entrevista ao GLOBO.

Defesa das canções

As posições de Gil pró-cultura digital lhe custaram, durante os anos em que foi ministro da Cultura (2003 a 2008), polêmicas com letristas, entre eles Aldir Blanc e Ronaldo Bastos.

— O discurso da modernidade não pode ser contra o artista. Eu tenho certo orgulho de estar na contramão — afirma Ronaldo, que diz ter realizado neste ano o CD "Liebe Paradiso" para salvar sua vida e se livrar das conversas sobre direitos autorais, pois sua preocupação é a canção, cuja importância vem sendo reduzida, a seu ver.

— A canção é o fundamento da atividade artística e do negócio que gira em torno da música popular. Os cantores estão virando compositores, fazem coisas legais, bem produzidas, mas faltam as grandes canções. Querem fazer música brega e não são viscerais como os bregas originais.

Aldir, letrista de várias grandes canções, mas sem temperamento ou saúde para realizar shows, está sentindo as consequências da nova economia da música.

— Minha renda mensal cai há anos, e cada ano é pior que o anterior. No momento, estamos vivendo de empréstimos bancários e adiantamentos, cada vez mais difíceis, porque viram bolas de neve. Março, junho, setembro e dezembro costumavam ser os melhores meses, porque ao pagamento do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) somavam-se os pagamentos das editoras pelas vendas de discos. Hoje, você ter a abertura da novela "O astro" ("Bijuterias", música dele com João Bosco) não representa mais nada, seja como direitos de execução, seja como venda.

Maior transparência do Ecad é o que, como tantos outros, pede Mauro Aguiar, de 43 anos. Mesmo gravada por Ney Matogrosso, uma parceria sua com Zé Paulo Becker não lhe rendeu mais de R$ 200. Seu maior retorno se deu quando "Baião de Guanabara" (melodia de Guinga) foi gravada por Sergio Mendes nos EUA, onde as regras são mais claras.

— Resolvi fazer discos e shows para ter mais acesso ao público, mas sempre tive prejuízo nos shows — diz ele, que trabalha como designer.

As mudanças afetaram até um antigo campeão de vendas como Zeca Pagodinho. Os compositores de seus sucessos, que recebiam gordos adiantamentos, hoje também apostam em shows para complementar a renda.

— O ruim é passar vergonha, porque não entendem como o autor de "Deixa a vida me levar" não tem muito dinheiro — brinca Serginho Meriti.