quinta-feira, 30 de julho de 2009

Cantor desafinado nunca mais?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 30/julho/2009, no caderno "Ilustrada"

"Photoshop musical" não deixa cantor desafinar

por Clarice Cardoso, colaboração para a Folha

Muito usado na indústria fonográfica, software Auto-Tune divide opiniões

Programa é usado para afinar vozes de intérpretes ou criar efeito "robotizado" como o da música "Believe", da cantora americana Cher

Se para capas de revista sumir com rugas e gordurinhas é trabalho para o Photoshop, na música o segredo para afinar o gogó é o Auto-Tune. No último mês, o software criado em 1997 virou notícia e alvo do rapper Jay-Z, que lançou a música "D.O.A. (Death of Auto-Tune)" -"morte ao Auto-Tune".

Na carona, Wyclef Jean lançou "Mr. Auto-Tune", em que canta: "Sou o sr. Auto-Tune/ Se você desafinar/ Transformo você em celebridade". Reações não tardaram: Kanye West tirou-o de seu CD; Mary J. Blige e Black Eyed Peas defenderam o programa. "Usamos com bom gosto", disse Fergie.

A Antares Audio Tech, que produz o software, levou com bom humor. À Folha, enviou uma charge em que a embalagem do programa diz que sua morte é um "rumor exagerado". "Divulgaram nosso nome entre um público que não o conhecia", diz Marco Alpert, vice-presidente de marketing.

Polêmicas à parte, o Auto-Tune e um similar, o Melodyne, são usados todos os dias em estúdios do Brasil e do mundo. Normalmente, corrigem trechos que "passariam despercebidos", dizem músicos e produtores ouvidos pela reportagem.

"Não se pode dizer que quem usa esses programas não canta bem. Na verdade, eles permitem que se aproveite uma gravação mais emotiva, que pode ter saído do tom em algum momento", diz Jorge Vercilo. "No meu DVD, supervisionei o trabalho do afinador e desfiz correções que o programa tinha feito em trechos que "passeavam pelas notas", um recurso do intérprete que o programa nem sempre entende."

Fábrica de mentiras

"Os puristas dizem que você tem que cantar sem errar, mas sou prático", diz Rogério Flausino, do Jota Quest. "Gravo tudo num dia e repasso com o técnico no outro. O cantor deve arrumar a afinação porque é ele quem sabe o que cantou."

Preta Gil, que usa o programa "em detalhes", acha que há exagero. "Tem cantor que relaxa porque o programa depois corrige. Mas ele também tira a espontaneidade. E tem muita cantora nova com voz de pato por causa do Auto-Tune."

O produtor Deeplick, que já trabalhou com Wanessa Camargo e Seu Jorge, concorda. "Ouço pessoas que me dão a impressão de não cantarem nada, de serem construídas." "Mas cantor montado não faz sucesso, desaponta ao vivo", diz o produtor Luis Paulo Serafim, que já trabalhou com Maria Bethânia e Rita Lee e ganhou sete Grammy. "O Auto-Tune é a fábrica de mentiras da nossa música, deixa qualquer um afinadinho. Mas o público percebe que soa pior."

Apollo Nove, que já produziu de Otto a Bebel Gilberto, não usa mais o programa. "Já fiquei uma semana de segunda a quinta passando Auto-Tune numa música [risos]. Mas desencanei, ele dá uma detonada na voz. O melhor som é o puro."

"Como público, acho legal os efeitos do software. Mas meu interesse em um cantor que não canta direito e usa o programa como maquiagem é bem pequeno", diz João Marcello Bôscoli, presidente da Trama.

Brendan Duffey, que já produziu bandas como Linkin Park e Maroon Five, disse à Folha se irritar com os puristas. "A tecnologia muda a arte. Pra que deixar seu disco meio estragado se ele pode ficar superbonito com tecnologia?".

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Paulinho da Viola e Roberto Silva

Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo", de 17/julho/2009, no "Caderno 2"

Paulinho se diz "vassalo" do verdadeiro príncipe do samba
por Lauro Lisboa Garcia, RIO

Reverenciando o mestre Roberto Silva e cantando clássicos, novidades e pérolas esquecidas, ele está de volta ao Canecão

Paulinho da Viola é daqueles patrimônios cariocas que a gente devia ter o privilégio de poder visitar toda vez que fosse ao Rio. Na sexta-feira passada ele reestreou no Canecão, onde volta hoje para mais três apresentações, o show do projeto "Acústico MTV".

A certa altura do desfile impecável de seus elegantes sambas, um fã gritou do fundo da plateia: "Faz mais shows". O público saudoso tem por que pedir. É pena que Paulinho não tenha vindo a São Paulo ainda desta vez. Portanto, mais um bom motivo pra pegar a ponte aérea e fazer um programa desses para voltar com a cabeça arejada.

O desgastado "Acústico", como todo mundo já sabe, é um projeto revisionista. Por isso, não faltam os grandes êxitos do artista em questão. Mas, como também não se cansa de dizer, Paulinho sempre foi acústico e sua nobreza está muito além disso. Discretamente, ele explica por que incluiu tantos sucessos antigos no roteiro. Como se pedisse passagem ou licença para fazer a gente ouvir de novo maravilhas como "Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida", "Coisas do Mundo, Minha Nega" (em momento sublime de voz e violão), "14 Anos", "Por Um Amor no Recife", "Sinal Fechado", "Coração Leviano" e tantos outros achados de lamento e alegria que povoam a boa consciência coletiva.

Se tudo se transformou, Paulinho não mexe com seu samba para parecer moderno. Ele já nasceu outro, eterno, está sempre atual, tem sempre um frescor nas sutis mudanças que faz para ser quase o mesmo, atemporal. Tanto é que ele conta que pegou uma melodia que tinha guardada, de samba tradicional, "bem antiga" e, por brincadeira, mandou para Marisa Monte, que replicou para Arnaldo Antunes. Os três assinam o "Talismã", agora já assimilado pelo público, o que confere ao samba um tom de velha novidade. Seu tempo é hoje.

Versos de clássicos que ele canta são lapsos de declarações de princípios: "Quando penso no futuro/ Não esqueço do passado" (Dança da Solidão); "Tá legal/ Eu aceito o argumento/ Mas não me altere o samba tanto assim" (Argumento); "Não sou eu quem me navega/ Quem me navega é o mar" (Timoneiro).

Alternando ao cavaquinho e ao violão — e acompanhado por uma ótima banda que tem Mário Sève, Cristóvão Bastos,João Rabello, filho de Paulinho, e três vocais femininos, todos absolutamente afinados com seu estilo e sua história —, ele é ao mesmo tempo despojado e sofisticado, velha guarda e menino.

Outro toque de atualidade vem de "Amor à Natureza", que não está no DVD "Acústico". Agora chega a notícia de que as praias do Leme ao Leblon estão com níveis acima do aceitável de coliformes fecais. Paulinho lembra que este samba de 1975 nasceu de uma charge de Jaguar, que ironizava justamente o fato de os banhistas terem de conviver com poluentes estranhos boiando ao lado. Mas há uma esperança de sobreviver, como ele diz no fim da canção, em forma de samba-enredo.

Ele também rende tributo a seus parceiros Capinam (Coração Imprudente), Mauro Duarte (Foi Demais) e Eduardo Gudin (Ainda Mais) e a seus mestres. Quando alguém da plateia o chama de "príncipe do samba", Paulinho corrige dizendo que o verdadeiro detentor desse título de nobreza é Roberto Silva, com quem aprendeu muitos sambas. "Sou apenas um vassalo dele", reforça, antes de mandar ver "Nervos de Aço" (Lupicínio Rodrigues). Essencial.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

50 anos sem "Lady Day"

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo", de 15/julho/2009, no caderno "Ilustrada"

Gardênia no cabelo
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em 1948, o baiano Jorge Cravo, Cravinho, 21 anos, relapso estudante de administração em Nova York, não saía do cinema. Não pelos filmes, de que não queria nem saber, mas pelos minishows de palco que os cinemas apresentavam entre as sessões -cinco ou seis por dia, estrelando um grande cantor ou orquestra.

Com um único ingresso, Cravinho assistia ao primeiro show, via o filme uma vez, assistia ao segundo show, dormia na sessão seguinte, assistia ao terceiro show, ia namorar a garota da bombonière durante mais uma sessão e assim por diante. E quem se apresentava nos cinemas? Frank Sinatra, Duke Ellington, Billy Eckstine, Tommy Dorsey, Nat King Cole etc. Certo dia, foi a vez de Billie Holiday.

Ao fim do último show de Billie, o emocionado Cravinho postou-se nos fundos do cinema e a viu sair, linda, de vestido justo e gardênia no cabelo. Seguiu-a até um botequim, entrou também e sentou-se ao balcão, a um ou dois banquinhos da deusa. Mas respeitou sua solidão e não a importunou.

Dois anos depois, de volta ao Brasil, Cravinho escreveu-lhe uma carta, aos cuidados da Decca, sua gravadora, convidando-a a cantar na Bahia. Para sua surpresa, Billie respondeu, autorizando-o a falar com um brasileiro amigo dela, chamado Guinle (Jorginho, claro), a respeito disso. Mas nada resultou, e a própria carta se perdeu.

Passaram-se séculos e, nos anos 80, Cravinho vendeu sua fabulosa coleção de LPs de cantores de jazz para um americano. E pode-se imaginar a surpresa deste ao abrir um LP de Billie Holiday e ver cair uma carta da cantora, dirigida a seu fã brasileiro, o qual só depois se lembrou de que a guardara dentro de um disco.

Nesta sexta-feira, são 50 anos da morte de Billie. Foi uma morte anunciada, mas Cravinho e o mundo até hoje não se refizeram.

domingo, 5 de julho de 2009

A canção em declínio

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 05/julho/2009, no caderno "+Mais!"

Canto para quem?
por Marcos Augusto Gonçalves, da Reportagem Local

José Miguel Wisnik questiona o "fim da canção", mas diz que gênero perdeu atenção e centralidade no país
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Caetano, Gil e Chico ainda produzem, mas não são ouvidos como antes
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"O título é uma pista falsa, uma provocação. Quem acreditar em seu sentido aparente corre o risco de levar um drible", avisou o músico, ensaísta e professor José Miguel Wisnik na noite de terça-feira passada ao abrir, ao lado do crítico e também músico Arthur Nestrovski, a sessão de encerramento de um ciclo de "aulas-shows" sobre música popular brasileira. O título ardiloso ao qual se referia Wisnik é "O fim da canção".

Embora já não fosse propriamente novo, o tema do fim da canção atraiu atenções e causou certo frisson com a publicação de uma entrevista de Chico Buarque a Fernando de Barros e Silva, na Folha, em dezembro de 2004, na qual o compositor considerava a possibilidade de o gênero a que se dedica ser um fenômeno característico do século passado.

Nessa linha, a ideia do fim da canção se inscreveria num contexto de esgotamento formal e de deslocamento de sua função social, num cenário em que se modificam parâmetros técnicos, culturais e ideológicos. Não por acaso, o enunciado ecoa outros análogos, como "o fim da pintura" ou o mais amplo e polêmico "fim da história", de Francis Fukuyama.

A canção que está no centro do debate não é uma canção qualquer, mas aquela, na definição de Wisnik, "sofisticada melódica e harmonicamente, com letras densas e polissêmicas, intimamente entranhadas com a música, sílaba por sílaba, capaz de atingir e interessar grandes públicos, atravessar diferenças sociais, irradiando lirismo e crítica social".

Para o professor e crítico Lorenzo Mammì, "em geral, toda arte, quando chega a um grau determinado de maturação, começa a se interrogar sobre sua própria morte".

Ele observa que "o tema da morte da arte existe desde o Renascimento (após Michelangelo não restaria mais nada a fazer) e é central na arte moderna, desde Hegel". Mas lembra, para evitar o drible: "É uma estratégia expressiva, nunca uma morte real: significa que cada obra se coloca no limite, tensiona a tradição até um ponto extremo."

Wisnik argumenta que, embora o lugar ocupado pela canção brasileira no século passado e o tipo de atenção concentrada que ela conquistou tenham se dissipado, isso não atesta o desaparecimento ou o mero empobrecimento da canção enquanto tal.

"É uma visão simplificada, porque esses mesmos não veem a canção, quando ela está na frente do nariz. "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, lançada no ano passado, mais bela ainda no YouTube, com ele cantando sozinho num quarto, é uma límpida afirmação de que a canção universal está viva", diz. Mas ao mesmo tempo — e paradoxalmente — "o fato de que quase ninguém a reconheça é um sinal de que a canção, tal como a conhecemos, acabou".

Em 2007, no ensaio "O Sonho dos Outros", publicado em "Lendo Música" (Publifolha), Mammì referia-se a uma declaração do artista norte-americano Robert Smithson, prevendo, nos anos 1960, que as redes de signos da cultura contemporânea chegariam a uma densidade tal "que formariam uma casca lisa e uniforme, sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto incontaminado".

Seria o caso da canção brasileira, cujo cânone, em seu entendimento, fecha-se num arco que vai de Ernesto Nazareth a Chico e Caetano.

Sobre a superfície sólida desse núcleo acabado poder-se-ia, agora, "correr à vontade" e já não haveria distâncias, "porque, descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções.

"O que teríamos, então, na cena contemporânea, como decorrência da "posse plena" do código da canção? Já de início uma produção que poderia ser chamada, sem viés negativo, de maneirista, na tradição do cânone. Além dela, um tipo de música que nasce nas franjas do pop, com o impacto do rap e da eletrônica, que se inclinaria, segundo Wisnik, "a uma linguagem menos travada entre música e letra, mais fluida, mais nebulosa, cheia de interstícios instrumentais ou sonoridades buscadas, como se quisesse não a atenção concentrada da tradição que veio da bossa nova e do tropicalismo mas a atenção flutuante que se ouve nos discos de Los Hermanos".

Por fim, permaneceria viva a tentativa de levar a canção ao paroxismo —"as últimas canções de Chico e Caetano me parecem ser um exemplo disso", diz Mammì.

Mas, para Wisnik, o mesmo ambiente que torna invisível — ou inaudível — a canção de Gil por ele citada não confere mais a Chico e Caetano o crédito de antes. "Não me refiro ao crédito da celebridade, que eles recebem em cotas de adulação, polêmica ou escândalo, mas ao do artista vivo", diz.

Em relação a Chico, "que se protege sabiamente da entropia reinante", parece mais fácil "não ouvi-lo no presente, mas no passado, onde ele soa mais palatável". Já sobre Caetano, "que se lança atiradamente por temperamento e que se confunde com a entropia reinante", parece mais fácil para muitos apenas "vê-lo como um narcisista frívolo".

Seja como for, é de perguntar se esse tipo de canção não estaria mesmo condenado a se tornar objeto de culto em círculos restritos, num fenômeno talvez semelhante ao que ocorre com a poesia. Lorenzo Mammì responde: "Nas décadas de 1960 e 70, a vida foi ritmada por canções: eram objetos de consumo, mas também tinham uma importância cultural nunca alcançada antes, nem depois. Essa fase acabou, não apenas no Brasil, mas no mundo: não há novos Chicos ou Caetanos, mas também não há novos Bob Dylan ou John Lennon. Quem compõe canções, hoje, ou faz apenas entretenimento, sem outras pretensões, ou explora um patrimônio consolidado, trabalhando de certa maneira na forma da variação ou do comentário. Cada canção remete a uma quantidade de outras canções. É nesse sentido que a canção atual se aproxima da poesia: não há mais canção ingênua, como não há, já há muito tempo, poesia ingênua."

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Tinhorão e Chico Buarque debateram o fim do gênero
Da Redação

Um dos primeiros registros da ideia da crise da forma "canção" na cultura brasileira foi feito durante um debate entre José Miguel Wisnik e o crítico e historiador José Ramos Tinhorão, em 2001, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Em entrevista a Pedro Alexandre Sanches, na Folha, em 2004, Tinhorão defende que esse tipo de composição, associado ao individualismo na arte, "feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra", havia chegado ao fim.

"A canção acabou, é inconcebível", dizia o veterano pesquisador nacionalista. "Hoje é tudo coletivo, com recursos eletroeletrônicos.

"No final daquele mesmo ano, falando à Folha, o compositor e escritor Chico Buarque afirmou que a canção, tal como é conhecida, talvez seja um fenômeno do século passado no Brasil. "A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito", avaliou então o compositor.

Para Chico, a marca dessa novidade está no rap, "uma negação da canção tal como a conhecemos" e, talvez, "o sinal mais evidente de que a canção já foi, já passou".

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Nobreza do samba
por Luís Augusto Fischer, Especial para a Folha

Ao longo do século 20, a canção se tornou um gênero "elevado" e fez síntese cultural e social decisiva do país
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O gênero cumpriu uma função formativa na cultura no Brasil
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Em 1820, quando Walter Scott foi agraciado com o título de baronete, houve algum embaraço na argumentação que justificou a concessão: o motivo real para conferir a nobilidade estava em seus romances, como "Waverley" e "Ivanhoé", mas o autor mesmo não os assinava, porque não via dignidade artística neles, comunicativos mas sem prestígio letrado; daí, o título acabou sendo justificado por livros de poesia que ele publicara na juventude, infinitamente menos importantes mas tidos como coisa elevada, condizente com a exigência aristocrática.

Quem evoca essa história é Antonio Candido, na abertura de um ensaio — e a anedota é preciosa para falar sobre a natureza contingente dos gêneros artísticos.

Scott, inventor do romance histórico, não viu nobreza no gênero que o consagrou; apenas uma geração depois, Balzac (1799-1850) se regozijava de sua condição de romancista; depois, pelo menos mais três gerações levaram os limites do gênero mais adiante, mantendo-o vivo e prestigiado. Finalmente, na altura da Segunda Guerra, não faltou quem detectasse o fim do romance.

Morreu? Não; nem ele, nem qualquer dos outros vários gêneros artísticos, que como toda criação humana no campo simbólico, nascem, se desenvolvem, encontram significação exemplar e depois mirram, mas não deixam de ter cultores e praticantes. Não está aí até hoje o soneto, criação renascentista que conheceu o zênite barroco, mas retornou algumas vezes ao cartaz, e só em língua portuguesa foi capaz de encantar talentos como Cláudio Manuel da Costa, Olavo Bilac, Cruz e Sousa e Vinícius de Moraes? Que dizer então do romance, forma muito mais complexa, capaz de se reinventar há quase 300 anos?

Com a canção se dá algo parecido. Sintetizada em momentos particulares, numa trajetória cumulativa hoje bastante visível, a canção brasileira talvez comece por Domingos Caldas Barbosa, no século 18, passa pelo encontro do lundu e da modinha locais com a habanera e a polca européias ao longo do século 19, encontra Sinhô e seu samba maxixado cem anos atrás, desdobra-se em samba, samba-canção, marchinha e algo mais na geração de Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva e outros, depura-se e lança-se em diálogo internacional vigoroso com a Bossa Nova, desenvolve ainda mais suas possibilidades na geração de Chico, Caetano e Paulinho da Viola e...

Século 21

Bem, aqui estamos, neste começo de século 21, na presença dessa geração, florescida nos anos 1960 e agora em seu esplendor, já seguida de algumas levas de novos e novíssimos, entre os quais tanta qualidade expressiva se vê, de Itamar Assumpção e Vitor Ramil a Chico Science e tantos outros.

Aqui estamos de posse de um magnífico patrimônio, que já configura concretamente muito mais do que as gerações antigas suspeitavam — nem Mário de Andrade, que se ocupou tanto da música brasileira, percebeu que a canção era, já em seu tempo, uma síntese cultural de alto nível de elaboração e de eficácia.

Jorge Luis Borges não imaginava que a canção seria um gênero de autores, mas suspeitava, no começo dos anos 1950, que as letras de tango, no primeiro meio século de vida, constituíam já um "inextricável corpus poeticum" coletivo argentino. Pois a canção brasileira é isso e é bem mais: um gênero artístico, literário e musical em aliança íntima, praticado por artistas complexos, que já passaram pela dura prova do tempo, talvez a única realmente relevante em matéria de história estética.

A maturidade do gênero dá o que pensar, mesmo que pelo caminho curto do debate sobre seu presumido fim, que talvez não seja mais que o auge de uma geração, certamente a melhor de todas até aqui. Que elementos se pode detectar de algo parecido a um limite, para além do acúmulo notável de obras-primas e da proximidade do aniversário de 70 anos daqueles grandes cancionistas?

Primeiro: a canção chegou a seu apogeu em estreita proximidade com os meios massivos de comunicação, o rádio para a geração de 30 e a televisão para a geração de Chico, e com suportes de fácil divulgação, em particular o disco.

Ocorre que esses elementos toparam com um destino inamistoso nos anos 90, a internet, que relativizou o papel do rádio e da tevê na busca de informação e diversão e afundou o navio das empresas gravadoras de larga escala. A prática de três gerações perdeu o sentido, justamente quando o gênero canção chegou a sua capacidade máxima.

Segundo: a canção nasceu, em parte, do analfabetismo, que está acabando. Gente que nunca soube escrever (letra ou música) foi imantada pela capacidade estética do gênero, e também pôde compor maravilhas no gênero: em grande medida, a história da canção brasileira acompanha, como virtude, a mazela da pouca cultura letrada.

Escolas da música

Mais ainda, a escola, com méritos e com vícios, tem tratado a canção como uma forma cultural válida, seja estudando Noel, Chico e Caetano, nas escolas sofisticadas, seja prestigiando o rap, nas escolas populares. A universidade também está aprendendo a lidar com essa riqueza, seja na área da literatura (mais favorável aos aspectos literários da canção), seja na área de Música (em geral mais resistente à canção, pelo peso da tradição erudita européia).

Terceiro: os meios de criação da canção são amplamente disponíveis hoje em dia, muito mais do que em qualquer outro tempo. Se um século atrás os pobres lidavam apenas com instrumentos de percussão para cantar e compor, agora o sujeito sem muita dificuldade pode ter em casa um computador capaz de milagres técnicos com que nem sonhava o inventivo produtor dos Beatles.

Tal disseminação altera o patamar da produção, da fruição, da circulação do gênero, e a médio prazo deve significar alguma outra reviravolta. Juntando o item anterior com este e forçando um pouco a barra, dá pra dizer que, ao contrário da frase-tese de Noel Rosa, agora samba se aprende na escola.

Quarto: vendo a coisa pelo lado estético-histórico exigente, e tomando a obra do citado Candido como referência, a canção cumpriu também uma função formativa na cultura no Brasil — cumpriu e está cumprido, para sempre.

Nascida de intensa negociação, formal e conteudística, entre matrizes européias e afroamericanas, entre preocupações elevadas e sutis ao lado de outras cotidianas e banais, a canção encontrou pontos de síntese irrecusáveis para quem observa o país, os quais além de tudo carregam a notável marca de conseguirem estabelecer pontes de comunicação estética de alto a baixo, entre brancos e negros, de norte a sul, de tudo quanto é jeito, num ambiente social tão desigual. (Estabeleceu pontes sem deixar de falar das desigualdades, ainda que muita fantasia conciliatória e muita trivialidade escapista circule pelas veias da canção.)

O Brasil se vê, se expressa, se afirma, se pensa na canção, tendo produzido ao menos dois momentos altos, a geração de 30 e a de 60, aquela nascendo junto com o rádio e a gravação elétrica do bolachão de 78 rpm, esta junto com a televisão e o longplay estereofônico de 33,3 rpm. O século 20 brasileiro como um todo não pode ser compreendido sem esses atingimentos.

O ponto do debate agora parece ser fruto de uma combinação singular: na maturidade do gênero — vistas as coisas tanto pelo ângulo dos artistas de obra comprovada, quanto pela ângulo da significação ampla e duradoura obtida por eles e sua obra —, seria esperável, historicamente, alguma crise, algum declínio, como sucedeu por exemplo ao romance brasileiro depois da geração de Graciliano, Erico, Lins do Rego, Guimarães Rosa, ou como sucedeu à poesia depois de Drummond e João Cabral.

Mas essa simples mudança de turno se potencializou enormemente com as mudanças tecnológicas, que tornaram acessíveis meios sofisticados de produção ao mesmo tempo que desorganizaram um mercado forte havia pela menos 60 anos. O que virá ninguém sabe e gera incerteza, até pessimismo; mas sim conhecemos a força do gênero, sua história vitoriosa, o largo patrimônio legado a todos, para sempre.

— LUÍS AUGUSTO FISCHER, crítico literário, leciona canção popular brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Parada de sucessos

Intelectuais elegem composições que contribuíram para a sua formação; "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso, é a mais lembrada

RUY FAUSTO

FILOSOFIA (Noel Rosa)
"O mundo me condena, e ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome"Tem uma melodia simples, que em si mesma parece não ter nada de especial. Mas isso, precisamente, faz com que esse samba se conserve melhor do que outros sambas mais elaborados. A letra exprime uma tristeza beirando o ressentimento.
TOURADAS EM MADRI (Braguinha e Alberto Ribeiro)
"Eu fui às touradas em Madri E quase não volto mais aqui"A melodia tem uma certa complexidade. A letra é uma joia. A tourada é conversa fiada. Há aí uma espécie de diluição satírica da grandeza (tudo somado, covarde) das corridas de touros.
CHEGA DE SAUDADE (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Vai minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser"Claro, o samba é muito bom, mas também entram as circunstâncias. Sabíamos que a música brasileira estava num compasso de espera [na segunda metade da década de 1950]. E lamentávamos. Então apareceu um samba, "o samba do Vinicius", como diziam (o Jobim ainda não era muito conhecido, pelo menos em São Paulo). Depois parti para a Europa, na minha primeira viagem. Quando voltei, era bossa nova por todo lado.

— RUY FAUSTO é professor aposentado de filosofia da USP e da Universidade de Paris 8.

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MANOLO FLORENTINO

MEMÓRIAS CONJUGAIS (Paulinho da Viola)
"Lapidar Foi a sua frase Proferida de um jeito natural Registrei esta preciosidade Sem alarde No meu livro de memórias conjugais"Para errar, com razão, várias vezes por dia.
BASTANTE (Sergio Natureza e Zé Luiz Mazziotti)
"Não havia nada além da réstia de sol Noite apagada e a madrugada ao redor Mas a luz que anunciava a manhã alaranjada Já bastava pra eu te enxergar melhor Não havia nada além da flor no lençol Rosa amassada pelo corpo e o cobertor Mas a luz que se infiltrava pelas frestas da vidraça Já bastava pra eu te decorar melhor"Para aprender a nunca esquecer de alguém, qualquer alguém.
MORA NA FILOSOFIA (Monsueto e Arnaldo Pessoa)
"Eu... vou lhe dar a decisão botei na balança... e você não pesou botei na peneira... e você não passou"Para aprender a esquecer alguém muito específico.

— MANOLO FLORENTINO é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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BORIS SCHNAIDERMAN

A FLOR E O ESPINHO (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha)
"Tire o seu sorriso do caminho Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho Espinho não machuca a flor Eu só errei quando juntei minh'alma à sua O sol não pode viver perto da lua"Temos nessa letra um dos grandes momentos da poesia brasileira.
ODETE (Herivelto Martins)
"Odete, ouve o meu lamento Lamento de um coração magoado Atenda o seu pobre seresteiro Vem de novo pro terreiro"Ela não me sai da memória desde o dia em que a ouvi cantada por um grupo de cariocas de morro, embarcados no navio que levou a Nápoles [na Itália], em julho de 1944, o primeiro escalão da Força Expedicionária Brasileira.
ATÉ QUEM SABE (João Donato e Lysias Ênio)
"Até um dia, até talvez, até quem sabe Até você sem fantasia, sem mais saudade Agora a gente tão de repente nem mais se entende"Marca um momento importante, pois aí temos um máximo de expressão com uma construção de texto muito arrojada.

— BORIS SCHNAIDERMAN é tradutor e crítico literário.

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MARIA RITA KEHL

SALA DE RECEPÇÃO (Cartola)
"Habitada por gente simples e tão pobre Que só tem o sol que a todos cobre como podes, Mangueira, cantar?"Cartola sonhou um Brasil chamado Mangueira. A pergunta que abre este samba resume a sociabilidade que ainda caracteriza o povo brasileiro. Cartola não explica o mistério, só responde: "Pois então saiba que não desejamos mais nada".
ESTRADA DO CANINDÉ (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
"Automóvel, lá, nem se sabe se é homem ou se é muié quem é rico anda em burrico quem é pobre, anda a pé"A linda toada de Gonzaga embala a miragem do Nordeste que poderia ter sido: mais pedestre e menos desigual.
TEMPESTADE (Clayton Barros e Lirinha)
"Quando o vento bate forte Que aspira o ar castigado Estremece o pulmão da seca"Para entender a poesia de Lirinha, é preciso conhecer o repentista Manuel Chudu: "Tem certas coisas no mundo/que eu olho e fico surpreso/ uma nuvem carregada/ se sustentar com seu peso/ e dentro de um bolo d'água/ sair um corisco aceso!". Dialogando com Chudu, Barros e Lirinha compuseram duas espantosas elegias sobre o acontecimento trágico da chuva no sertão.

— MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta.

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LAURA DE MELLO E SOUZA

ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"Caminhando contra o vento Sem lenço sem documento No sol de quase dezembro Eu vou"A linguagem era nova, cheia de referências visuais, e tudo estava ali, combinando o que nem sempre parecia possível combinar: despreocupação, engajamento político, revolução comportamental, orgulho latino-americano, amor, tecnologia, lirismo... Traduzia o espírito consagrado pelo Maio de 1968, e uniu todos os jovens do meu mundo.
ACORDA AMOR (Julinho da Adelaide e Leonel Paiva)
"Acorda, amor Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora Batendo no portão, que aflição"Era a primeira faixa de um disco histórico ["Sinal Fechado", 1974] do Chico [Buarque], que se ouvia até gastar, e sobretudo a primeira faixa. No limiar da idade adulta, entrando na universidade, traduzia todo o medo, a impotência e a sensação de absurdo daqueles anos horrorosos. Chico virou Julinho da Adelaide, com direito a uma entrevista concedida a Mário Prata no jornal "Última Hora".
GAROTA DE IPANEMA (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Olha que coisa mais linda Mais cheia de graça"É o horizonte utópico de um Brasil, como foi aliás o daquele Rio bonito e feliz que a dupla genial [Tom e Vinicius] amava tanto.

— LAURA DE MELLO E SOUZA é historiadora e professora na USP.

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JURANDIR FREIRE COSTA

CARINHOSO (Pixinguinha e João de Barro)
"Meu coração, não sei por quê Bate feliz quando te vê E os meus olhos ficam sorrindo E pelas ruas vão te seguindo Mas mesmo assim Foges de mim Ah, se tu soubesses como sou tão carinhoso E o muito, muito que te quero E como é sincero o meu amor Eu sei que tu não fugirias mais de mim"Sussurrada ou aos brados, desafinada ou no tom certo, é a cara do Brasil que se olha com ternura e sem vergonha de si.
JOÃO E MARIA (Chico Buarque)
"Agora eu era o herói E o meu cavalo só falava inglês A noiva do cowboy Era você Além das outras três Eu enfrentava os batalhões Os alemães e seus canhões Guardava o meu bodoque E ensaiava um rock Para as matinês"Pelo poder de evocar o encantamento da eterna infância de qualquer sonho de amor.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas Eu vou"Pela força mágica de afirmar a potência criativa da vida em meio à fragmentação do mundo.

— JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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BORIS KOSSOY

EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim Que nada nesse mundo levará você de mim"Marcou meus 17 anos, coreografia de uma paixão assumida numa estação de férias inesquecível no interior de São Paulo naquele ano de 1958.
RONDA (Paulo Vanzolini)
"De noite eu rondo a cidade A te procurar sem encontrar"Era, no meu tempo de reuniões e festinhas, a música que sempre acabava sendo dedilhada no violão. Todos conheciam a canção. Já maduro, tive a percepção que "Ronda" continuava sendo a canção que sempre teve um lugar especial no imaginário paulistano.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot"Foi a marcha-canção envolvente que teve profunda repercussão na minha geração. Caetano transmitiu sua mensagem poética com uma sucessão de fragmentos concatenados da mudança que a contracultura provocava nos EUA e na Europa e suas repercussões no mundo; sua canção tinha raiz na terra, mas sua visão era universal, contextual, basta analisarmos sua letra e seus códigos.

— KOSSOY é fotógrafo e professor de jornalismo na USP.

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ALCIR PÉCORA

CORAÇÃO MATERNO (Vicente Celestino)
"Disse um campônio à sua amada: Minha idolatrada, Diga-me o que quer"A sua narrativa é o seu trunfo: amplificação catastrófica e alucinada, imaginação voluptuosa a serviço de uma ideia de amor monstruoso e triunfante.
QUERO QUE VÁ TUDO PRO INFERNO (Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
"De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar Se você não vem e eu estou a te esperar"O decisivo é a carga declaratória de tesão que se acumula programaticamente até explodir em desabafo. O refrão acaba sugerindo bem mais do que diz, como se soltasse um palavrão desaforado, com gosto de cantada, "carpe diem" e ofensa ao mesmo tempo.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou"Não dá margem a moralismos, patriotadas ou fundamentalismos. Trata-se de acolher decidamente os muitos chamados da cidade e da vida moderna. Acordes marcados e distorcidos, refrão desencanado, descrição fragmentária, voz desafiadora: tudo concorre para a vibração urbana, intelectual e sensual ao mesmo tempo.

— ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas.

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LUIZ COSTA LIMA

CHÃO DE ESTRELAS (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa)
"Minha vida era um palco iluminado Eu vivia vestido de dourado"Composição excepcionalmente favorecida pela qualidade de alguns versos como "Foste a sonoridade que acabou" e, sobretudo, "Tu pisavas nos astros distraída". A expressão alcança tal concentração semântica, isto é, contém tantos planos expressivos, que poderia se definir como polifocal. O que vale dizer: os muitos planos formam uma metáfora inusitada.
MORTE E VIDA SEVERINA (Chico Buarque sobre poema de João Cabral de Melo Neto)
"Esta cova em que estás, com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida" Canção que nos ajuda a sustentar a resistência, aparentemente tão inútil, contra a ditadura de ontem e a arbitrariedade que continua conosco. A luta do poeta migra para o seu leitor.
A NOITE DO MEU BEM (Dolores Duran)
"Hoje eu quero a rosa mais linda que houver E a primeira estrela que vier"Os versos são banais e o sentimentalismo bem barato porque repete formulações repetidas que tornam sua expressão gasta porque saturada. Mas, por isso mesmo, a canção se destaca.

— LUIZ COSTA LIMA é crítico literário e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na PUC-RJ.

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Ruínas do pop
por Luís Augusto Fischer, Especial para a Folha

Michael Jackson realizou em seu corpo, e levou ao limite, a lógica da indústria do entretenimento

O mundo pop já conhece suas próprias ruínas. Toda ruína é semelhante na fisionomia, mas guarda uma história particular, perdida em suas lacunas.

A vida e a morte, e sua dança na dinâmica da vida pop — em que personalidade, expressão, imagem e mercadoria se imbricam de modo único —, já podem ser catalogadas em um conjunto de possibilidades, "topoi" existenciais dos que atuam no império da imagem espetacular.

Há muito se conhecem os suicídios desejados, atuados, da impossibilidade de sobreviver à contradição entre a arte e a negatividade social da crítica; o movimento da contracultura, moderno, versus o império do espetáculo e a imagem capital do ídolo, que se torna um reprodutor e também um responsável pelo sistema geral do fetichismo, do poder.

Os "war heroes" dos anos 1960 e 70 ou se mataram — Hendrix, Joplin, Morrison, Vicious — ou foram mortos, em um processo que revela a articulação de suicídio e assassinato, como o de Lennon; ou sobreviveram ao próprio suicídio protelado, como [Keith] Richards, ou [Eric] Clapton, ou o nosso Arnaldo Baptista; ou, ainda, aceitaram serem mortos simbolicamente ao reduzir o seu nível de conflito ao grau zero da mera reprodução do mundo como ele é.

O processo do apaziguamento histórico da ilusão de massas da contracultura foi muito violento, uma guerra simbólica, em que os ajustes foram feitos na carne e na vida, e à qual muitos não sobreviveram. A responsabilidade dessa violência foi totalmente transferida aos dionisíacos.

Michael Jackson representou outro modo de viver e de morrer no universo tanático dionisíaco do pop. Ele é um artista positivo, da afirmação do que existe, e da realização total desse próprio espaço social e histórico em seu corpo. Em primeiro lugar, tudo já foi dito sobre ele, e tocar outra vez no sistema explícito de suas formas e de seu dilema é simplesmente confirmar um clichê, uma reiteração do espetacular.

Mas, paradoxalmente, é este mesmo um dos aspectos mais importantes de sua forma humana e política: Jackson se transformou em um objeto de visibilidade total, ele passou a viver sob o signo daquilo que os psicanalistas chamam de "atuação", em uma escala de massas talvez jamais vista.

Isso quer dizer que apenas externalizando tudo o que sentia e vivia e passando ao ato, ao teatro da realidade exterior visível, o que portava em si, ele podia chegar a conhecer algo de si mesmo. Ao contrário de alguém que sonha, e preserva um ponto de mistério em seus sonhos, e uma relação de interioridade consigo mesmo, Jackson expulsava o sonho de si realizando-o na onipotência de seu lugar real de poder, no espetáculo e no dinheiro.

Zumbi

Sua atuação total dos anos 1980 e 90, seu espetáculo total, incluindo aí o próprio corpo, a ponto de virar uma coisa de si próprio, sinalizou mesmo a época de mudança do modo de orientar a subjetividade frente ao crescente poder do mercado e o falimentar valor da política: do humanismo do sujeito sonhador ao fetichismo e exibicionismo do psiquismo atuador, que busca se identificar com o poder crescente e total da coisa na cultura, a ação visível da própria forma mercadoria sobre os homens.

Seu sonho realizado, exposto ao voyeurismo desejante de milhões, totalmente projetado na realidade que o cercava, tornou-se de fato o pesadelo da regressão humana ao polimorfo perverso das origens de todos nós, metamorfoseado em espetáculo, hipervisível para todos, sem mais dimensão de intimidade ou interioridade.

Desde "Thriller" Jackson tornou-se o efeito especial por excelência, a imagem técnica da própria indústria atuando sem parar, encarnada.O sonho foi acompanhado universalmente em tempo real.

Um travestismo total, estranhamente familiar, que invertia e suspendia o sentido de tudo: o bonito jovem negro tornou-se andrógino, mas também branco, não apenas Diana Ross, mas também Liz Taylor, mas também, à medida que envelhecia, tornou-se imune ao tempo, perpetuamente jovem, ou criança, mas também coisa, brinquedo, o próprio corpo da mercadoria, boneco do sonho pop americano, ou Barbie, que virou Chuck, ou ídolo pop que virou múmia, ou Michael Jackson que virou zumbi...

Este novo Frankenstein espetacular, que realizou em sua metamorfose milionária e sinistra o estatuto autoritário da técnica, do dinheiro e da mercadoria sobre o corpo humano e sobre as relações do sentido das coisas, acabou por virar, e revelar, o pesadelo americano e, se todos os seus consumidores contribuíram com seu gozo diante da degradação do jovem ídolo, no fim das contas Jackson simplesmente não poderia ser preso pela América, como deveria ter sido, quando passou a "devorar" criancinhas como em um conto de fadas bizarro, que vem do real.

Todos sabemos, e Michael Jackson teve a loucura (ou a sanidade?) de deixar isto explícito, que aquela criança linda que entrou para a indústria do espetáculo aos cinco anos de idade, com voz de "castrato" e o soul de Marvin Gaye, é que foi devorada pelo verdadeiro monstro do nosso tempo. Mas o seu próprio desejo também criou esse monstro.

No final dos anos 1960, quando os Jackson 5 assinavam seu contrato com a Motown, um outro gênio, de outra família da música negra e pop americana, Sly, com sua família Stone, cantava ironicamente aquilo que o lindo menininho Jackson, com seu canto e sua dança de fazer chorar, um dia representaria inteiramente, sacrificando a isso todo corpo e espírito: "All the plastic people" [Toda a gente de plástico].

O amor de Diana Ross por ele era ao mesmo tempo admiração pelo enorme talento da música negra e simples amor materno, numa preocupação limite sobre o destino humano daquele profissional bebê. Em 1989, Gilberto Gil sinalizava a conexão interior de transformismo, poder e morte, que todos intuímos no ídolo: "Bob Marley morreu/ Porque além de negro era judeu/ Michael Jackson ainda resiste/ Porque além de branco ficou triste".

Entre o menininho maravilhoso que foi invadido pela indústria tão radicalmente cedo e a coisa em si do espetáculo, e a cena perversa acompanhada por todos, do adulto que era pura visibilidade, temos a história da assimilação negra ao mercado e ao fetichismo industrial americano, que não se tornou libertária. Michael foi um verdadeiro cidadão Kane do momento avançado do capitalismo turbinado. De fato, um "cidadão quem?"; ou, melhor, "cidadão o quê?".

— TALES AB'SÁBER , psicanalista, é autor de "O Sonhar Restaurado" (Ed. 34).

Judeus & Negros na America

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 05/julho/2009, no caderno "Ilustrada"

Preto & Branco
por Mônica Bergamo
bergamo@folhasp.com.br

Carlos Rennó e Jaques Morelenbaum reúnem astros da MPB para interpretar obras que brancos judeus compuseram e que se transformaram em grandes clássicos da música negra americana
Na década de 30, Abel Meeropol, um professor judeu do ensino médio do Bronx, em NY, colocou os olhos em uma das mais dantescas imagens do século 20: uma foto em que dois negros americanos pendem de uma árvore, depois de linchados por uma multidão em Indiana, no sul dos EUA. Sob o pseudônimo de Lewis Allan, ele escreveu "Strange Fruit", que expressa o seu horror. "Eis uma fruta/ Pra que o vento sugue/ Pra que um corvo puxe/ Pra que a chuva enrugue/ Pra que o sol resseque/Pra que o chão degluta/Eis uma estranha/E amarga fruta." Foi sua primeira, e única, canção gravada.
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Ao descobrir e emprestar sua voz para "Strange Fruit", Billie Holiday a transformou num hino contra o racismo e numa das mais populares canções americanas. Não foi fácil: temendo represálias no sul, a Columbia, por onde ela lançava discos, não quis gravar a música; Billie recorreu à Commodore, selo alternativo de jazz. Era sempre a última música de seus shows. Ela exigia que os garçons parassem de servir e que as luzes se apagassem. Um foco de luz iluminava seu rosto e Billie entoava os versos da canção.
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"Eu não sabia dessa história. Ninguém fala desse professor, porque ele só fez isso", diz o jornalista, letrista e produtor Carlos Rennó. Sentado sobre os joelhos, no sofá de seu pequeno apartamento, em Pinheiros, onde vive sozinho entre livros e centenas de CDs, ele recebeu a coluna para falar de seu novo projeto: um disco de versões de músicas negras americanas, como "Strange Fruit", compostas por judeus. Ele escreveu as versões. O músico, instrumentista, maestro e (...ufa!) produtor Jaques Morelenbaum fez os arranjos. No cardápio, clássicos como "My Romance" com Gal e Carlinhos Brown, "Over The Rainbow" com Zélia Duncan, "Bewitched" por Maria Rita e "Strange Fruit" por Seu Jorge. A dupla, que trabalha em parceria com as maiores estrelas da MPB e planejava há 20 anos fazer um trabalho conjunto, lança o CD "Nego" em agosto.
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Rennó produziu há nove anos, com Rodolfo Stroeter, "Cole Porter, George Gershwin/ Canções, Versões", com letras vertidas para o português e cantadas por Caetano, Gil, Rita Lee, Cassia Eller. Sete faixas do CD foram incluídas em novelas -uma delas, "Let's Do It" (ou "Façamos"), na voz de Chico Buarque e Elza Soares, estourou como tema de "Desejos de Mulher". A ideia de Rennó era tentar um segundo disco de Porter e Gershwin, desta vez com Morelenbaum. Mas... e o dinheiro?
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É então que entra em cena Yael Steiner, diretora do Centro da Cultura Judaica. Amiga de Morelenbaum, ela se interessou em apoiar um projeto da dupla. "Aí eu pensei: cultura judaica...o Gershwin, tudo bem. Mas Porter não era judeu." Rennó foi quebrando a cabeça, juntando informações.
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"A época dos anos 20 aos anos 40 foi um dos pontos mais altos da canção popular americana. Floresceram e se desenvolveram obras que ficarão para sempre na história das canções. E a maior parte do primeiro time de músicos era formada por judeus de origem simples, que descendiam de estrangeiros vindos da Europa: Gershwin, Irving Berlin, Richard Rodgers e Lorenz Hart", diz. O projeto começava a tomar forma. Segue Rennó: "No coração dessa explosão musical está a aliança negro-judaica, onde negros e judeus dos EUA se identificaram como povos exilados, outsiders. A música era uma via de emancipação. E aconteceu então uma identificação em que músicos judeus vão assimilar a música e a musicalidade dos negros. E isso vai ser determinante para o erguimento das grandes obras da música popular americana. Os que mais sofreram são os responsáveis principais pela alegria dos povos, se considerarmos que muito dessa alegria vem do consumo da música."
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Um exemplo representativo da incorporação que os judeus fizeram da musicalidade dos negros e "da identificação que eles tinham no plano existencial", diz Rennó, é "Porgy and Bess", a "ópera negra de Gershwin" que, por sua determinação, só pode ser interpretada até hoje por afrodescendentes. Dela, a clássica "Summertime" foi selecionada para o CD brasileiro, na voz de Erasmo Carlos.
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Gershwin, filho de imigrantes judeus russos, "ainda novinho" foi trabalhar em Tin Pan Alley, rua de NY que abrigava os escritórios dos editores de música na virada do século 20. Na era anterior à popularização do registro fonográfico, o sucesso de uma música era medido pelo número de partituras vendidas. Gershwin as tocava ao piano para potenciais compradores. "Toda família americana tinha um piano em casa para executar canções", diz Rennó. "Esta circunstância também fez com que elas fossem extraordinariamente ricas, sofisticadas do ponto de vista melódico e harmônico."
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Frank Sinatra gravou uma das mais célebres interpretações de "Ol" Man River". Num show nos EUA em que ele era homenageado, Ray Charles subiu ao palco e disse: "Frank, você uma vez juntou um monte de músicos brancos num estúdio branco para tocar e cantar essa música negra -que eu agora vou fazer "in my way"." "Ele só se esqueceu de dizer que a música negra tinha sido feita por brancos judeus [Jerome Kern e Oscar Hammerstein]", diz Rennó, que convidou João Bosco para gravar a faixa, incluída no CD "Nego". "Preto dá duro no Mississippi/Duro pro branco poder brincar/Puxando barco, não descansando/Até o juízo final chegar", diz a letra.
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Rennó diz que, aos quatro anos, ouviu uma pessoa ser chamada de "nego safado", "o que causou em mim forte aversão e me fez repelir aquilo para sempre". "Isso, e a primeira ereção, que eu tive também aos quatro anos de idade, por causa de uma vizinha, tiveram um caráter de revelação forte para mim". Outra experiência que o liga ao novo CD: "Toda essa crueldade de que trata "Strange Fruit", de forma tão comovente, eu vim a perceber de forma intensa exatamente aqui, onde estou, diante desta tela de TV, com uma namorada negra ao meu lado, ao ver um documentário de Billie Holiday. O que eu vivi aqui naquele dia, eu vivi novamente no estúdio, quando Seu Jorge gravou a música". Antes de cantar, Seu Jorge disse: "Preciso representar isso aqui. O que eu devo encarnar? Um amigo dos dois negros pendurados naquela árvore? Ou os amigos que perdi no Brasil?". Os amigos. Ao final, todos choraram. "A versão desta canção tem relação profunda com as duas maiores escravocracias do mundo, a americana e a brasileira." A capa de "Nego" é azul, vermelha, verde e amarela.
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Frases
"Aconteceu uma identificação em que músicos judeus vão assimilar a música e a musicalidade dos negros. E isso vai ser determinante para o erguimento das grandes obras da música popular americana"

"Os que mais sofreram são os responsáveis principais pela alegria dos povos, se considerarmos que muito dessa alegria vem do consumo da música"

"Isso [racismo] e a primeira ereção, que eu tive também aos quatro anos de idade (...), tiveram um caráter de revelação forte para mim"

— CARLOS RENNÓ, letrista

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Nova era?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 01/julho/2009, no caderno "Opinião"

Fim das superestrelas
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Enquanto Michael Jackson não for enterrado, seu velório não terá fim. Cogita-se agora outra morte: a das superestrelas como ele. Analistas garantem que, com a pulverização dos meios pelos quais se pode consumir música hoje, não será mais possível alguém concentrar tal popularidade que permita vender 100 milhões de um único disco, como "Thriller", e passar 31 semanas no topo da lista da "Billboard".
Por um lado, isso é bom.

Tamanha concentração de poder, renda, sucesso ou do que for, acaba sendo nociva para o universo a que se pertence. Vide o cinema. Em 1977, com "Guerra nas Estrelas", Hollywood inventou o blockbuster, uma mistura de hiperespetáculo com promoção maciça e lançamento mundial simultâneo em 2.000 cinemas.

E daí? Daí que, enquanto milhões assistiam à "Guerra nas Estrelas", outros filmes, não tão mega, mas melhores, ficaram às moscas.

Ninguém mais quis produzir filmes médios, e "Guerra nas Estrelas" gerou uma quantidade de carbonos inúteis. O mesmo aconteceu com "Caçadores da Arca Perdida", "E.T." e os outros blockbusters de Steven Spielberg -cada vez menos filmes passaram a render mais dinheiro. Com isso, menos gente trabalhando, criando ou renovando.

No teatro americano idem. Musicais como "Cats", "O Fantasma da Ópera" ou "Miss Saigon" ficaram décadas em cartaz na Broadway, cada qual empatando um teatro, sustentados pelas manadas que os ônibus de turistas despejavam às suas portas. Quantas novas peças nunca foram encenadas porque não havia teatros para elas em Nova York?

Hoje, como se pode ouvir música por toda espécie de canais, ficou mais difícil à máquina impor o seu mau gosto à macacada.

Para muitos, já é possível selecionar o seu próprio repertório, ficar surdo para o resto e ser feliz para sempre.