sábado, 20 de dezembro de 2008

Download free... Liberdade ainda que tardia?

Texto publicado no UOL em 20/dezembro/2008, "Folhaonline - Ilustrada"

Gravadoras americanas param de perseguir quem baixa música na internet
— da France Presse

A federação das gravadoras dos Estados Unidos (RIAA, sigla em inglês) anunciou nesta sexta-feira (19/dezembro/2008) que desistiu de perseguir as pessoas que baixam música ilegalmente na Internet. De acordo com a entidade, cabe aos provedores adotar medidas contra a pirataria.

A RIAA, que desde 2003 já acusou cerca de 35 mil pessoas por baixar músicas sem autorização na Web, revelou que trabalha em uma nova estratégia, com o secretário de Justiça do estado de Nova York, Andrew Cuomo, e com os principais provedores de acesso à Internet.

A entidade afirma que já obteve um acordo de princípios com vários provedores sobre um plano para defender os direitos autorais, que prevê advertências e até o fechamento da conta do usuário reincidente.

A associação de defesa dos internautas Electronic Frontier Foundation (EEF) saudou a decisão da RIAA de suspender sua perseguição.

Segundo a EEF, 5 bilhões de músicas são baixadas mensalmente no mundo sem a devida autorização, 40 vezes o número das canções compradas legalmente.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u481850.shtml

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

"Estilista musical": a trilha sonora sob encomenda

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 15/dezembro/2008, Caderno "The New York Times"


Como achar a música que mais combina com o sofá
por Kate Murphy, "The New York Times"


O som do seu iPod destoa do ambiente? Chame o estilista musical


Imagine entrar em um gracioso apartamento de Manhattan decorado com antigüidades do século 18, espelhos com molduras douradas e estofados floridos. Agora imagine o Metallica saindo das caixas de som.

Tanto quanto a luz, os tecidos ou as obras de arte, o som é capaz de alterar o espaço, mas até recentemente as pessoas confiavam só no seu próprio gosto para esse quesito. Agora, porém, cada vez mais gente contrata estilistas musicais para escolher a música para suas casas, do mesmo modo que contrataria um decorador para indicar móveis.

Embora há décadas se utilize a música ambiente para criar "arquiteturas sonoras" em espaços comerciais, só nos últimos cinco anos alguns consultores, especialmente em Nova York e Londres, começaram a se especializar na criação de trilhas que combinem com a decoração dos seus clientes.

"Ouvir a música errada no espaço errado pode ser muito desorientador", disse Coleman Feltes, conhecido como DJ por criar trilhas para desfiles de Versace, Gucci e Dolce & Gabbana. Desde 2006, ele presta serviços musicais individualizados em seu escritório de Nova York.

Feltes e outros estilistas musicais costumam visitar a casa do cliente e olhar suas fotos para avaliar o estilo de decoração e entender os layouts. Podem também mergulhar nas coleções de música da pessoa para conhecer os gêneros e artistas que mais lhe agradaram no passado.

"Às vezes é um troço realmente horrível", disse o estilista Angus Gibson, citando como exemplo as trilhas na linha "amor e luar" dos filmes de Meg Ryan. A sua Gibson Music, de Londres, fornece aparelhos de som sob medida, com as respectivas músicas, para clientes da Europa, da Ásia e dos EUA.
Os estilistas alertam que, mesmo que os clientes gostem de uma música que não é insípida, ela pode ser totalmente errada para um determinado espaço. "Você não vai colocar Johnny Cash para tocar num fantástico refúgio das Antilhas", disse Gibson. "Simplesmente não iria funcionar."

Os estilistas habitualmente cobram de US$ 50 a US$ 250 por hora de música, que costuma ser baixada em iPods, mas também pode ser gravada em CDs.

O incorporador e investidor imobiliário Joe Wagner, 50, contratou Feltes no ano passado para musicar duas casas suas com estilos diferentes - um rústico recanto com paredes de pedra e vigas de madeira em Aspen, no Colorado, e um casarão colonial branco em Palm Beach, na Flórida.

Feltes compilou cerca de 48 horas de música, divididas em listas específicas não só para cada residência, mas também de acordo com atividades e horas do dia. Assim, por exemplo, uma tarde na piscina em Palm Beach pede jazz latino, enquanto a apreciação matinal dos montes nevados em Aspen vai bem com ópera.

"Quando alguém entra e ouve uma música ótima, é como olhar uma pintura maravilhosa na parede, que lhe traz certas emoções", disse Wagner, que atualiza suas listas musicais trimestralmente. "Adoro não ter de pensar no que vou colocar. Já fizeram isso por mim."

sábado, 8 de novembro de 2008

Negritude na América branca

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 8/novembro/2008, seção "Opinião" (no primeiro caderno)

A casa branca
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em 1938, Billie Holiday, cantora negra americana, não era admitida nos hotéis que hospedavam seus colegas da orquestra branca de Artie Shaw. O liberal Shaw armava um bode na recepção e, se Billie não pudesse ficar com eles, marchavam todos para fora da espelunca e da cidade.

Na década de 40, Duke Ellington, já tido como um dos homens mais elegantes da América, também só podia hospedar-se com sua orquestra nos guetos das cidades em que se apresentavam. Outra cantora negra, Lena Horne, era um grande nome da MGM, mas, de tão perigosamente linda, sua parte nos filmes limitava-se a um número musical — que pudesse ser cortado nos Estados racistas, sem prejuízo da trama.

Em 1956, o programa semanal de Nat "King" Cole na TV americana nunca atraiu um patrocinador nacional, e a NBC só o manteve no ar durante 64 semanas porque astros como Frank Sinatra, Peggy Lee e Tony Bennett ofereciam-se para cantar nele quase de graça. Os empresários temiam que seus produtos fossem boicotados se patrocinassem o programa de um negro.

Nessa época, um hotel de Las Vegas mandou esvaziar e lavar a piscina em que a estrela de sua boate, a maravilhosa Dorothy Dandridge, nadara naquele dia. Dorothy não tinha quem a defendesse da ofensa, porque seu namorado branco, o cineasta Otto Preminger, não a assumia publicamente.

Em 1960, ao lado de Sinatra e Dean Martin, Sammy Davis Jr. trabalhou duro na campanha de John Kennedy à Presidência. Com Kennedy eleito, Sammy Davis foi "desconvidado" para a festa de posse na Casa Branca por estar namorando uma das mulheres mais desejadas do país, a louríssima Kim Novak.

Daí que, para os americanos, a presença de Barack Obama e sua família na Casa Branca é — como se diz mesmo? — emblemática.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Noite de Gala em Sampa, 25/outubro/2008

Texto revisado para este blog, tendo sido originalmente publicado por mim na comunidade "Rosa Passos", no site de relacionamento Orkut, em 26/outubro/2008




Por sorte, fui o primeiro a entregar o ingresso na entrada do belo e moderno Auditório Ibirapuera, em São Paulo (SP). Sentei-me na fila B, lado direito do palco.

Alguns minutos antes das 21 horas, a voz do crítico musical e escritor Zuza Homem de Mello (organizador do TIM Festival) anunciou o concerto da "Noite de Gala" com Rosa Passos.

Zuza definiu Rosa como "a grande estrela internacional da música brasileira" — e também "a cereja do bolo", mencionando recente crítica publicada no jornal argentino "El Clarín" — http://www.clarin.com/diario/2008/10/21/espectaculos/c-00502.htm —, que destacou seu elogiado concerto (também de encerramento) no Festival Buenos Aires Jazz, realizado no Coliseo da capital argentina.

Sob aplausos de uma platéia 80% lotada, Rosa e seu quinteto fabuloso iniciaram com a suingada "Vatapá", emendando com a suavidade de "Marina" — duas canções de Dorival Caymmi. Em "Marina", o pianista Fabio Torres fez um solo belíssimo, com Rosa e todos na platéia se deliciando.

Rosa estava feliz, pois sua família estava ali a assistindo (marido e filha). E seu neto João Lucas apareceu no palco para lhe dar um abraço e receber beijos da "vovó".

Em seguida, "Verbos do amor" (João Donato-Abel Silva), canção lançada por Gal Costa em 1982, teve Rosa em excelente forma, ensaiando passos de dança, com direito a um belo solo de sax de Vinicius Dorin.

A canção "Preciso aprender a ser só" (Marcos Valle-Paulo Sérgio Valle) teve solo de piston de Daniel D'Alcântara, mantendo o pique do concerto.

"Cadê você" (João Donato-Chico Buarque) ganhou solo de contrabaixo do Paulo Paulelli, o "Filhote" da cantora.

No palco, Rosa e Paulelli fizeram a sempre atraente sequência voz-violão-contrabaixo com "O que é que a baiana tem" (Dorival Caymmi), "Eu e meu coração" (Naldo Vilarinho-Antonio Botelho) que foi um dos pontos altos do concerto, uma delícia emocionante — e a suingada "Pra que discutir com madame" (Janet de Almeida-Haroldo Barbosa). Os sons percussivos que Paulelli faz com a boca e seu contrabaixo estavam "tinindo", emoldurando a voz de Rosa com a competência de sempre.

Com o quinteto de volta, menos D'Alcantara, Rosa mostrou porque é tão admirada mundo afora, cantando "Você vai ver" (Tom Jobim) de forma super suave e expressiva, com direito a um breve improviso em "scat", como merece um festival de jazz.

E emendou com "Águas de março" (Jobim), finalizando num pequeno duelo de voz e contrabaixo.
"Álibi" (Djavan) surgiu espalhando harmonias. Dorin fez novo solo, bastante aplaudido.

Rosa, então, deixou o palco para o quinteto (agora com D'Alcântara) tomar conta. Eles apresentaram uma estimulante jam session com "Samba de Almeida", melodia composta pelo pianista Fabio Torres e dedicada ao baterista Celso de Almeida — incluída no recente e ótimo CD independente do trio (Almeida-Torres-Paulelli).

Ao voltar à cena, Rosa trouxe sua renovada alegria ao cantar "Vestido de bolero" (Dorival Caymmi), que levantou a platéia em outro ponto alto do concerto.

Ao marido na platéia, ela dedicou "A ilha" (Djavan), acompanhada do trio piano-baixo-bateria. Nesta canção, Paulelli executou um solo maravilhoso no contrabaixo, com Rosa extasiada a seu lado. Ela finalizou improvisando um "scat" de-li-ci-o-so... Que marido sortudo o de Rosa!

O concerto encerrou com "Samurai" (Djavan) e um ótimo solo de D'Alcântara.

Aplausos... Aplausos... Aplausos...


Ninguém queria ir embora. Com o público todo de pé, persistindo nos aplausos, Rosa e quinteto retornaram para o bis com "Ladeira da Preguiça" (Gilberto Gil).

Saíram do palco, mas ninguém estava satisfeito ainda. Mais aplausos insistentes — e os músicos tiveram de voltar à cena.

"Não sei o que dizer, o que cantar", comentou Rosa, surpreendida com o público pedindo mais. Depois de consultar os músicos, alguém da platéia sugeriu "O pato" (Jayme Silva-Neusa Teixeira). E ela, aliviada: "Ah! que bom, essa é fácil! E meu marido também já tinha sugerido". E o grupo atacou no improviso. Rosa cantou e brincou com a letra e fez o grupo improvisar em solos individuais, um a um.

O show não poderia ser melhor.

Saindo do palco, felizes com a missão realizada, os músicos se abraçaram, mesmo na penumbra eles sorriam entre si, como uma família plena de harmonia. Irmãos musicais que espalham belezas pelo ar...

••• Fotos de Marlene Alves, que também assistiu ao concerto e gostou muito.

domingo, 21 de setembro de 2008

Billie, Monk & Getz

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 21/setembro/2008, caderno "+Mais!"

+Cultura
O escritor japonês Haruki Murakami relembra três das maiores lendas do jazz

O perdão de Billie
por Haruki Murakami

Eu ouvia muito Billie Holiday quando era jovem e a achava comovente. Mas só fui apreciar de fato o quanto era maravilhosa mais tarde, quando estava bem mais velho. Acho que isso quer dizer que envelhecer traz, sim, algumas compensações. Nos velhos tempos, eu ouvia a música gravada por Billie na década de 1930 e no início da de 1940.

Naqueles anos, sua voz era jovem e nova, e Billie lançava uma canção após outra, a maioria relançada mais tarde pela Columbia nos EUA.

Essas canções eram repletas de imaginação e vôos melódicos acrobáticos. O mundo inteiro dançava no ritmo do suingue de Billie Holiday.

Quero dizer que o planeta se mexia, de fato. Não estou exagerando. Estamos falando aqui de magia, não simplesmente arte. O único outro músico que conheço que possuía virtuosismo tão mágico foi Charlie Parker.

O eu mais jovem não ouviu com tanta atenção as gravações posteriores de Billie Holiday, sua fase na Verve, canções que ela gravou quando as drogas tinham endurecido sua voz e corroído seu corpo.

Ou talvez, quem sabe, eu tenha mantido distância consciente delas. Eu achava suas canções daquela era, especialmente as dos anos 1950, dolorosas, opressivas, patéticas. À medida que fui passando pela casa dos 30 anos e depois dos 40, porém, me vi colocando esses discos na vitrola com freqüência cada vez maior.

Sem me dar conta disso, eu estava começando a sentir desejo e necessidade, física e emocional, daquela música.

O que havia nas canções posteriores de Billie Holiday -canções que poderíamos descrever como alquebradas- que eu era cada vez mais capaz de escutar e que eu não escutara antes? Ando pensando muito sobre isso. Por que essas canções passaram a exercer atração tão poderosa sobre mim?

"Está tudo bem"

Entendi recentemente que a resposta talvez envolva a idéia de "perdão". Quando ouço as canções posteriores de Billie Holiday, posso senti-la abrindo os braços para abraçar os corações das muitas pessoas que magoei ao longo de minha vida e dos meus escritos, as pessoas que sofreram devido a meus muitos erros, e aproximando-as dela. "Está tudo bem", ela canta para mim.

Deixe estar. Isso não tem nada a ver com "curar feridas" - não estou sendo curado de modo nenhum. É perdão, puro e simples.

Sei que essa interpretação da música de Billie Holiday é profundamente pessoal. Eu jamais sugeriria que ela se aplica a todos. É por isso que recomendo sua maravilhosa coleção lançada pela Columbia. Se eu tivesse que escolher uma só canção dela, seria sem dúvida alguma "When You're Smiling". O solo de Lester Young no meio também é um deleite, um trabalho de gênio.
"Quando você está sorrindo, o mundo inteiro sorri com você."E o mundo sorri, de fato. Você pode não acreditar, mas é verdade - ele fica radiante!

Thelonious mágico
por Haruki Murakami

Em certa etapa de minha vida eu me sentia atraído pela música de Thelonious Monk, como por uma atração fatídica. A cada vez que ouvia o som inconfundível de seu piano - como um cinzel golpeando gelo duro em algum ângulo estranho, mas eficaz-, eu suspirava: "Isso sim é jazz!". Ela me alegrava e inspirava.

Mesmo hoje, um cenário em especial me conecta com Monk: café preto forte, um cinzeiro repleto de pontas de cigarro, um conjunto de grandes alto-falantes JBL, um romance parcialmente lido (pode ser algo de Georges Bataille ou William Faulkner), o primeiro suéter do outono, a solidão friorenta de um pequeno café onde se toca jazz.

Ainda adoro imaginar essa cena. Talvez ela tenha pouca ligação com qualquer coisa que tenha acontecido de fato, mas está preservada em minha memória, perfeitamente equilibrada, como uma foto bem composta.

A música de Monk era obstinada e doce, intelectual e excêntrica; entretanto, por alguma razão que nunca fui capaz de identificar, ela sempre acertava o alvo em cheio.Era como um "homem misterioso" que aparece sem aviso prévio, coloca algum objeto incrível sobre a mesa e então some sem dizer palavra.

Ouvir a música de Monk quando se está sozinho é como abraçar algo misterioso. Miles Davis e John Coltrane foram músicos de genialidade espantosa, mas nenhum deles foi um homem misterioso, nesse sentido do termo.

Não me recordo bem quando foi que a música de Monk começou a perder seu brilho original, quando o mistério deixou de ser mistério. Assim como o próprio Monk foi lentamente sumindo na névoa, sem que eu me desse conta disso, o mesmo aconteceu com o equilíbrio e a aura de mistério do cenário do qual ele fizera parte. Então veio a incoerência daquela menos heróica das eras, os anos 1970.

Comprei o LP de título simétrico de Monk, "5 by Monk by 5", numa loja chamada Marumi Records, perto do santuário Hanazono, em Shinjuku, no centro de Tóquio. Era um disco importado - logo, bastante caro para mim, em vista do estado de minha carteira.

Solidão

Ouvi "5 by Monk by 5" inúmeras vezes, sem nunca me entediar. Cada nota, cada frase musical, era tão rica, tão repleta de alimento, que era possível espremê-la mais e mais, sem que seu sumo se esgotasse. E eu, com o privilégio especial que às vezes acompanha a juventude, absorvi cada gota dele em minhas próprias células.

A música de Monk tocava constantemente em minha cabeça, mesmo quando estava simplesmente andando na rua. Mas nunca pude explicar a ninguém a razão do grande amor que sentia por Monk. Parecia que as palavras certas para isso não existiam.

Então me dei conta: essa é uma das formas mais intensas que a solidão pode assumir.Mas não havia problema. Sim, eu estava só, mas estava bem assim. Hoje me parece que, naquela época, eu estava determinado a reunir todas as formas de solidão possíveis. Ao mesmo tempo em que fumava uma montanha de cigarros.

O anjo Stan Getz
por Haruki Murakami

Stan Getz foi um homem complexo, emocionalmente problemático, cuja vida dificilmente poderia ser descrita como feliz ou tranqüila. Seu ego era como um trator, enquanto seu corpo era corroído constantemente por quantidades maciças de álcool e drogas.Na verdade, praticamente não conheceu um momento de paz desde o dia em que nasceu até o dia de sua morte.

Quase sempre, feriu as mulheres de quem se aproximou, e seus amigos acabaram se afastando dele, enojados.

Porém, por mais violenta que possa ter sido a vida do Stan Getz de carne e osso, a doce magia que animava sua música, como o bater de asas de anjos, nunca se enfraqueceu. Quando pisava no palco, com o instrumento nas mãos, todo um novo mundo nascia.Como o pobre rei Midas, cujo simples toque transformava tudo em ouro.

Podemos enxergar ouro, também, nas melodias brilhantes que estão no cerne da música de Getz. Por mais quente que fosse o refrão fora do tempo que ele estivesse criando, sempre era espontaneamente lírico e brilhante.

Como um cantor abençoado por Deus com uma voz perfeita, Getz manipulava seu sax tenor com virtuosidade absoluta, tecendo versos de clareza transcendente, sem palavras. A história do jazz já teve inúmeros saxofonistas, mas nenhum outro foi capaz de tocar com tanta intensidade e paixão quanto Getz, sem descambar para o sentimentalismo barato.

Ao longo dos anos já mergulhei e me perdi em muitos romances e me deixei enfeitiçar por muitas performances de jazz. Mas, para mim, F. Scott Fitzgerald sempre será sinônimo de "o romance" e Stan Getz, de "jazz". Pensando bem, há certas semelhanças entre os dois homens.

Crueldade

A arte de cada um deles tinha vários defeitos evidentes -isso é algo que deve ser dito claramente. Mas, se não tivessem pago o preço desses defeitos, é pouco provável que nos legassem obras de beleza tão duradoura.

De todas as obras de Getz, minha favorita é o álbum duplo gravado ao vivo no clube de jazz Storyville em 1951 [pelo selo Blue Note]. Getz realmente se supera nessa performance: cada faceta de sua arte é magnífica.

Experimente ouvir, por exemplo, a faixa intitulada "Move". A seção rítmica de Al Haig, Jimmy Rainey, Teddy Kotick e Tiny Kahn é perfeita, direta e cool, mas seu ritmo flui com a força incandescente de lava subterrânea.

Mesmo assim, Getz é de longe o melhor. O que explica essa força?

É que suas melodias despertam o bando de lobos famintos que cada um de nós esconde na alma. O hálito delas afunda na neve tão espessa, branca e linda que você tem a impressão de que poderia cortá-la com uma faca. É isso o que a música de Stan Getz nos permite contemplar: a crueldade fatídica oculta nas selvas impenetráveis de nossas almas.

- A íntegra destes textos saiu na "Believer". Traduções de Clara Allain.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

New Orleans, Louisiana...

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 03/setembro/2008, seção "Opinião"

Alegre, bonita e inocente
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Por sorte, o furacão Gustav se apiedou e passou ao largo de Nova Orleans. Tivesse repetido a fúria do Katrina, há três anos, e a devastação seria definitiva. Não foi desta vez, mas, um dia, será. Nova Orleans, construída na rota dos furacões, tem regiões abaixo do nível do mar -não custa muito para ser levada de um gole.

É das poucas cidades do mundo (e a única americana) que despertam um sentimento universal de ternura. Em toda parte, há gente que ama Nova Orleans sem nunca ter ido lá. É o meu caso. Basta um mínimo de formação jazzística para ficar íntimo de suas ruas ou casas, muitas delas títulos de músicas.

Ruas como a Basin, Canal ou Perdido — qual jazzista não conhece "Basin Street Blues", "Canal Street Blues" ou "Perdido"? Louis Armstrong (que nasceu numa aléia da Perdido) imortalizou "Mahogany Hall Stomp", referente ao extinto Mahogany Hall, o bordel de madame Lulu White, de luxo inacreditável. Jelly Roll Morton compôs "Pontchartrain Blues", em homenagem ao lago Pontchartrain, que, quando transborda, alaga a cidade inteira. E a zona do West End, ao pé do lago, inspirou o "West End Blues", de King Oliver.

Diz-se que o berço do jazz foi Storyville, o bairro da prostituição em Nova Orleans, que a lei mandou fechar e demolir em 1917. Expulsos do paraíso e sem ter onde tocar, os músicos começaram a longa peregrinação — por Memphis, St. Louis, Kansas City, Chicago e, finalmente, Nova York — que teria propagado aquela música pelos EUA.

Nova Orleans é amada porque nos remete à infância do jazz, com aquela polifonia alegre, bonita e inocente — anterior ao cerebralismo genial de Duke Ellington e Thelonious Monk, ao virtuosismo trágico de Billie Holiday e Charlie Parker ou à cara amarrada de Miles Davis e John Coltrane.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Caymmi num verão romano...

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 22/agosto/2008, seção "Opinião

Milagre em Roma
por Nelson Motta

RIO DE JANEIRO - No verão romano de 1983, Dorival Caymmi foi a grande estrela do festival Bahia de Todos os Sambas, no Circo Massimo, ao lado de João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Moraes Moreira, com o trio elétrico de Dodô e Osmar fazendo um carnaval na Piazza Navona.

Depois de um dos shows, dividi um táxi com Caymmi e Nana. O "Algodão" estava feliz, o rosto moreno cercado pelos cabelos branquíssimos, sereno como quem sabe, leve como quem aceita, o perfeito "Buda nagô" cantado por Gilberto Gil. Refestelado no banco traseiro, para deleite meu e do taxista, inicia um dueto da "Tosca" com Nana, enquanto rodamos pelas ruas estreitas do Trastevere. Caymmi foi criado ouvindo ópera e música clássica, adora Bach, diz que todos os acordes e harmonias que ainda hoje surpreendem os que se acham modernos já estavam nele.

Nana canta "Só louco", e a cidade eterna passa iluminada pela margem do Tibre. Dorival faz uma segunda voz, revira os olhos, faz bico com os lábios grossos e sensuais. É a encarnação do "dengo viril", uma macheza dengosa e sedutora, tão presente na vitoriosa mistura de baianos com árabes, como Jorge Amado, ou italianos, como Caymmi.

O motorista está adorando o concerto e desconfio que faz um percurso mais longo mais por prazer do que por dinheiro. Várias músicas depois, quando chegamos ao hotel, abracei Caymmi comovido e, diante de minha expressão abobalhada de êxtase e gratidão, declamou com voz grave e majestosa:

"Cada minuto que passa é um milagre que não se repete".Deu um tempo para que eu absorvesse tanta sabedoria filosófica e, com o timing de um grande comediante, revelou a fonte de tanta poesia: "Rádio Relógio Federal".

Boa noite, Dorival Caymmi.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Ah! Dorival Caymmi...


Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 18/agosto/2008, seção "Opinião".

Sábado em Copacabana
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em 1947, quando Dorival Caymmi começou a compor seus incomparáveis sambas urbanos -"Marina", "Não Tem Solução", "Nem Eu", "Saudade", "Adeus", "Nunca Mais", "Só Louco", "Você Não Sabe Amar", "Sábado em Copacabana"-, os puristas rosnaram sua decepção. Acusaram-no de se estar vendendo para o universo das boates. Logo ele, o grande folclorista, baiano legítimo, cantor e cultor das nossas tradições.

Para os íntimos, Caymmi se justificava dizendo que não era folclorista e que apenas precisava trabalhar. Com o fechamento dos cassinos em 1946, já não havia espaço para as superproduções em que o palco podia comportar uma jangada, uma praia ou uma rua inteira da Bahia. A realidade agora era a das boates, amenas e intimistas, em que, às vezes, o show se limitava a ele e seu violão -como se ele precisasse de mais do que isso.

A música teria de seguir o novo formato. No lugar das epopéias de pescadores em noites de temporal, era a vez dos amores loucos e sem solução, aqueles que não podiam acontecer. As marinas épicas, com tintas de tragédia, transformavam-se numa morena chamada Marina que se pintava além da conta. As tormentas passavam a ser íntimas, mas nem por isso menos brutais.

Não quer dizer que Caymmi tenha abandonado a temática baiana. Sempre que cantou o mar, era o da Bahia. Um mar também idealizado porque, segundo sua biógrafa e neta Stella, ele não sabia nadar e nunca pescou. O que só exacerba a beleza de suas canções praieiras. O artista não precisa ter a ver com sua arte.

O Caymmi em terra firme derrotou o preconceito dos puristas e se impôs por sua maior complexidade musical e poética. De seus 94 anos, passou os últimos 70 no Rio, e há um quê de fatalidade e lirismo no fato de ter morrido num sábado em Copacabana.

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- Dorival Caymmi nasceu em 30/abril/1914 (Salvador, BA) e passou para a eternidade em 16/agosto/2008 (Rio de Janeiro, RJ).

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Quarteto em Cy - biografia e primeiro DVD

Texto publicado no JBonline em 13/agosto/2008

Encontro no orkut inspira biografia do grupo vocal Quarteto em Cy
por Leandro Souto Maior, JB Online

RIO - Vinicius de Moraes apresentava elas assim: “Estas são as minhas menininhas, são as quatro baianinhas que eu um dia descobri: Quarteto em Cy”.

Em 1964, elas eram quatro garotas recém chegadas da Bahia e que ficaram muito encantadas - e ao mesmo tempo muito apavoradas - de contracenar com aqueles dois ídolos: Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi. Quarenta anos depois, Cyva, Cynara, Cybele e Sonya voltam ao repertório dos compositores, em lançamento de DVD e show no Teatro Rival, nesta sexta e sábado.

- A gente se sente na obrigação de cantar essas músicas para essa nova geração, de mostrar quem são esses caras que continuam sendo ídolos – diz Cynara

Elas estão com um site na internet (www.quartetoemcy.com.br), mas apenas Cynara é antenada às novidades e possibilidades da rede.

- Eu sou uma pessoa absolutamente viciada na internet. Adoro o que ela pode me dar de bom e uma das coisas mais importantes da minha vida foi saber lidar com isso. A Sonynha não gosta de internet. Cyva e Cybele não tem internet, mas ficam loucas quando eu conto meu entusiasmo!

E foi justamente no mundo virtual, mais precisamente no site de relacionamentos orkut, que surgiu o próximo projeto envolvendo o Quarteto em Cy.

- Descobri muita gente jovem apaixonada pelo nosso trabalho através do 'tal' do orkut. As pessoas pensam que é bobagem, mas não é não. Se você sabe usar aquilo para o bem, é uma ótima ferramenta. Através do orkut eu conheci uma jornalista, Inahiá Castro, que se apaixonou pela história do grupo e propôs fazer um livro, que já está pronto e vai ser lançado ainda este ano.

A história das quatro irmãs que vieram do interior da Bahia é realmente 'novelesca'.

- Ela mora em São Paulo, mas veio aqui no Rio pegar depoimentos, e pegou cada um melhor que o outro. Ela falou com o Chico (Buarque), com o (Gilberto) Gil, Carlos Lyra, com muita gente. Além disso, cedemos todo um material fantástico de documentos, fotos e tudo o mais, que vão impressionar e emocionar muita gente – adianta Cynara.

- Tudo começou quando a Inahiá perguntou em uma comunidade: 'quem teve contato com Vinicius?' Aí não sei o que me deu que eu respondi, e ela não acreditou que era eu, daí que começou tudo. E não poderia ser mesmo de outra maneira, porque o Vinicus arregimenta essa coisa da amizade de uma forma maravilhosa!

44 anos de carreira

Além de clássicos eternizados nos arranjos do quarteto, o repertório do show traz ainda pérolas nunca antes registradas por elas, como Pela luz dos olhos seus e Valsinha. Cynara assina grande parte dos arranjos vocais da apresentação.

- Gosto de todo mundo que faz vocal, o que é um desafio hoje em dia. Às vezes me parece como uma arte tão esquecida... As pessoas não valorizam, e é uma 'trabalheira danada'. Estudar o timbre, a tessitura, ver as vozes... Aí você canta, a música acaba naquele três minutos, e ninguém imagina o tempo que se dedicou àquilo - lamenta, mas não desanima:

- Estamos com muito gás. Quarenta e quatro anos de carreira não é brincadeira! Já temos um jeito de olhar uma para a outra e saber o que cada uma quer, o que cada uma gosta. É como um casamento – compara.

[01:21] - 13/08/2008

domingo, 10 de agosto de 2008

Indústria do disco

Texto publicado no uol.com.br em 10/agosto/2008

As profundas transformações por que passa a indústria do disco
por Véronique Mortaigne, "Le Monde", França

Talvez fique registrada na história da "chanson", a música popular francesa, a anedota que chamou a atenção nesta temporada: o lançamento, em 11 de julho, de "Comme si de rien n'était", o álbum de Carla Bruni, a mulher do presidente Nicolas Sarkozy, um título que pode ser traduzido por "Como quem não quer nada". Neste campo, a acumulação das funções é um caso bastante incomum. Para encontrar casos similares, vale tentar pesquisar no passado. Eva Perón fora uma atriz de filmes de série B até casar-se em 1945 com o futuro presidente argentino. Ou procurar no presente. Sonsoles Espinosa Zapatero, a mulher do atual presidente do governo espanhol, é cantora de ópera, uma soprano discretíssima. Mas, apesar das tentativas, a pesquisa não dá em nada. O episódio da Carla Bruni é mesmo inédito.

Ele é extraordinário, não apenas porque a cantora, uma ex-top-model experiente na prática de lidar com a mídia, utilizou a vitrine do show business para organizar a comunicação política do seu casal, mas também, mais ainda porque ele é significativo das profundas transformações que vêm sofrendo as indústrias culturais e seus modos de expressão. Vale ressaltar a precisão do plano de comunicação elaborado pela primeira-dama da França, que galga novos degraus na inventividade da promoção: a uma frase musical de Barbara (1930-1997, uma cultuada cantora, compositora intérprete francesa) acrescentada na calada da noite à música "Dérangez les pierres", cuja melodia foi originalmente composta por Julien Clerc, responde em 12 de julho uma foto de Peter Lindbergh para a revista "Elle". Nela, Carla Bruni posa com a mesma atitude da jovem Françoise Hardy (em meados dos anos 1960): cabelos compridos, pernas dobradas; no fundo do cenário, sobre um piano, a foto de Barbara. Ou seja, elementos suficientes para sugerir seu posicionamento no contexto histórico da música popular francesa...

Mas a mulher do presidente não inovou neste terreno. E ela tampouco foi a precursora das excrescências de imagem: neste quesito, ela não tem nada a ensinar para Pete Doherthy, Amy Whinehouse, Britney Spears, embriagados e drogados. . . A mídia e os consumidores adoram as loucuras das stars. Mais recentemente, na França, a moda tem mostrado certa preferência pelos cantores populares filósofos (sic), tais como Julien Doré, ou ainda pelos "artistas do bem", que pretendem remediar as mazelas do mundo, inclusive do mundo do rock'n'roll, onde os abusos caracterizam a própria essência do gênero.

Este é o caso do Radiohead que, motivado por uma legitima preocupação, decidiu reduzir os gastos com energia gerados pelas suas apresentações. Para tanto, exigiu que os assentos reservados para a imprensa fossem atribuídos apenas aos cinqüenta primeiros jornalistas que chegassem de bicicleta à sede da Beggars França. Esta gravadora independente fora obrigada a ceder às exigências do grupo britânico.

Houve um tempo em que os artistas carentes de precisão no tocante aos seus feitos e à sua pessoa optavam por dirigir a mão do jornalista. Foi assim que o "publicist" (o encarregado da comunicação) de David Bowie se notabilizou ao distribuir um calhamaço de espessos envelopes intitulado "Todas as perguntas que você está querendo fazer a David Bowie", com as respostas, antes de entrevistas organizadas em Nova York para a imprensa mundial. Ao menos, o jornalista tinha a vantagem de encontrar-se então com o homem dos olhos de cores diferentes reservadamente.

Neste verão, o americano Tom Waits, fazendo jus à sua reputação de urso inspirado, alçou esta estratégia para um nível superior. Inspirando-se nos conselhos do seu círculo de apaixonados, ele excluiu os desprezadores, oferecendo para jornais auto-entrevistas e dando uma coletiva de imprensa provocadora na Internet (os flashes das câmeras e as perguntas feitas são na verdade uma montagem, uma vez que Waits responde para uma sala vazia). Ele também exigiu que fossem efetuadas verificações de identidade na entrada dos seus shows, com venda de ingressos nominativos — que custam na França entre 69 e 139 euros (entre R$167 e R$336 no câmbio atual) — de modo a evitar os cambistas, num derradeiro gesto de generosidade democrática.

Os empresários de artistas, em particular os anglo-saxões, vêm impondo mais e mais as suas estratégias. Em abril, o grupo belga d'EUS e a filial bruxelense da Universal Music haviam imposto aos jornais a assinatura de um "protocolo de embargo" acrescentado de uma multa de 25.000 euros (cerca de R$60.000) em caso de publicação dos artigos antes da data prevista de lançamento do álbum "Vantage Point". Os diários "Le Soir" e "De Morgen" romperam o acordo em nome da liberdade da imprensa.

As relações entre a indústria musical e os meios de comunicação foram ficando mais e mais tensas com o agravamento da crise do disco em 2007 e 2008. Algumas grandes companhias, tais como a prestigiosa britânica EMI, que foi comprada em 2007 por um fundo de investimentos americano, o Terra Firma, ou ainda a Sony-BMG, que é o produto de uma fusão destinada a reduzir o número de funcionários de ambas as companhias, vêm enfrentando planos de reestruturação sucessivos. As tradicionais assessorias de imprensa dos selos vêm derretendo como neve no sol.

Dentro deste contexto, os veículos de comunicação deixaram de ser vistos como meios de informação, mas sim como plataformas de comunicação. Cada vez mais, a campanha de "promoção" é iniciada muito mais cedo que de costume. As gravadoras lançam mão de convites para entrevistas "frente a frente", oferecidas com "exclusividade", podendo ser realizadas até mesmo na casa do artista; ou ainda de sugestões de visitas nos estúdios para se descobrir trechos de "work in progress", ou para ouvir falsas confidências.

A Internet também andou modificando as práticas. Assessores de imprensa se disfarçam de blogueiros para fomentarem o rumor; grupos de internautas considerados como estratégicos (blogueiras antenadas em culinária, jovens viciados em colunas sociais, sites de consumidores) são convidados para audições de lançamentos em primeira-mão, etc.

Recusa de toda promoção

No passado, as gravadoras garantiam o desenvolvimento das carreiras de artistas. Atualmente, os cofres estão vazios, e a lógica foi rompida. Os artistas precisam rever sua posição. A EMI acaba de perder os Rolling Stones em proveito da Universal Music. A Warner teve de se conformar a desistir de Madonna, que se bandeou de cuia e malas para o gigante do entretenimento americano Live Nation, enquanto Bob Dylan, depois de décadas na Columbia Records (Sony-BMG), se rendeu ao canto da sereia da cadeia de bares Starbucks Coffee.

Carla Bruni, por sua vez, investiu em todos os setores — a moda, a política, as artes. Com tudo isso, o acesso à informação acabou ficando enviesado.

No futuro, ficará sem dúvida registrado na história da música popular mundial que o verão de 2008 também foi o do retorno do cantor canadense Leonard Cohen, que estava ausente dos palcos mundiais havia treze anos. O lendário autor de "Suzanne" é um artista vinculado desde 1966 à Columbia Records, uma gravadora na qual ainda é possível cruzar com Bob Dylan, Bruce Springsteen, e, na França, Francis Cabrel, Céline Dion ou Jean-Jacques Goldman — um alérgico à crítica.

Cohen, 73 anos, que ostenta dezenas de milhões de discos vendidos pelo mundo afora, cantou, triunfalmente, em diversos festivais de verão. Para comemorar este evento, ninguém mexeu uma palha na Sony-BMG. Contudo, o catálogo de Leonard Cohen pertence mesmo à Columbia. Mas, infelizmente para ele, o cantor-compositor não está preparando nenhum disco por enquanto. Por que uma gravadora, no momento em que tudo vai mal, iria prestar ajuda a produtores de espetáculos cujos negócios são florescentes? Este deve ter sido o pensamento de mais de um na Sony-BMG. Quanto a Leonard Cohen, ele havia recusado toda promoção, sem que isso viesse prejudicar sua arte nem chegasse a atrapalhar os jornalistas, que relataram com muito afinco a sua performance.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

domingo, 3 de agosto de 2008

Pianista Herbie Hancock, o "rei do jazz"

Texto publicado no caderno "+Mais", do jornal "Folha de S.Paulo', de 3/agosto/2008

Cultura

O Rei do Jazz

UM DOS MAIS IMPORTANTES MÚSICOS EM ATIVIDADE, O PIANISTA HERBIE HANCOCK RELEMBRA A PARCERIA COM MILES DAVIS NOS ANOS 1960, FALA DE ELEIÇÕES NOS EUA E SOBRE O FUTURO DO GÊNERO

por Iker Seisdedos

Lenda viva do jazz, o pianista Herbie Hancock vive um dos melhores momentos de seus quase 50 anos de carreira brilhante. No início do ano [em fevereiro], ganhou o Grammy de melhor disco de 2007 por seu álbum em homenagem à cantora e compositora canadense Joni Mitchell -"River -The Joni Letters" (Verve/ Universal).

Foi o primeiro disco de jazz a ter recebido o prêmio máximo da indústria musical em 44 anos (o último tinha sido "Getz/Gilberto", de Stan Getz, graças a um fenômeno chamado "The Girl from Ipanema").

Os últimos meses também foram marcados por sua eleição para a lista da revista "Time" dos cem personagens mais influentes e pelo fato de a Universidade Harvard lhe ter dado a distinção de artista do ano.

Hancock é provavelmente o músico de jazz que mais marcas deixou na história da cultura pop. Por exemplo, a trilha sonora de "Blow Up - Depois Daquele Beijo", obra-prima de Michelangelo Antonioni.

Nos anos 1970, liderou a bastardização do jazz com "Headhunters", que marcou época com seu 1 milhão de cópias vendidas.

E, se nos anos 1980 popularizou o "scratch" -técnica empregada pelos DJs de rap- com "Rockit", nos anos 90 viu o trabalho que fez para o selo Blue Note no início de sua carreira ser apropriado pelo hip hop e o acid jazz, conquistando um novo tipo de ouvinte.

Daquele tempo, esse artista camaleônico, membro do inesquecível segundo quinteto de Miles Davis no final dos anos 1960 -talvez a melhor formação jazzística que já existiu-, conserva as mãos finas que chamavam a atenção na elegante e distante capa de seu primeiro disco como artista principal, de 1962.

Foi então que o mundo descobriu um prodigioso pianista de Chicago de formação clássica, um improvisador incansável, capaz de introduzir Debussy no mais arraigado discurso da música negra. Aos 68 anos, Herbie Hancock ainda veste cores escuras e exibe forma física invejável.

Lê revistas de divulgação científica para passar o tempo e dobra o paletó do visitante como um jazzman daqueles de antigamente -pobres, mas cujas roupas eram bem passadas.

PERGUNTA - O atual sucesso do jazz, de que seu prêmio é um exemplo, é freqüentemente atribuído aos popularizadores tradicionais do gênero, como o trompetista Wynton Marsalis e o documentarista Ken Burns -que, diga-se de passagem, costumam contar uma história do jazz um tanto quanto enviesada e edulcorada...
HERBIE HANCOCK - É possível. O que acho é que o jazz é muito saudável para a alma humana, algo que realmente liberta a alma. É como se o espírito não obtivesse satisfação suficiente com outras formas musicais, que podem ser maravilhosas, mas, sinceramente, não chegam até onde chega o jazz.
Todos os gêneros são válidos, mas há algo de muito especial neste ao qual dediquei minha vida. É uma queda livre, e você precisa de músicos nos quais se apoiar. Não conheço ninguém que faça jazz pela fama, as jóias ou as mulheres.

PERGUNTA - Por que ocorreu tão tardiamente o reconhecimento dessa expressão cultural mais duradoura e original dos EUA?
HANCOCK - Eu me recordo de quando tocava com Miles [Davis], nos anos 1960. Naquela época o jazz ainda era uma música que se tocava nos clubes, longe dos grandes festivais.
Éramos sujeitos com classe e fazíamos uma música que ninguém comprava. Eu tinha 20 e poucos anos. Depois disso, o jazz se tornou uma coisa virtuosística demais. As pessoas comuns não assimilam algo muito complicado.
Chegou o rock and roll, e acabou-se a história.

PERGUNTA - Aos 25 anos de idade, você conseguia entender a importância daquela música?
HANCOCK - Curtíamos explorar, nos aventurar em áreas onde ninguém estivera antes. A idéia de explorar terreno novo ainda está muito presente para mim.
Inclusive em "River", que pode ser considerado um álbum mais fácil de se ouvir, ou no anterior ("Possibilities"), que foi muito criticado por eu ter colaborado com artistas como Christina Aguilera.
Diziam que faltava um centro ao disco, que abarcava muita coisa e se fixava em poucas, como se isso fosse algo intrinsecamente ruim.
Para mim, é isso o que é preciso fazer neste momento. Esse é o signo destes tempos de downloads digitais. Ninguém mais ouve álbuns inteiros. As pessoas só se interessam por canções. Por isso fiz um disco em que parecia que cada faixa vinha de um disco diferente.

PERGUNTA - Você sempre pareceu ter sido do tipo íntegro e careta, o cara que ficava longe das drogas, que tomava as decisões certas. Uma imagem que, naquela época, não era típica de um jazzman...
HANCOCK - Vamos deixar claro: não éramos anjos. E não se iluda: eu fiz algumas das coisas que a gente fazia. Foi uma época difícil. E alguns ficaram pelo caminho.

PERGUNTA - Era difícil conviver com alguns deles?
HANCOCK - Sobretudo com aqueles que se afundaram na heroína. Muitos saíram dessa graças ao islã.

PERGUNTA - Nunca se converteu?
HANCOCK - Nos anos 70, flertei com o islã. Me fazia chamar Mwanddishi, mas era mais por solidariedade com a luta política da comunidade negra.

PERGUNTA - Quais são suas lembranças de Joni Mitchell jovem? A loira cantora e compositora de folk foi bem recebida quando começou a se misturar com músicos de jazz?
HANCOCK - Muitos a trataram com frieza num primeiro momento, porque a tinham ouvido no rádio e não entendiam o que ela estaria procurando entre nós. Era uma hippie com seu violão. Pessoalmente, não a tinha ouvido muito antes de conhecê-la. Nascer em 1940 significou fazer parte da geração anterior ao rock and roll.
Lembro-me de que estava fazendo o disco dela, "Mingus", quando fui a um ensaio. [O baixista] Jaco Pastorius me chamou. Eles já tinham trabalhado juntos antes. Disse: "Tio, estamos fazendo um disco em homenagem a Charlie Mingus".
Pensei: "Por que essa garota está se metendo nessa história?". Jaco me falou: "Wayne Shorter está comigo". Bom, se Wayne estava lá, nada de mau poderia acontecer. Então fui.

PERGUNTA - Jaco Pastorius era um daqueles sujeitos incômodos aos quais você se referia antes?
HANCOCK - Muitos eram junkies. Jaco não era exatamente assim. Provavelmente tomou heroína. E cocaína também.
Mas o caso dele era mais grave. Tinha um desequilíbrio químico na cabeça. Acabou louco.
Mas, na época em que eu o conheci, era um sujeito normal.
Vivia na Flórida, tinha mulher e filhos, era um jovem marido que tocava baixo como os anjos. Entrou para o Weather Report, e isso foi ótimo para seu desenvolvimento fenomenal. Faziam música estarrecedora, aclamada pela crítica e pelas platéias de jazz.
Era um público grande para um grupo como aquele, mas não grande como o público de rock. E Jaco era uma estrela de rock, sobretudo quando subia ao palco, mas não ganhou a atenção que esperava. Acho que isso minou sua personalidade frágil, até acabar com ele.

PERGUNTA - Você foi homenageado com o Grammy mais apropriado para a era Barack Obama.
HANCOCK - Ninguém esperava que um negro fosse candidato à Presidência dos EUA, assim como ninguém teria apostado que um velho músico de jazz levasse o Grammy. As duas coisas são sinais de mudanças nos EUA, que está precisando mesmo virar uma página.

PERGUNTA - Isso tem a ver com questões raciais?
HANCOCK - A questão racial é apenas uma parte do problema.
Este inclui questões como a cor da pele, sem dúvida, mas não é apenas isso. Também o gênero faz parte. É um sinal positivo e saudável. Você imaginou que veria uma mulher candidata à Presidência?

PERGUNTA - Nem sequer quando Jesse Jackson esteve a ponto de ser candidato [democrata], em 1988?
HANCOCK - Nunca pus fé nele.
Ele nunca me pareceu confiável, nem mesmo o homem adequado. Já Obama, pelo contrário, o é. Mas não pela cor de sua pele. Tenho muitos amigos com os quais tenho falado sobre assunto. Alguns o apóiam porque o vêem como gente sua.
Mas outros subscrevem as mesmas razões que eu. Obama é o tipo correto, que está despertando a consciência de muitos eleitores jovens. É só isso. Ninguém conseguiu isso antes.
Talvez Kennedy, apenas. Em quem eu, é claro, votei, na época dele, quando tinha pouco mais de 20 anos.

PERGUNTA - Antigamente o jazz era uma coisa que deixava os pais de cabelos em pé, mas já faz tempo que não é assim, infelizmente. Onde foi parar essa periculosidade?
HANCOCK - Sim, o jazz foi irado em sua época. Nos anos 1960, havia discos que representavam o protesto. Ainda existem hoje, mas são poucos.
Quanto à periculosidade que você menciona, é verdade que o jazz pendeu para o comercial.
Se pensar bem, verá que o fato de alguém querer vender discos é uma intenção nobre. As rádios que transmitem jazz autêntico estão morrendo. Os adolescentes acham o jazz limpo demais, às vezes chato.
Mas isso não é algo que se possa atribuir a todo o campo do jazz. Não seria justo atribuir tantos problemas derivados do "smooth jazz" a todos os músicos que ganham a vida como podem nos clubes.

PERGUNTA - Por que não conseguem fazer contato com os jovens?
HANCOCK - Eu ando vendo mais gente jovem nos concertos, graças a programas de educação e iniciativas desse tipo. Talvez não seja a coisa mais beatnik do mundo, mas também não é intrinsecamente mau que se estude o jazz nas escolas.

PERGUNTA - Você é provavelmente o artista de jazz que mais vezes deixou sua marca na cultura pop.
HANCOCK - É que, se todos nós ficássemos sempre dentro de nossas torres de marfim, tocando "Round Midnight" [standard do gênero] de vez em quando, o jazz acabaria morrendo. Não se conquistariam novos ouvintes, os músicos envelheceriam e acabariam por desaparecer.
Qual seria o resultado de algo assim? O jazz morreria, e não haveria saída.

— A íntegra desta entrevista saiu no "El País". Tradução de Clara Allain.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sonoridades e silêncios

Texto publicado no caderno "Equilíbrio", do jornal "Folha de S.Paulo', de 24/julho/2008.

OUTRAS IDÉIAS

Michael Kepp

Sonoridades e Silêncios

[...] OS BARULHOS QUE OS BRASILEIROS FAZEM EM RECITAIS QUEBRAM O ENCANTO E REPRODUZEM A CACOFONIA DA RUA, DA QUAL BUSCO BREVE REFÚGIO

Música instrumental ao vivo requer a ausência de outros sons. A platéia pode acompanhar um cantor, mas só pode participar de um concerto ficando em silêncio.

Essa música, da clássica ao chorinho, pode me hipnotizar. E qualquer ruído pode, como o estalar de dedos do hipnotizador, me trazer de volta à realidade. Os barulhos que os brasileiros fazem nesses recitais quebram o encanto e reproduzem a cacofonia da rua, da qual eu busco breve refúgio.

Esses ruídos também distraem os músicos, sejam celulares, seja o proibido pipocar de flashes de câmeras, que pode fazer um artista piscar sem parar. Recentemente, o pianista César Camargo Mariano achou o estalo da abertura das latas de cerveja em seu primeiro solo tão intrusivo que disse à platéia, numa mistura de ironia e irritação, que a música não fora composta para incluir aquela pontuação metálica.

O que mais me distrai em concertos é o barulho que se faz devagar, achando que não atrapalha. Um exemplo é a perua que passa cinco minutos abrindo o zíper da bolsa, procurando a bala, abrindo a bala e fechando o zíper com a mesma lentidão. Outro é o marmanjo que passa dois movimentos de uma sinfonia triturando suavemente um pacote de amendoins.

Nenhuma sala de música deveria permitir que se coma e se beba nas poltronas, mas muitas aqui permitem. Em casas de espetáculo, onde você tem esse direito, muitos abusam. Pedem comidas e bebidas durante os números musicais, e não entre eles ou antes de o show começar. Mas os garçons não ouvem os pedidos por causa da música.

Então, o freguês repete aos gritos. E o tamanho do pedido, que estica a interrupção, me dá a impressão de que veio apenas comer e tem a sensibilidade musical de uma porta.

Os brasileiros são verbalmente abusivos em outros lugares onde deveriam ficar quietos. Enquanto professores dão aulas, alunos de todas as idades falam ao celular, mesmo na primeira fila. Recentemente, o ginecologista de uma amiga atendeu ao telefone três vezes durante o exame. Em vôos transcontinentais, já passei noites em claro devido a cariocas que viram as noites em conversas.

Cinemas também não são apropriados para socializar depois que a luz se apaga. Mas fico menos irritado com diálogos em cinemas do que em salas de música. Pelo menos, nenhum músico é desrespeitado. Numa exibição de "O Segredo de Brokeback Mountain", dois estranhos bateram boca tão alto que alguém gritou: "Dá um beijo nele". Mas nada engraçados são os bate-papos em recitais de música de câmara, que me forçam a soltar "psius".

Perdôo palmas fora de hora porque são frutos do desconhecimento de convenções musicais, mas não os outros barulhos feitos em concertos aqui, frutos da desconsideração. Uma sala de música não deve reproduzir os ruídos da rua, e sim ser um santuário contra eles. Uma platéia cria seu ambiente ideal ficando sossegada.

Só então pode formar com o músico um acordo tácito, para explorar sonoridades e os silêncios entre elas.

— MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br

sábado, 5 de julho de 2008

Bossa nova... segundo Carlos Lyra

Texto publicado no suplemento "Caderno 2" do jornal "O Estado de S.Paulo". É uma visão muito interessante e até verossímil do que foi o tal movimento musical chamado "Bossa Nova".

"Bossa nova não foi um movimento"
por Antonio Gonçalves Filho

Para Carlos Lyra, ela foi, antes, um “surto cultural” da classe média carioca

Os 50 anos da bossa nova foram lembrados na 6ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) com um debate entre um de seus pioneiros, o músico e compositor Carlos Lyra, e o crítico Lorenzo Mammì, em que o primeiro classificou-a de um "surto" cultural de músicos cariocas, insatisfeitos com as formas de interpretação musical dominantes no Brasil durante os anos 1950.

Lyra, que escreve atualmente um livro sobre a história da bossa nova para a editora Casa da Palavra, explicou porque prefere a palavra surto no lugar de movimento musical.

"Seria incorreto chamar a bossa nova de movimento, considerando que não tínhamos sequer um manifesto", disse Lyra, que, num rápido lance de análise sociológica, classificou o "surto" como resultante da frustração musical de jovens da classe média, sem modelos formais capazes de suprir sua carência estética.

O vozeirão dos cantores populares e as letras derramadas e passionais das canções da era JK encontraram sua contrapartida na batida minimalista e na suavidade da interpretação dos primeiros músicos da bossa nova, assim batizada por um garoto judeu da Sociedade Hebraica do Rio de Janeiro, do qual Lyra não lembra o nome.

Comparando os pioneiros da bossa nova (ele, Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim, entre outros) aos poetas e músicos provençais, Lyra admitiu até mesmo que suas intenções não eram muito diferentes daqueles líricos europeus que provocaram uma revolução estética no século 12 ao trocar o latim por uma língua compreensível por jovens damas nas quais estavam interessados.

"Nós também só queríamos sair com as menininhas e esse primeiro momento da bossa nova revela nossa intenção de dedicar a elas canções de louvor", admitiu o autor do clássico Minha Namorada. Como argumento adicional, a bossa nova tinha, segundo ele, o "discreto charme da burguesia e a harmonia dos impressionistas franceses relida por Cole Porter".

Em outras palavras, o que Lyra disse é que os pioneiros da bossa nova não ignoravam o apelo da suavidade de Ravel nem a sensualidade do jazz como componentes de um gênero musical que pretendia celebrar o "amor, o sorriso e a flor" numa época em que o Brasil passava por uma radical transformação econômica, política e cultural.

Os jovens bossa-novistas não ficaram à margem desse processo, observou Lyra, lembrando que muitos deles foram criadores dos centros populares de cultura (CPC), destinados a fomentar não só uma nova estética sem desconsiderar as raízes populares como a "mudar a realidade brasileira", isso "depois de termos tudo na era JK", concluiu, irônico, o compositor, criticando a postura arrogante de jovens da classe média que, como ele, se consideravam guardiães da cultura brasileira.

"Mas 1964 acabou com tudo, inclusive com a primeira fase da bossa nova, que se tornou mais engajada, trocando Chega de Saudade por O Morro Não Tem Vez."

O crítico Lorenzo Mammí interveio justamente para lembrar que essa primeira fase durou pouco mais de dois anos, justamente o tempo para que os americanos descobrissem a bossa nova e promovessem o primeiro show internacional do gênero, ao reunir os pioneiros no Carnegie Hall de Nova York, em 1962.

Lyra, na contramão da história oficial, diz que o show foi um fiasco artístico, misturando bons músicos brasileiros com intérpretes americanos de segunda categoria. "A sorte é que fomos vistos por músicos do porte de Stan Getz, Charlie Byrd e Gerry Mulligan, que souberam separar o joio do trigo."

Conclusão: a bossa nova entrava nos EUA na mesma época em que os Beatles começavam a provocar histeria entre jovens americanos.

A bossa nova interveio no jazz de modo decisivo, segundo o crítico Lorenzo Mammì. "É a música mais complexa e sofisticada produzida pelos latinos até então", disse, observando que os maiores nomes do gênero foram conquistados justamente em razão desse apelo.

"Frank Sinatra não cantou tango, mas cantou bossa nova", argumentou o crítico, fazendo uma comparação entre seu maior sucesso, a canção Night and Day, composta por Cole Porter, e a brasileira Samba de uma Nota Só, ambas de caráter protominimalista, uma vez que usam uma nota repetida à exaustão em sua estrutura formal, repetição que o crítico interpretou de diferentes maneiras. No caso da canção brasileira, ela seria, segundo ele, a representação de uma utopia que já deveria ter passado pelo trauma da industrialização.

"Assim como o jazz dos anos 1930 representa o lado alegre do fordismo, a bossa nova, no final da década de 1950, é uma utopia que não se realiza." O movimento, segundo ele, foi rapidíssimo.

Entre o disco pioneiro da bossa nova, gravado em 1958 pelo compositor e cantor João Gilberto, e o show do Carnegie Hall, em 1962, pouco mais de três anos se passaram, separando o que chamam de "fase lírica" da fase "épica" do gênero, mais engajada. A garota de Ipanema começava a envelhecer.

domingo, 22 de junho de 2008

Um adolescente de 60 anos

Este texto foi publicado na "Revista da Folha", 22/junho/2008, suplemento dominical do jornal "Folha de S.Paulo". Serve pra gente de toda idade.

Um adolescente de 60 anos
por Francisco Daudt, psicanalista

Acabei de completar 60 anos. A velhice e a morte começam a me assombrar. O que fazer?
É coincidência, mas minha carteira de identidade me diz que também completei 60 anos recentemente. É sempre um marco. Quando eu tinha uns 20, considerava que uma pessoa de 60 era um ancião quase morto.

Alguém disse que "a vida é uma doença sexualmente transmissível com 100% de fatalidade". Mas, como a lepra, é de deterioração lenta, o que nos faz ir nos acostumando com seu avanço. Ou mesmo desfrutando da nossa única idade: estamos vivos.

Reparei que minha idade varia, ignorando o que diz o RG. A maior parte do tempo tenho 25. É muito confortável. Em outras horas (ou dias) tenho 17, o que é uma delícia, pois ter 17 aos 60 é ser um adolescente com sustento próprio, sabedoria de vida, sem precisar obedecer ou prestar contas a ninguém.

É mais raro, mas, às vezes, tenho dez. Aí, é uma festa de curiosidades, invenções e brincadeiras. Tudo isso com um programa "gente grande" dentro da minha cabeça, que existe exclusivamente para proteger a criança e o adolescente, e deixá-los brincar à vontade.

Minha mãe está com 95 e diz que "a velhice é aquela coisa" (ela não fala palavrão). Tem suas razões, pois a despeito de uma cabeça ótima, mal vê, mal fala, mal ouve, mal anda. É capaz que a vontade de viver lhe suma, como sumiu de meu pai aos 102. Ele, então, se retirou para dentro de si e morreu em dois meses.

De qualquer maneira, alguém mais disse: "A morte é um momento, e não há de me roubar da vida mais do que isso: seu momento".

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Música

Este texto é do blog "Acorde", de Leandro Souto Maior, no JB Online — e foi postado lá em 15/junho/2008. Gosto muito de ler os comentários de LSM. Escolhi este porque concordo em gênero, número e grau.

Música não tem idade

Quem gosta de curtir músicas de décadas passadas e nunca ouviu algum comentário do tipo 'deixa de viver no passado' que atire a primeira pedra. Quem fala isso é porque está matando amanhã seu grande ídolo de hoje, afinal, não vai demorar para o hit do momento se tornar obsoleto para dar lugar à próxima 'melhor banda de todos os tempos da última semana'.

É possível dizer que música não tem idade. Desde que está feita e transmitida através das gerações, a música e seus autores e intépretes continuam vivos. Está tudo aí: qualquer novo lançamento dos Beatles rapidamente é primeiro lugar de vendas no mundo inteiro, as canções de Tom Jobim não param de tocar em rádios e na TV, e por aí vai.

Cada vez que alguém toca ou simplesmente cantarola a obra de algum artista, mesmo já falecido, está lhe garantindo mais tempo de vida.

E se as novas gerações não produzem algo à altura, ou com a mesma relevância, que artistas em outras épocas, não procede elevá-los ao patamar dos grandes imortais apenas 'porque são novos, lançamentos'. Prefiro ouvir pela milésima vez minha coleção dos Rolling Stones que ficar tentando descobrir lampejos de criatividade no Coldplay.

domingo, 15 de junho de 2008

Tecnologia

Resolvi guardar esta interessante entrevista publicada no jornal "Folha de S.Paulo" de domingo, 15 de junho de 2008, no caderno "+Mais". Um exercício de futurologia bastante viável.

A sagração da web

Pai da internet, Vinton Cerf diz que celulares ultrapassarão computadores como meio de acesso e prevê um novo conceito para definir a rede

DA REDAÇÃO

Vinton Gray Cerf prega a disseminação da internet. Esse é seu cargo na corporação Google, líder nesse mercado: evangelista-chefe de internet, além de vice-presidente.

Mas Cerf, 64, é mais conhecido como pai da internet, por haver criado, com Robert Kahn, os protocolos TCP/IP, parte da estrutura básica de funcionamento da rede mundial — em breve interplanetária, se depender dele- de computadores.

Na entrevista abaixo, concedida a Michel Alberganti, do jornal "Le Monde", ele fala sobre a evolução da web e suas perspectivas, incluindo a integração de objetos do cotidiano.

PERGUNTA - O sr. fez parte do grupo que conceituou a internet. Como vê a evolução da rede mundial?

VINTON CERF - Hoje em dia, muito mais gente tenta inovar na internet. Para descrever seu modo de evolução atual, muitas vezes recorro ao modelo do formigueiro. Caso você observe duas ou três formigas ao longo de todo um dia, é provável que pouco aconteça de interessante. Mas há milhões delas no formigueiro.

E, a cada dia, uma ou duas formigas descobrem alguma coisa que beneficiará todas. A internet funciona assim. Com quase 1,3 bilhão de usuários — o equivalente a cerca de 20% da população mundial —, novas experiências são realizadas a cada dia.

Fico sempre um pouco febril ao ler as páginas de negócios da imprensa, porque muitas vezes descubro ali que alguém inventou um novo uso para a internet, ao qual teremos de nos adaptar, uma vez mais.

PERGUNTA - Como a web 2.0 contribui para novos usos da rede (blogs, chats, trocas de arquivo)?

CERF - A meu ver, o termo "web 2.0" é basicamente um slogan de marketing. Dá a entender que uma nova geração da web apareceu.

Acredito, em lugar disso, que a internet se transforma de acordo com um modelo de coevolução. Interage com tudo que a cerca e, então, se adapta. As novas aplicações levam a rede aos seus limites e forçam a criação de novas soluções técnicas.Isso posto, devo reconhecer que certas inovações associadas à web 2.0 são um fato.

No passado, os primeiros sistemas de troca de informações entre empresas não funcionavam bem por falta de padronização — e foi isso exatamente que a web 2.0 veio a fornecer.

E o avanço chegou em um bom momento. Nos EUA, os grandes investimentos realizados para enfrentar o bug do milênio, antes de 2000, permitiram automatizar a atividade interna das empresas.

Resta efetuar a etapa seguinte: automatizar o intercâmbio de informações entre empresas. E que melhor ferramenta para isso do que a internet?

PERGUNTA - Os internautas se beneficiarão desses intercâmbios?

CERF - Os consumidores já interagem com empresas via internet. Isso acontece, o mais das vezes, na realização de transações, com confirmação por e-mail. Mas as empresas muitas vezes precisam reescrever a mão os pedidos dos internautas para transmiti-los a seus parceiros.

É essa parte do processo que é preciso automatizar. E é perfeitamente possível fazê-lo, graças a aplicativos como o Google Earth ou o Google Maps, que foram concebidos de maneira a permitir que outras empresas os integrem a seus serviços de web próprios.

Dessa forma, os cientistas podem localizar via Google Earth as posições dos sismógrafos em sua rede internacional de prevenção de terremotos. Para obter acesso aos dados, basta clicar sobre o ícone que representa cada estação.

Cada vez mais os pesquisadores podem, dessa forma, trabalhar juntos, ao aglutinar diferentes redes de sensores independentes e ao correlacionar suas informações com a geografia e a climatologia.

PERGUNTA - E quanto ao comércio eletrônico?

CERF - Tomemos por exemplo uma empresa que disponha de uma lista de apartamentos para alugar em Dallas, no Texas.

Ela pode inserir essas informações no Google Maps. Quando uma pessoa está procurando casa, o banco de dados da imobiliária mostra todos os apartamentos que atendam aos critérios especificados. Uma empresa assim estaria utilizando os recursos da web para aumentar o valor de suas informações.

PERGUNTA - Podemos esperar aplicações semelhantes para celulares?

CERF - Com certeza. Trata-se de um objeto que a pessoa carrega aonde quer que vá. Pode-se,
nesse caso, apresentar perguntas que não fariam sentido caso o sistema de informação associado desconhecesse sua localização. Procurar o cinema mais próximo, por exemplo.

Os aparelhos móveis abrem as portas à obtenção de informações geograficamente indexadas de grande valor. Já existem 3 bilhões de celulares no mundo, dos quais 15% são capazes de acesso à internet, ou seja, quase meio bilhão de aparelhos. No futuro, para fração significativa da população, o primeiro contato com a internet acontecerá via celular, e não pelo computador.

PERGUNTA - Usar o celular torna menos confortável a utilização da internet?

CERF - À primeira vista, sim. A tela não tem tamanho parecido. Quanto ao teclado, seria ótimo se nós tivéssemos dez centímetros de altura. Mas quase todos nós somos maiores.

É preciso, assim, imaginar novas práticas. O celular que possa detectar a presença de uma tela de computador no local — não haveria motivo para que a informação não pudesse ser transmitida para ela e exibida. O mesmo vale para um teclado sem fio.

As pessoas estão tão acostumadas a usar a internet com um aparelho por vez que nem imaginam que um celular poderia se tornar o coração de uma pequena rede.

PERGUNTA - Que impacto isso terá sobre a vida cotidiana?

CERF - Imagine esse tipo de uso do celular em um automóvel. Os carros muitas vezes dispõem de receptores GPS e de instrumentos que indicam, por exemplo, quanto resta de gasolina. O importante é que o celular possa conectar o carro à internet. E isso funciona nos dois sentidos. O carro obterá informações da web e as fornecerá à rede.

Sua velocidade, por exemplo, pode ser transmitida sem identificação de identidade para a rede, que a usará para avaliar condições de tráfego naquele percurso a fim de orientar outros veículos.

PERGUNTA - O que o sr. está descrevendo não se enquadraria já à web 3.0, a internet dos objetos?

CERF - Decerto. A internet dos objetos permitirá, em geral, delegar a terceiros a gestão de objetos. Será possível dirigir a sites de serviços pedidos como "gravar tal filme", sem ter de procurar por ele em diferentes programas. As máquinas se encarregarão. Elas se comunicarão entre si para determinar quando o filme será exibido, a fim de gravá-lo para nós.

Bilhões de objetos disporão, assim, de capacidade de comunicação mútua. Isso permitirá mascarar a complexidade da tecnologia que estará em ação.

Tudo se passará nos bastidores.

— Este texto foi publicado no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci.

sábado, 24 de maio de 2008

“Coisas” que gosto

Faz bom tempo que não coloco “coisas” aqui...
E esta, abaixo — escrita pelo meu querido Ruy Castro —, é uma que merece ser guardada para ser relida sempre...

Publicada na “Folha de S.Paulo” — caderno Opinião, neste sábado ensolarado em São Paulo...

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RUY CASTRO
Sagas sincopadas

RIO DE JANEIRO - Na semana passada, uma grande noite de choro no Rio reuniu mais de 50 músicos em homenagem a um homem a quem o Brasil muito deve e que, exceção à regra, tem tido o reconhecimento que merece: o flautista Altamiro Carrilho.

Pelo palco do Vivo Rio passaram algumas das maiores autoridades atuais do gênero, como o bandolinista Deo Rian, os violonistas Mauricio Carrilho e João Lyra, o flautista Carlos Malta, a dupla Zé da Velha, trombone, e Silvério Pontes, trompete, o conjunto Tira Poeira, os meninos da Orquestra Furiosa Portátil etc. E o insuperável gaitista Mauricio Einhorn.

Foi como se, durante três horas, a história do Brasil pelo choro desfilasse aos nossos ouvidos: dos pioneiros do século 19, como os flautistas Joaquim Calado e Patápio Silva, o maestro Anacleto de Medeiros e os pianistas Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, aos mestres do século 20, como os flautistas Pixinguinha e Benedito Lacerda, o clarinetista Abel Ferreira, o cavaquinista Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim e tantos mais, dos quais Altamiro é o maior herdeiro vivo. E foi ele quem, aos 83, fechou o show, com fôlego, velocidade e imaginação invejáveis.

Assisti-o ao terminar a leitura do novo livro de Jairo Severiano, Uma História da Música Popular Brasileira — Das Origens à Modernidade.

É uma narrativa abrangente, concisa e didática, como ainda não se fizera por aqui, dos brancos, negros e mulatos que se fecundaram uns aos outros e produziram essas cadências sincopadas, cheias de bossa, que fixaram nosso caráter musical.

O livro e o show reforçaram minha convicção de que a música no Brasil se caracteriza pela bossa, mais que pelo romantismo.

Às vezes, essa bossa parece envelhecer.

Mas, quando acontece, vem alguém e inventa uma bossa nova.

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