domingo, 28 de fevereiro de 2010

Sampa desencantada por seus compositores

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 28/fevereiro/2010, na "Revista da Folha"

Desencantada da vida

A São Paulo tragicômica de Adoniran e Vanzolini reaparece nas canções de uma nova geração de músicos

Com humor e sarcasmo, nova geração de compositores ecoa os clássicos de Adoniran Barbosa e retrata uma cidade melancólica

Cidade Cantada
por Gustavo Fiorati

Para cantar São Paulo tem que ter o quê? Samba no pé e melancolia de sobra? Língua afiada e nenhuma condescendência? Se os jovens compositores que povoam os bares da Vila Madalena e da rua Augusta não admirassem tanto Adoniran Barbosa, Itamar Assumpção e Caetano Veloso, a cidade encontraria alguma redenção. Quem sabe?

Mas não. Em suas canções, eles continuam reproduzindo o mesmo sentimento de desajuste que permeia clássicos como "Trem das Onze" e "Sampa".

A distância entre os bairros ainda reverbera aquele "se eu perder esse trem..." de Adoniran, que nasceu há exatos cem anos e morreu em 1982. E a ausência de "coisas belas" (o que, tomara, diz respeito aos aspectos geográficos) permanece como qualidade irredutível, desde que falaram de certa "deselegância".

Um exemplo de alusão recente à metrópole está nos versos de "As Papelarias do Itaim", do baixista e pianista Manu Maltez, 32: "...foi lá que eu cresci/ Contra minha vontade".

Ok, vai falar assim de Copacabana...

Outro exemplo, que a Revista selecionou a partir do trabalho de cinco jovens compositores: "Feche os olhos/ Os ouvidos/ As narinas/ Todos os sentidos/ Estação final/ Diga adeus à sua vida". É o que canta o grupo Odegrau em "Estação da Luz". A letra foi escrita por Peri Pane, nome artístico de Marcos Dávila, 34, músico e jornalista colaborador da Folha.

"cheguei no paraíso no último vagão meia-noite, pensei: aonde vai o trem quando fecha a estação?onde vai alguém se não pode voltar pra quem lhe deixou na porta instantânea do metrô?" — O Último Vagão (Peri Pane, Rafael Martinez e João Zilio)

E, para fechar em três citações: "Pra chegar no centro, eu gasto mais de 15 paus/ Perua, trem, ônibus intermunicipal", diz "Depressão Periférica", música de Kiko Dinucci. Nada de "coisa mais linda", muito menos "cheia de graça".

Kiko, 31, acha particularmente difícil fazer alguma exaltação a São Paulo. "Aqui, as coisas se modificam muito rapidamente. Posso escrever sobre um lugar que, daqui a alguns anos, não vai existir mais", diz, passando em frente a uma demolição incompleta no Bexiga, de onde sobrou em pé a fachada dos anos 1920, solta no terreno vazio.

"as papelarias do itaim não vendem papel são açougues são boates agências de publicidade são escolas que secaram"As Papelarias do Itaim (Manu Maltez)

Foi daquela região que o compositor extraiu outra musa improvável. Uma de suas canções prediletas é "Garoa Seca", que cita o rio Saracura, hoje canalizado. "Resolvi falar de alguma coisa que desapareceu. Foi o único jeito de exaltar um patrimônio natural da cidade", explica.

Outra música dele retoma a tradição da crônica, já que, nas canções de hoje, "não se conta mais tanta história como antigamente". Em "Depressão Periférica", um rapaz é abandonado por sua amada porque a casa dela é distante da dele. A menina prefere ficar com alguém da Vila Madalena. Segundo o compositor, é uma referência ao samba macarrônico de Adoniran, pegando carona na "tristeza de uma cidade propensa à solidão".

Mais uma vez, a distância é um obstáculo que tece seus caminhos tortuosos. O sambista Rodrigo Campos, 32, -que, há seis anos, trocou São Mateus por Pinheiros- conhece bem a dificuldade de morar longe. Na época, para voltar do centro, Rodrigo enfrentava uma viagem de metrô e mais uma hora de ônibus. Ainda assim, ele escreveu em uma de suas composições que "São Mateus não é um lugar assim tão longe".

"encontrou jadir durante o ritual perguntou da cris e da maria inês, crislaine casou e a maria inês se formou em nutrição"Rua Três (Rodrigo Campos)

Sua canção "Rua Três" traz a atmosfera de um lugar duplamente distante: São Mateus não só pende num extremo da zona leste, mas também fica cada vez mais apagada na memória de um personagem que passou a infância ali e está voltando para um funeral.

A letra é fictícia até certo ponto. Rodrigo nunca precisou voltar a São Mateus para chorar seus mortos. Mas, num rolê pela região, aponta um bairro transformado, em que algo se perdeu: "estes prédios não existiam, tudo isto era um terreno baldio, esta rua era de terra".

Sonhos e delírios

Menos inclinado à crônica, Manu Maltez pincela paisagens com levada surrealista, como fez em "Turvo", que tematiza o Tietê. O músico, que vive em Perdizes desde criança, retratou um pesadelo recorrente, em que está mergulhado nas águas sujas do rio. "A sensação é de que algo vai me contaminar", diz.

A cidade, para ele, é repleta de imagens que sugerem a aproximação com a morte. Coisas em estado de putrefação abundam em suas andanças pelas ruas da metrópole. "Apesar de falar de coisas mortas, acho que tem vida nisso tudo. Como uma reação da natureza sobre a cidade."

Manu ainda cita como fonte de inspiração mistérios relativos à enormidade de São Paulo. "Não consigo entender para onde seguem essas tubulações e encanamentos. Tudo aqui é tão grande que foge da nossa compreensão."

A pedido da Revista, o compositor Arrigo Barnabé ouviu as músicas dos compositores citados acima. Para ele, há uma identidade poética por trás dos jovens autores que já aparecia nos músicos de gerações anteriores: a referência à solidão. "Pense nas lanchonetes. Elas foram criadas para que você possa comer sozinho", diz.

Sobre os discos, Arrigo comenta as obras de Rodrigo Campos, que considerou "muito interessante como cronista", e a do grupo Odegrau, que, para ele, não discorre propriamente sobre São Paulo. "Essa banda fala mais de estados da alma, utilizando a cidade como metáfora. São formas distintas de retratar a metrópole."

O autor de "Clara Crocodilo" lembra que, mesmo se considerados os músicos de sua geração -conhecida como vanguarda paulista-, já era possível separar as abordagens: a dos que tinham a cidade como berço (Premê e Rumo) e a daqueles que vinham de fora, como o próprio Arrigo e Itamar Assumpção. "Para nós, a realidade da cidade era mais dura, nossas famílias não estavam aqui, o que se reflete nas letras das nossas músicas."

"de mim a malvada não tem pena me trocou por um da vila madalena não faz mal, domingo eu ponho a minha roupa de sair pra arranjar uma pequena que more perto daqui"Depressão Periférica (Kiko Dumont)

O olhar de estrangeiros desponta como um capítulo à parte, e os entrevistados apontam o baiano Tom Zé como protagonista deste "fado". Entre todas as canções, "São, São Paulo" surge como ícone da celebração ao caos: "São oito milhões de habitantes/ De todo canto em ação/ Que se agridem cortesmente/ Morrendo a todo vapor".

"puta, meu, tipo, nossa, cara então, puta, meu, tipo, nossa, cara, então puta, meu, tipo assim, tipo, puta, meu tipo, cara, cola na balada de sexta, mó legal"Balada do Paulista (Lulina)

Da nova geração, a pernambucana Lulina é quem arrisca algum sarcasmo. Sua "Balada do Paulista" é uma crônica debochada, que embarca no uso desmedido de gírias. Faz o retrato de um tipo específico de jovem paulistano, que fuma baseado, se joga em baladas e se dedica quase exclusivamente à curtição.

A compositora conta que o refrão "Puta, meu, tipo, nossa, cara, então" foi inspirado em um amigo de São Paulo que proferiu, sem perceber, uma série de interjeições do tipo. "Eu falei: 'Peraí, cara, repete o que você falou'." E mais uma vez, uma São Paulo poética (para não dizer patética) virou canção.

----------

A prima feia
por Marcus Preto

Autoexaltação nunca foi o forte desta cidade. Não deve ser à toa que "Sampa", a crônica de Caetano Veloso sobre o impacto (negativo, quase sempre) que São Paulo produz em "quem vem de outro sonho feliz de cidade", acabou adotada como "hino municipal" pelos próprios paulistanos.

Gostamos dessa carapuça. Agimos como aquela prima feiosa que, sabendo que não vai ser "a gostosa" da família, investe em ser "a engraçada" ou "a inteligente". Assim, fica fácil fingir que não sentimos falta de ver ostentadas nossas garotas de Ipanema, nossa cidade maravilhosa.

Passamos a só conseguir olhar para nós mesmos com os óculos escuros da autocrítica, esquecendo que, como a tal prima, também queremos ser amados pela beleza, não apenas pelo avesso dela.

Adoniran Barbosa já escondia o amor pela cidade naquela linha tênue que separa o humor da tragédia. Itamar Assumpção, idem. Rita Lee brinca nesse meio-fio.

Talvez por ter assumido o papel de "a mais completa tradução" da cidade, Rita reitera que ironia é nosso ponto forte e criou, em letras, um belo quadro da São Paulo que conhece, com o superego nas alturas.

"Aqui estamos nós, (...) bizarros casais, restos mortais do Ibirapuera" e "O frio de São Paulo me faz transpirar" são imagens criadas em suas canções. Foi Rita quem compôs, nos anos 1970, a balada "Lá Vou Eu", redescoberta pela fluminense Zélia Duncan em 1994. "Na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível como você, e eu e o céu", ela termina, sem culpa pelo romantismo escancarado.

Zélia já contou que foi por causa dessa regravação que o público paulistano se aproximou dela. Viu só? Tudo o que essa cidade quer é também se reconhecer no que tem de bonito - e sem ter que pagar o preço de, a cada elogio, ter que ouvir toda a lista de seus incontáveis defeitos.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Não morre, não deve morrer — ou vice-versa

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 20/fevereiro/2010, no caderno "Opinião"

Patrimônio da cultura
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - "Mudando de conversa/ Onde foi que ficou/ Aquela velha amizade/ Aquele papo furado/ Todo fim de noite/ Num bar do Leblon/ Meu Deus do céu, que tempo bom!", cantou Doris Monteiro na noite de Quarta-Feira de Cinzas, na calçada da Toca do Vinicius, em Ipanema, depois de ter suas mãos gravadas em cimento para a Calçada da Fama.

Em seguida foi a vez do saxofonista Aurino Ferreira, veterano do Beco das Garrafas, do sexteto Bossa Rio de Sergio Mendes e músico de Wilson Simonal no apogeu do cantor, também imprimir as mãos. Aos 84 anos, firme como uma rocha e com fôlego de mergulhador, ele encarou com seu sax-barítono a juventude do quarteto No Olho da Rua, que o acompanhou em clássicos como "Insensatez", "Meditação" e "Batida Diferente".

A plateia, quase 1.000 pessoas na calçada e na rua, era composta de moradores de Ipanema -para quem os eventos da Toca só exigem trazer de casa uma cadeira de praia e sentar- e turistas de toda parte, fãs de bossa nova. A emoção provocada por Doris e a vibração gerada por Aurino não perderam em nada para o espírito do Carnaval que ainda ecoava.

Doris vem de um tempo, anos 50, em que os cantores tinham contratos fixos com boates, gravadoras, rádios e televisões e trabalhavam 365 dias por ano. Aurino faz parte da geração de músicos cariocas que, em 1959, 60, lançou as sementes do samba-jazz: possantes formações instrumentais, tocando sambas e bossas novas com liberdade jazzística e pesado sotaque de gafieira.

Uma noite como a da Toca não deveria ser vista como "nostalgia", nem dirigida apenas aos que "viveram aquele tempo". A música de Doris, de Aurino e de seus pares é um patrimônio da cultura brasileira e como tal deveria ser estudada. De preferência, ministrada por eles próprios.