sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O fim das grandes lojas de discos

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 31/dezembro/2010, no caderno "Opinião"

Música entre panelas
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - No começo do século 20, não existiam lojas só de discos. Eles eram vendidos nas lojas de partituras e instrumentos musicais. Tanto fazia, era tudo música. Numa delas, em 1927, a Guitarra de Prata, até hoje na rua da Carioca, o jovem Mario Reis foi apresentado ao sambista Sinhô, do que resultou uma revolução. Dois anos depois, em outra loja, A Melodia, na rua Gonçalves Dias, a também jovem Carmen Miranda foi apresentada a Joubert de Carvalho e este lhe deu a canção "Pra Você Gostar de Mim". Que Carmen transformou na carnavalesca "Taí", e foi outra revolução.

Com o declínio das lojas de pianos, os discos passaram a ser vendidos nos fundos das lojas de eletrodomésticos, tipo Rei da Voz ou Casa Garson. Mas a música nunca se sentiu à vontade em meio àquelas ofertas de armários, colchões, artigos para banheiro, geladeiras e panelas. Foi preciso chegar aos anos 50 e 60 para surgir as lojas especializadas em discos — onde cantores, músicos, produtores, jornalistas e ouvintes se reuniam em função da música.

Esta noite, com o fim da Modern Sound, em Copacabana, a música perderá a última grande loja de discos do país. Um lugar onde, por 44 anos, as pessoas não só encontravam os discos que quisessem, mas se encontravam umas às outras e, dessa troca de fluidos e ideias, a música sempre saía ganhando.

A Modern Sound vai se juntar às suas irmãs — Brenno Rossi, em São Paulo, Templar, em Londres, Footlight, em Nova York, as gigantes Tower e HMV, e outras. Todas morreram nos últimos dez anos.

Ironicamente, as lojas de discos deixam de existir, mas continua-se a vender discos. Só que, agora, em certas livrarias, onde eles ainda encontram um ambiente acolhedor, e nos shoppings e grandes lojas — de novo em meio aos armários, colchões, artigos para banheiro, geladeiras e panelas.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Escolhas da década que passou...

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 29/dezembro/2010, no caderno "Ilustrada"

50 álbuns da década
por Marcus Preto, de São Paulo

Os discos que formaram a identidade da música brasileira nos anos 2000

Quais foram os álbuns que fizeram a identidade da música brasileira da década que termina na sexta-feira?Usando como critério não só a qualidade estética, mas também o sucesso mercadológico e a relevância que tiveram na transformação da indústria musical, editores e repórteres da Folha selecionaram os 50 discos mais representativos do que foi o Brasil nos dez anos passados.

A década começou subvertendo bossa nova em música eletrônica -primeiro pelas mãos do produtor Suba (1961-1999), depois por iniciativas de Fernanda Porto e DJ Marky, entre outros.

A seguir, o samba foi alçado a principal ingrediente na reformulação do pop. O processo partiu da revitalização da Lapa carioca, com Teresa Cristina à frente, chegando ao mainstream em álbuns de Marisa Monte, Maria Rita etc.

O ciclo ufanista diminuiu a partir de 2006. Agora, o pop absorve um sem número de gêneros e volta a beber do rock, da psicodelia e do folk.

Mas a principal revolução dos 00 não foi estética. Muito mais radical foi a transformação das relações entre ouvinte, música e indústria.

Com as facilidades tecnológicas de gravação, o artista independente, antes exceção, se tornou regra do mercado. Essa nova condição fez nascer o espírito colaborativo que resultaria em projetos coletivos como o Instituto, o +2 e a Orquestra Imperial.

Como lembra João Marcello Bôscoli, dono da gravadora Trama, "se por um lado a internet ajudou na derrocada da indústria do disco, por outro serviu de plataforma para novos artistas". Ele cita os exemplos do Cansei de Ser Sexy e de Mallu Magalhães.

Gêneros populares, o tecnobrega, do Pará, e o funk carioca brotaram e ganharam espaço à parte da indústria.

"A indústria só conseguiu manter o controle sobre o [segmento] sertanejo", diz Pena Schmidt, ex-executivo de gravadoras que hoje atua como diretor artístico do Auditório Ibirapuera. "Nem no axé eles mandam mais -a Ivete é dona do seu nariz."

Em contrapartida, a internet "tornou o sucesso fugaz", como acredita João Augusto, dono da pequena gravadora Deck Disc. "O moleque já coloca músicas no computador sabendo que vai jogar fora.

"Mesmo reconhecendo o quanto sua banda deve à internet, Adriano Cintra, baixista do Cansei de Ser Sexy, concorda com isso: "A música virou um acessório do iPod. Ninguém quer mais gastar dinheiro com ela".

DISCOTECA BÁSICA DOS ANOS 00

1.Bebel Gilberto - Tanto Tempo (2000)
2.Suba - São Paulo Confessions (2000)
3.Otto - Condom Black (2001)
4.Ana Carolina - Ana Rita Joana Iracema e Carolina (2001)
5.Seu Jorge - Samba Esporte Fino (2001)
6.Ivete Sangalo - Festa (2001)
7.Los Hermanos - Bloco do Eu Sozinho (2001)
8.Hamilton de Holanda - Hamilton de Holanda (2001)
9.Cachorro Grande - Cachorro Grande (2001)
10.Tribalistas - Tribalistas (2002)
11.Grupo Revelação - Ao Vivo no Olimpo (2002)
12.Mart'nália - Pé do Meu Samba (2002)
13.Instituto - Coleção Nacional (2002)
14.Max de Castro - Orquestra Klaxon (2002)
15.Fernanda Porto - Fernanda Porto (2002)
16.Teresa Cristina - Canta Paulinho da Viola (2002)
17.Zeca Pagodinho - Deixa a Vida me Levar (2002)
18.Nando Reis - A Letra A (2003)
19.Cibelle - Cibelle (2003)
20.Domenico + 2 - Sincerely Hot (2003)
21.DonaZica - Composição (2003)
22.Marcelo D2 - A Procura da Batida Perfeita (2003)
23.Pitty - Admirável Chip Novo (2003)
24.Maria Rita - Maria Rita (2003)
25.Banda Calypso - Ao Vivo em São Paulo (2003)
26.Mombojó - Nadadenovo (2004)
27.Cidadão Instigado - O Ciclo da De.Cadência (2004)
28.DJ Marky & XRS - In Rotation (2004)
29.Mônica Salmaso - Iaiá (2004)
30.Romulo Froes - Calado (2004)
31.Tati Quebra-Barraco - Boladona (2004)
32.Vanessa da Mata - Essa Boneca Tem Manual (2004)
33.Céu - Céu (2005)
34.Roberta Sá - Braseiro (2005)
35.Caetano Veloso - Cê (2006)
36.Kassin + 2 - Futurismo (2006)
37.NXZero - NXZero (2006)
38.Cansei de Ser Sexy - Cansei de Ser Sexy (2006)
39.Marisa Monte - Universo ao meu Redor e Infinito Particular (2006)
40.Orquestra Imperial - Carnaval Só Ano que Vem (2007)
41.Vanguart - Vanguart (2007)
42.Fernanda Takai - Onde Brilhem os Olhos Seus (2007)
43.César Menotti & Fabiano -.com_você (2007)
44.Tiê - Sweet Jardim (2008)
45.Cérebro Eletrônico - Pareço Moderno (2008)
46.Mallu Magalhães - Mallu Magalhães (2008)
47.Marcelo Camelo - Sou (2008)
48.Maria Gadú - Maria Gadú (2009)
49.Marcelo Jeneci - Feito pra Acabar (2010)
50.Tulipa Ruiz - Efêmera (2010)

Os melhores da música em 2010

Ilustrada elege os principais lançamentos da área neste ano e também aponta o que deu errado

Brasileiros
por Marcus Preto

MELHORES

"Feito pra Acabar", de Marcelo Jeneci
Treze hits em potencial que, se caírem no rádio, elevarão muito o nível da programação

"Azul" e "Vermelho", de Nina Becker
Delicada estreia solo da vocalista da Orquestra Imperial em dois álbuns complementares

"Petrobrás III - Devia Ser Proibido", de Itamar Assumpção
Itamar póstumo - e inédito - no mesmo alto nível dos melhores trabalhos que o compositor fez em vida

"Efêmera", de Tulipa
Nasce uma estrela à maneira moderna -sem pose, sem truques, sem frescura

"Vol.2", de Andreia Dias
A compositora mais original da nova geração segue provocativa e inovadora

PIOR

"Canta Bezerra da Silva", de Marcelo D2
Esperava-se muito e pouca coisa foi entregue


Internacionais
por Thales de Menezes

MELHORES

"Teen Dream", de Beach House
Uma francesa e um americano que conseguem fazer pop grudento, para tocar em festinha, mas com guitarras lentas, quase arrastadas

"The Drums", de The Drums
Roupinhas coloridas, dancinhas no palco, som para levantar o ânimo de qualquer um. Banda de moleques como sempre deveria ser

"Reimagines Gershwin", de Brian Wilson
O cara que reinventou o pop americano nos anos 1960 busca material com o sujeito que definiu o que era pop nos anos 1930 e 1940

"American Slang", de Gaslight Anthem
Punks tatuados de Nova Jersey, eles adoram Bruce Springsteen e Clash. Misturaram os dois com pitadas de fúria e deu muito certo

"The Suburbs", de Arcade Fire
Um terceiro disco muito melhor do que o segundo, que já era bem melhor que o ótimo primeiro. Onde esses canadenses vão parar?

PIOR

"Michael", de Michael Jackson
Coisas piores chegaram às lojas, mas nenhuma com a expectativa gerada por este álbum. Valeria um single, "Hollywood Tonight"

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O fim da Modern Sound

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 17/dezembro/2010, no caderno "Opinião"

Política suicida
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - O desenho já se insinuava desde os anos 90. Se você tivesse uma loja de discos, pequena ou média -daquelas de rua, com clientes fiéis, não importava o sotaque musical da loja-, as dificuldades para trabalhar, mesmo que com lucros modestos, ficaram enormes. O problema não era vender. Era comprar.

Uma gravadora soltava o novo CD de um artista de venda certa, nacional ou estrangeiro. Se o disco custasse R$ 20 ao varejista, este teria de vendê-lo por R$ 30, para pagar os custos do ponto, os impostos, o contador, o empregado, a luz e ainda embolsar algum. O problema é que, por comprar quantidades menores de cada título, esse varejista seria um dos últimos a ser visitado pelo vendedor da gravadora.

Enquanto o disco do dito artista era procurado em vão na loja por seus clientes fiéis -e, quando finalmente aparecia, saía por R$ 30-, outro cliente não tão fiel vinha relatar que fora ao supermercado X ou à loja de departamentos Y, em busca de outra coisa, e deparara com pilhas do tal CD -por R$ 20. Claro, comprara-o. Com isto, o lojista perdia uma venda e, pior, perdia o cliente, que passava a chamá-lo de ladrão para todo mundo.

Essa política suicida, imposta pelas gravadoras, fechou milhares de lojas de discos no Brasil nos últimos 15 anos. Supermercados e grandes magazines trabalham com imensa variedade de produtos, dos quais o disco é apenas um, e nem de longe o mais importante. Mesmo assim, com sua clientela de milhares, podem comprar maciças quantidades de qualquer CD (o que baixa o preço de custo para cerca de R$ 15) e vendê-lo a R$ 20, ainda com lucro. É possível competir?

Este é um dos motivos do fim da loja Modern Sound, aqui no Rio, no próximo dia 31. O outro é a internet. Era talvez a última e melhor loja de discos de seu tamanho no mundo. Mundo este que, sem ela, fica menos suave e mais surdo.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Homenagem ao grande sambista

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 11/dezembro/2011, no caderno "Opinião"

Cantando para Billy
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Billy Blanco, 86, sambista brasileiro, autor de "Estatuto de Gafieira", "Viva Meu Samba", "Pistom de Gafieira", "Pano legal", "Aeromoça" e, em São Paulo, tão conhecido pelo "Vam'bora, vam'bora/ Tá na hora/ Vam'bora, vam'bora" de sua sinfonia "Paulistana", está internado num hospital carioca desde 2 de outubro por causa de um AVC. Desde então, Billy não se mexe nem fala. Sabe-se que está consciente porque às vezes abre os olhos e chora em silêncio.

Mas chora de emoção. Seus parentes e visitas não querem se arriscar a que, por trás dos olhos fechados e do semblante tranquilo, Billy os esteja ouvindo e entendendo tudo. Por isso, em vez de se lamentarem em voz alta pela sorte do amigo, preferem cantar para ele. E, vindo de Billy, há muito o que cantar.

Doris Monteiro canta "Mocinho Bonito" e "A Banca do Distinto", que Billy lhe deu nos anos 50. Leila Pinheiro, "Domingo Azul". Pery Ribeiro, "Esperança Perdida". Bilinho, filho de Billy e também cantor, põe para tocar o CD com a "Sinfonia do Rio de Janeiro", parceria de Billy com Tom Jobim, e faz um dueto com a voz do pai. Um dos netos de Billy, Pedro Sol, faz o mesmo com outra parceria Blanco-Jobim, a safadinha "Teresa da Praia". De repente, cantam em coro "Samba Triste" e "Se Gente Grande Soubesse", das mais bonitas de Billy.

O hospital fica na rua Moura Brito, na Tijuca, no mesmo quarteirão e calçada onde, há 60 anos, num porão, funcionava o lendário Sinatra-Farney Fan Club. Dele saíram grandes nomes da futura bossa nova, como Johnny Alf, João Donato e Paulo Moura. Billy também o frequentava, mas não apenas pela música: estava de olho em Ruth, uma bela associada, com quem se casou —até hoje.

Muitos ali já dividiram o palco com Billy. Mas nunca esse palco pareceu tão grande, intransponível e absurdamente vazio como aquele quarto de hospital.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Centenários esquecidos

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 4/dezembro/2010, no caderno "Opinião"

Desmemórias centenárias
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - As esferas estavam indecentemente musicais em 1910. Naquele ano nasceram Claudionor Cruz (1º/4), Jorge Veiga (14/4), Custodio Mesquita (25/4), Vadico (24/6), Luiz Barbosa (7/7), Haroldo Lobo (22/7), Adoniran Barbosa (6/8), Nássara (11/11) e Noel Rosa (11/12). Todos esses compositores e/ou intérpretes teriam feito 100 anos este ano. E o que o Brasil fez pela memória deles em 2010?

As grandes massas terão sido lembradas de que Claudionor Cruz foi um dos autores da valsa "Caprichos do Destino", da marchinha "Eu Brinco" e do samba "Disse-me-disse"? De que, sem Haroldo Lobo, o Carnaval não teria "Alá-la-ô", "O Passarinho do Relógio", "Retrato do Velho", "Pra Seu Governo", "Tristeza" e o samba não conheceria "Emília"? Ou de que, sem Nássara ("Maria Rosa", "Periquitinho Verde", "Florisbela", "Balzaqueana", a dita "Alá-la-ô"), não haveria o Carnaval?

Em 2010, quantos se lembraram de Luiz Barbosa, que incorporou a caixinha de fósforos ao samba e lançou no rádio sucessos que outros consagraram, como "Seu Libório" e "Minha Palhoça"? Sem a bossa de Luiz Barbosa, teria havido a de Jorge Veiga com "Eu Quero é Rosetar", "Café Soçaite", "Estatuto de Gafieira"? E o que seria dos aviadores do Brasil sem Jorge a "orientá-los" pelo microfone dos auditórios? Estariam perdidos no céu.

Será que fizemos justiça a Custódio Mesquita, a quem devemos foxes e valsas como "Nada Além", "Mulher", "Enquanto Houver Saudade" e "Velho Realejo"? Já Adoniran foi bem mais festejado, mas terá sido suficiente?

Quanto a Vadico, seu centenário passou a zero. Mas, como co-autor de "Feitio de Oração", "Feitiço da Vila", "Conversa de Botequim" etc., ele será muito lembrado nas celebrações a Noel, no sábado próximo. Aliás, sem Noel, não sei se o samba teria sua precoce maturidade. Ou se teríamos o samba, ponto.