quinta-feira, 24 de julho de 2008

Sonoridades e silêncios

Texto publicado no caderno "Equilíbrio", do jornal "Folha de S.Paulo', de 24/julho/2008.

OUTRAS IDÉIAS

Michael Kepp

Sonoridades e Silêncios

[...] OS BARULHOS QUE OS BRASILEIROS FAZEM EM RECITAIS QUEBRAM O ENCANTO E REPRODUZEM A CACOFONIA DA RUA, DA QUAL BUSCO BREVE REFÚGIO

Música instrumental ao vivo requer a ausência de outros sons. A platéia pode acompanhar um cantor, mas só pode participar de um concerto ficando em silêncio.

Essa música, da clássica ao chorinho, pode me hipnotizar. E qualquer ruído pode, como o estalar de dedos do hipnotizador, me trazer de volta à realidade. Os barulhos que os brasileiros fazem nesses recitais quebram o encanto e reproduzem a cacofonia da rua, da qual eu busco breve refúgio.

Esses ruídos também distraem os músicos, sejam celulares, seja o proibido pipocar de flashes de câmeras, que pode fazer um artista piscar sem parar. Recentemente, o pianista César Camargo Mariano achou o estalo da abertura das latas de cerveja em seu primeiro solo tão intrusivo que disse à platéia, numa mistura de ironia e irritação, que a música não fora composta para incluir aquela pontuação metálica.

O que mais me distrai em concertos é o barulho que se faz devagar, achando que não atrapalha. Um exemplo é a perua que passa cinco minutos abrindo o zíper da bolsa, procurando a bala, abrindo a bala e fechando o zíper com a mesma lentidão. Outro é o marmanjo que passa dois movimentos de uma sinfonia triturando suavemente um pacote de amendoins.

Nenhuma sala de música deveria permitir que se coma e se beba nas poltronas, mas muitas aqui permitem. Em casas de espetáculo, onde você tem esse direito, muitos abusam. Pedem comidas e bebidas durante os números musicais, e não entre eles ou antes de o show começar. Mas os garçons não ouvem os pedidos por causa da música.

Então, o freguês repete aos gritos. E o tamanho do pedido, que estica a interrupção, me dá a impressão de que veio apenas comer e tem a sensibilidade musical de uma porta.

Os brasileiros são verbalmente abusivos em outros lugares onde deveriam ficar quietos. Enquanto professores dão aulas, alunos de todas as idades falam ao celular, mesmo na primeira fila. Recentemente, o ginecologista de uma amiga atendeu ao telefone três vezes durante o exame. Em vôos transcontinentais, já passei noites em claro devido a cariocas que viram as noites em conversas.

Cinemas também não são apropriados para socializar depois que a luz se apaga. Mas fico menos irritado com diálogos em cinemas do que em salas de música. Pelo menos, nenhum músico é desrespeitado. Numa exibição de "O Segredo de Brokeback Mountain", dois estranhos bateram boca tão alto que alguém gritou: "Dá um beijo nele". Mas nada engraçados são os bate-papos em recitais de música de câmara, que me forçam a soltar "psius".

Perdôo palmas fora de hora porque são frutos do desconhecimento de convenções musicais, mas não os outros barulhos feitos em concertos aqui, frutos da desconsideração. Uma sala de música não deve reproduzir os ruídos da rua, e sim ser um santuário contra eles. Uma platéia cria seu ambiente ideal ficando sossegada.

Só então pode formar com o músico um acordo tácito, para explorar sonoridades e os silêncios entre elas.

— MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br

sábado, 5 de julho de 2008

Bossa nova... segundo Carlos Lyra

Texto publicado no suplemento "Caderno 2" do jornal "O Estado de S.Paulo". É uma visão muito interessante e até verossímil do que foi o tal movimento musical chamado "Bossa Nova".

"Bossa nova não foi um movimento"
por Antonio Gonçalves Filho

Para Carlos Lyra, ela foi, antes, um “surto cultural” da classe média carioca

Os 50 anos da bossa nova foram lembrados na 6ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) com um debate entre um de seus pioneiros, o músico e compositor Carlos Lyra, e o crítico Lorenzo Mammì, em que o primeiro classificou-a de um "surto" cultural de músicos cariocas, insatisfeitos com as formas de interpretação musical dominantes no Brasil durante os anos 1950.

Lyra, que escreve atualmente um livro sobre a história da bossa nova para a editora Casa da Palavra, explicou porque prefere a palavra surto no lugar de movimento musical.

"Seria incorreto chamar a bossa nova de movimento, considerando que não tínhamos sequer um manifesto", disse Lyra, que, num rápido lance de análise sociológica, classificou o "surto" como resultante da frustração musical de jovens da classe média, sem modelos formais capazes de suprir sua carência estética.

O vozeirão dos cantores populares e as letras derramadas e passionais das canções da era JK encontraram sua contrapartida na batida minimalista e na suavidade da interpretação dos primeiros músicos da bossa nova, assim batizada por um garoto judeu da Sociedade Hebraica do Rio de Janeiro, do qual Lyra não lembra o nome.

Comparando os pioneiros da bossa nova (ele, Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim, entre outros) aos poetas e músicos provençais, Lyra admitiu até mesmo que suas intenções não eram muito diferentes daqueles líricos europeus que provocaram uma revolução estética no século 12 ao trocar o latim por uma língua compreensível por jovens damas nas quais estavam interessados.

"Nós também só queríamos sair com as menininhas e esse primeiro momento da bossa nova revela nossa intenção de dedicar a elas canções de louvor", admitiu o autor do clássico Minha Namorada. Como argumento adicional, a bossa nova tinha, segundo ele, o "discreto charme da burguesia e a harmonia dos impressionistas franceses relida por Cole Porter".

Em outras palavras, o que Lyra disse é que os pioneiros da bossa nova não ignoravam o apelo da suavidade de Ravel nem a sensualidade do jazz como componentes de um gênero musical que pretendia celebrar o "amor, o sorriso e a flor" numa época em que o Brasil passava por uma radical transformação econômica, política e cultural.

Os jovens bossa-novistas não ficaram à margem desse processo, observou Lyra, lembrando que muitos deles foram criadores dos centros populares de cultura (CPC), destinados a fomentar não só uma nova estética sem desconsiderar as raízes populares como a "mudar a realidade brasileira", isso "depois de termos tudo na era JK", concluiu, irônico, o compositor, criticando a postura arrogante de jovens da classe média que, como ele, se consideravam guardiães da cultura brasileira.

"Mas 1964 acabou com tudo, inclusive com a primeira fase da bossa nova, que se tornou mais engajada, trocando Chega de Saudade por O Morro Não Tem Vez."

O crítico Lorenzo Mammí interveio justamente para lembrar que essa primeira fase durou pouco mais de dois anos, justamente o tempo para que os americanos descobrissem a bossa nova e promovessem o primeiro show internacional do gênero, ao reunir os pioneiros no Carnegie Hall de Nova York, em 1962.

Lyra, na contramão da história oficial, diz que o show foi um fiasco artístico, misturando bons músicos brasileiros com intérpretes americanos de segunda categoria. "A sorte é que fomos vistos por músicos do porte de Stan Getz, Charlie Byrd e Gerry Mulligan, que souberam separar o joio do trigo."

Conclusão: a bossa nova entrava nos EUA na mesma época em que os Beatles começavam a provocar histeria entre jovens americanos.

A bossa nova interveio no jazz de modo decisivo, segundo o crítico Lorenzo Mammì. "É a música mais complexa e sofisticada produzida pelos latinos até então", disse, observando que os maiores nomes do gênero foram conquistados justamente em razão desse apelo.

"Frank Sinatra não cantou tango, mas cantou bossa nova", argumentou o crítico, fazendo uma comparação entre seu maior sucesso, a canção Night and Day, composta por Cole Porter, e a brasileira Samba de uma Nota Só, ambas de caráter protominimalista, uma vez que usam uma nota repetida à exaustão em sua estrutura formal, repetição que o crítico interpretou de diferentes maneiras. No caso da canção brasileira, ela seria, segundo ele, a representação de uma utopia que já deveria ter passado pelo trauma da industrialização.

"Assim como o jazz dos anos 1930 representa o lado alegre do fordismo, a bossa nova, no final da década de 1950, é uma utopia que não se realiza." O movimento, segundo ele, foi rapidíssimo.

Entre o disco pioneiro da bossa nova, gravado em 1958 pelo compositor e cantor João Gilberto, e o show do Carnegie Hall, em 1962, pouco mais de três anos se passaram, separando o que chamam de "fase lírica" da fase "épica" do gênero, mais engajada. A garota de Ipanema começava a envelhecer.