sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Caymmi num verão romano...

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 22/agosto/2008, seção "Opinião

Milagre em Roma
por Nelson Motta

RIO DE JANEIRO - No verão romano de 1983, Dorival Caymmi foi a grande estrela do festival Bahia de Todos os Sambas, no Circo Massimo, ao lado de João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Moraes Moreira, com o trio elétrico de Dodô e Osmar fazendo um carnaval na Piazza Navona.

Depois de um dos shows, dividi um táxi com Caymmi e Nana. O "Algodão" estava feliz, o rosto moreno cercado pelos cabelos branquíssimos, sereno como quem sabe, leve como quem aceita, o perfeito "Buda nagô" cantado por Gilberto Gil. Refestelado no banco traseiro, para deleite meu e do taxista, inicia um dueto da "Tosca" com Nana, enquanto rodamos pelas ruas estreitas do Trastevere. Caymmi foi criado ouvindo ópera e música clássica, adora Bach, diz que todos os acordes e harmonias que ainda hoje surpreendem os que se acham modernos já estavam nele.

Nana canta "Só louco", e a cidade eterna passa iluminada pela margem do Tibre. Dorival faz uma segunda voz, revira os olhos, faz bico com os lábios grossos e sensuais. É a encarnação do "dengo viril", uma macheza dengosa e sedutora, tão presente na vitoriosa mistura de baianos com árabes, como Jorge Amado, ou italianos, como Caymmi.

O motorista está adorando o concerto e desconfio que faz um percurso mais longo mais por prazer do que por dinheiro. Várias músicas depois, quando chegamos ao hotel, abracei Caymmi comovido e, diante de minha expressão abobalhada de êxtase e gratidão, declamou com voz grave e majestosa:

"Cada minuto que passa é um milagre que não se repete".Deu um tempo para que eu absorvesse tanta sabedoria filosófica e, com o timing de um grande comediante, revelou a fonte de tanta poesia: "Rádio Relógio Federal".

Boa noite, Dorival Caymmi.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Ah! Dorival Caymmi...


Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 18/agosto/2008, seção "Opinião".

Sábado em Copacabana
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em 1947, quando Dorival Caymmi começou a compor seus incomparáveis sambas urbanos -"Marina", "Não Tem Solução", "Nem Eu", "Saudade", "Adeus", "Nunca Mais", "Só Louco", "Você Não Sabe Amar", "Sábado em Copacabana"-, os puristas rosnaram sua decepção. Acusaram-no de se estar vendendo para o universo das boates. Logo ele, o grande folclorista, baiano legítimo, cantor e cultor das nossas tradições.

Para os íntimos, Caymmi se justificava dizendo que não era folclorista e que apenas precisava trabalhar. Com o fechamento dos cassinos em 1946, já não havia espaço para as superproduções em que o palco podia comportar uma jangada, uma praia ou uma rua inteira da Bahia. A realidade agora era a das boates, amenas e intimistas, em que, às vezes, o show se limitava a ele e seu violão -como se ele precisasse de mais do que isso.

A música teria de seguir o novo formato. No lugar das epopéias de pescadores em noites de temporal, era a vez dos amores loucos e sem solução, aqueles que não podiam acontecer. As marinas épicas, com tintas de tragédia, transformavam-se numa morena chamada Marina que se pintava além da conta. As tormentas passavam a ser íntimas, mas nem por isso menos brutais.

Não quer dizer que Caymmi tenha abandonado a temática baiana. Sempre que cantou o mar, era o da Bahia. Um mar também idealizado porque, segundo sua biógrafa e neta Stella, ele não sabia nadar e nunca pescou. O que só exacerba a beleza de suas canções praieiras. O artista não precisa ter a ver com sua arte.

O Caymmi em terra firme derrotou o preconceito dos puristas e se impôs por sua maior complexidade musical e poética. De seus 94 anos, passou os últimos 70 no Rio, e há um quê de fatalidade e lirismo no fato de ter morrido num sábado em Copacabana.

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- Dorival Caymmi nasceu em 30/abril/1914 (Salvador, BA) e passou para a eternidade em 16/agosto/2008 (Rio de Janeiro, RJ).

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Quarteto em Cy - biografia e primeiro DVD

Texto publicado no JBonline em 13/agosto/2008

Encontro no orkut inspira biografia do grupo vocal Quarteto em Cy
por Leandro Souto Maior, JB Online

RIO - Vinicius de Moraes apresentava elas assim: “Estas são as minhas menininhas, são as quatro baianinhas que eu um dia descobri: Quarteto em Cy”.

Em 1964, elas eram quatro garotas recém chegadas da Bahia e que ficaram muito encantadas - e ao mesmo tempo muito apavoradas - de contracenar com aqueles dois ídolos: Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi. Quarenta anos depois, Cyva, Cynara, Cybele e Sonya voltam ao repertório dos compositores, em lançamento de DVD e show no Teatro Rival, nesta sexta e sábado.

- A gente se sente na obrigação de cantar essas músicas para essa nova geração, de mostrar quem são esses caras que continuam sendo ídolos – diz Cynara

Elas estão com um site na internet (www.quartetoemcy.com.br), mas apenas Cynara é antenada às novidades e possibilidades da rede.

- Eu sou uma pessoa absolutamente viciada na internet. Adoro o que ela pode me dar de bom e uma das coisas mais importantes da minha vida foi saber lidar com isso. A Sonynha não gosta de internet. Cyva e Cybele não tem internet, mas ficam loucas quando eu conto meu entusiasmo!

E foi justamente no mundo virtual, mais precisamente no site de relacionamentos orkut, que surgiu o próximo projeto envolvendo o Quarteto em Cy.

- Descobri muita gente jovem apaixonada pelo nosso trabalho através do 'tal' do orkut. As pessoas pensam que é bobagem, mas não é não. Se você sabe usar aquilo para o bem, é uma ótima ferramenta. Através do orkut eu conheci uma jornalista, Inahiá Castro, que se apaixonou pela história do grupo e propôs fazer um livro, que já está pronto e vai ser lançado ainda este ano.

A história das quatro irmãs que vieram do interior da Bahia é realmente 'novelesca'.

- Ela mora em São Paulo, mas veio aqui no Rio pegar depoimentos, e pegou cada um melhor que o outro. Ela falou com o Chico (Buarque), com o (Gilberto) Gil, Carlos Lyra, com muita gente. Além disso, cedemos todo um material fantástico de documentos, fotos e tudo o mais, que vão impressionar e emocionar muita gente – adianta Cynara.

- Tudo começou quando a Inahiá perguntou em uma comunidade: 'quem teve contato com Vinicius?' Aí não sei o que me deu que eu respondi, e ela não acreditou que era eu, daí que começou tudo. E não poderia ser mesmo de outra maneira, porque o Vinicus arregimenta essa coisa da amizade de uma forma maravilhosa!

44 anos de carreira

Além de clássicos eternizados nos arranjos do quarteto, o repertório do show traz ainda pérolas nunca antes registradas por elas, como Pela luz dos olhos seus e Valsinha. Cynara assina grande parte dos arranjos vocais da apresentação.

- Gosto de todo mundo que faz vocal, o que é um desafio hoje em dia. Às vezes me parece como uma arte tão esquecida... As pessoas não valorizam, e é uma 'trabalheira danada'. Estudar o timbre, a tessitura, ver as vozes... Aí você canta, a música acaba naquele três minutos, e ninguém imagina o tempo que se dedicou àquilo - lamenta, mas não desanima:

- Estamos com muito gás. Quarenta e quatro anos de carreira não é brincadeira! Já temos um jeito de olhar uma para a outra e saber o que cada uma quer, o que cada uma gosta. É como um casamento – compara.

[01:21] - 13/08/2008

domingo, 10 de agosto de 2008

Indústria do disco

Texto publicado no uol.com.br em 10/agosto/2008

As profundas transformações por que passa a indústria do disco
por Véronique Mortaigne, "Le Monde", França

Talvez fique registrada na história da "chanson", a música popular francesa, a anedota que chamou a atenção nesta temporada: o lançamento, em 11 de julho, de "Comme si de rien n'était", o álbum de Carla Bruni, a mulher do presidente Nicolas Sarkozy, um título que pode ser traduzido por "Como quem não quer nada". Neste campo, a acumulação das funções é um caso bastante incomum. Para encontrar casos similares, vale tentar pesquisar no passado. Eva Perón fora uma atriz de filmes de série B até casar-se em 1945 com o futuro presidente argentino. Ou procurar no presente. Sonsoles Espinosa Zapatero, a mulher do atual presidente do governo espanhol, é cantora de ópera, uma soprano discretíssima. Mas, apesar das tentativas, a pesquisa não dá em nada. O episódio da Carla Bruni é mesmo inédito.

Ele é extraordinário, não apenas porque a cantora, uma ex-top-model experiente na prática de lidar com a mídia, utilizou a vitrine do show business para organizar a comunicação política do seu casal, mas também, mais ainda porque ele é significativo das profundas transformações que vêm sofrendo as indústrias culturais e seus modos de expressão. Vale ressaltar a precisão do plano de comunicação elaborado pela primeira-dama da França, que galga novos degraus na inventividade da promoção: a uma frase musical de Barbara (1930-1997, uma cultuada cantora, compositora intérprete francesa) acrescentada na calada da noite à música "Dérangez les pierres", cuja melodia foi originalmente composta por Julien Clerc, responde em 12 de julho uma foto de Peter Lindbergh para a revista "Elle". Nela, Carla Bruni posa com a mesma atitude da jovem Françoise Hardy (em meados dos anos 1960): cabelos compridos, pernas dobradas; no fundo do cenário, sobre um piano, a foto de Barbara. Ou seja, elementos suficientes para sugerir seu posicionamento no contexto histórico da música popular francesa...

Mas a mulher do presidente não inovou neste terreno. E ela tampouco foi a precursora das excrescências de imagem: neste quesito, ela não tem nada a ensinar para Pete Doherthy, Amy Whinehouse, Britney Spears, embriagados e drogados. . . A mídia e os consumidores adoram as loucuras das stars. Mais recentemente, na França, a moda tem mostrado certa preferência pelos cantores populares filósofos (sic), tais como Julien Doré, ou ainda pelos "artistas do bem", que pretendem remediar as mazelas do mundo, inclusive do mundo do rock'n'roll, onde os abusos caracterizam a própria essência do gênero.

Este é o caso do Radiohead que, motivado por uma legitima preocupação, decidiu reduzir os gastos com energia gerados pelas suas apresentações. Para tanto, exigiu que os assentos reservados para a imprensa fossem atribuídos apenas aos cinqüenta primeiros jornalistas que chegassem de bicicleta à sede da Beggars França. Esta gravadora independente fora obrigada a ceder às exigências do grupo britânico.

Houve um tempo em que os artistas carentes de precisão no tocante aos seus feitos e à sua pessoa optavam por dirigir a mão do jornalista. Foi assim que o "publicist" (o encarregado da comunicação) de David Bowie se notabilizou ao distribuir um calhamaço de espessos envelopes intitulado "Todas as perguntas que você está querendo fazer a David Bowie", com as respostas, antes de entrevistas organizadas em Nova York para a imprensa mundial. Ao menos, o jornalista tinha a vantagem de encontrar-se então com o homem dos olhos de cores diferentes reservadamente.

Neste verão, o americano Tom Waits, fazendo jus à sua reputação de urso inspirado, alçou esta estratégia para um nível superior. Inspirando-se nos conselhos do seu círculo de apaixonados, ele excluiu os desprezadores, oferecendo para jornais auto-entrevistas e dando uma coletiva de imprensa provocadora na Internet (os flashes das câmeras e as perguntas feitas são na verdade uma montagem, uma vez que Waits responde para uma sala vazia). Ele também exigiu que fossem efetuadas verificações de identidade na entrada dos seus shows, com venda de ingressos nominativos — que custam na França entre 69 e 139 euros (entre R$167 e R$336 no câmbio atual) — de modo a evitar os cambistas, num derradeiro gesto de generosidade democrática.

Os empresários de artistas, em particular os anglo-saxões, vêm impondo mais e mais as suas estratégias. Em abril, o grupo belga d'EUS e a filial bruxelense da Universal Music haviam imposto aos jornais a assinatura de um "protocolo de embargo" acrescentado de uma multa de 25.000 euros (cerca de R$60.000) em caso de publicação dos artigos antes da data prevista de lançamento do álbum "Vantage Point". Os diários "Le Soir" e "De Morgen" romperam o acordo em nome da liberdade da imprensa.

As relações entre a indústria musical e os meios de comunicação foram ficando mais e mais tensas com o agravamento da crise do disco em 2007 e 2008. Algumas grandes companhias, tais como a prestigiosa britânica EMI, que foi comprada em 2007 por um fundo de investimentos americano, o Terra Firma, ou ainda a Sony-BMG, que é o produto de uma fusão destinada a reduzir o número de funcionários de ambas as companhias, vêm enfrentando planos de reestruturação sucessivos. As tradicionais assessorias de imprensa dos selos vêm derretendo como neve no sol.

Dentro deste contexto, os veículos de comunicação deixaram de ser vistos como meios de informação, mas sim como plataformas de comunicação. Cada vez mais, a campanha de "promoção" é iniciada muito mais cedo que de costume. As gravadoras lançam mão de convites para entrevistas "frente a frente", oferecidas com "exclusividade", podendo ser realizadas até mesmo na casa do artista; ou ainda de sugestões de visitas nos estúdios para se descobrir trechos de "work in progress", ou para ouvir falsas confidências.

A Internet também andou modificando as práticas. Assessores de imprensa se disfarçam de blogueiros para fomentarem o rumor; grupos de internautas considerados como estratégicos (blogueiras antenadas em culinária, jovens viciados em colunas sociais, sites de consumidores) são convidados para audições de lançamentos em primeira-mão, etc.

Recusa de toda promoção

No passado, as gravadoras garantiam o desenvolvimento das carreiras de artistas. Atualmente, os cofres estão vazios, e a lógica foi rompida. Os artistas precisam rever sua posição. A EMI acaba de perder os Rolling Stones em proveito da Universal Music. A Warner teve de se conformar a desistir de Madonna, que se bandeou de cuia e malas para o gigante do entretenimento americano Live Nation, enquanto Bob Dylan, depois de décadas na Columbia Records (Sony-BMG), se rendeu ao canto da sereia da cadeia de bares Starbucks Coffee.

Carla Bruni, por sua vez, investiu em todos os setores — a moda, a política, as artes. Com tudo isso, o acesso à informação acabou ficando enviesado.

No futuro, ficará sem dúvida registrado na história da música popular mundial que o verão de 2008 também foi o do retorno do cantor canadense Leonard Cohen, que estava ausente dos palcos mundiais havia treze anos. O lendário autor de "Suzanne" é um artista vinculado desde 1966 à Columbia Records, uma gravadora na qual ainda é possível cruzar com Bob Dylan, Bruce Springsteen, e, na França, Francis Cabrel, Céline Dion ou Jean-Jacques Goldman — um alérgico à crítica.

Cohen, 73 anos, que ostenta dezenas de milhões de discos vendidos pelo mundo afora, cantou, triunfalmente, em diversos festivais de verão. Para comemorar este evento, ninguém mexeu uma palha na Sony-BMG. Contudo, o catálogo de Leonard Cohen pertence mesmo à Columbia. Mas, infelizmente para ele, o cantor-compositor não está preparando nenhum disco por enquanto. Por que uma gravadora, no momento em que tudo vai mal, iria prestar ajuda a produtores de espetáculos cujos negócios são florescentes? Este deve ter sido o pensamento de mais de um na Sony-BMG. Quanto a Leonard Cohen, ele havia recusado toda promoção, sem que isso viesse prejudicar sua arte nem chegasse a atrapalhar os jornalistas, que relataram com muito afinco a sua performance.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

domingo, 3 de agosto de 2008

Pianista Herbie Hancock, o "rei do jazz"

Texto publicado no caderno "+Mais", do jornal "Folha de S.Paulo', de 3/agosto/2008

Cultura

O Rei do Jazz

UM DOS MAIS IMPORTANTES MÚSICOS EM ATIVIDADE, O PIANISTA HERBIE HANCOCK RELEMBRA A PARCERIA COM MILES DAVIS NOS ANOS 1960, FALA DE ELEIÇÕES NOS EUA E SOBRE O FUTURO DO GÊNERO

por Iker Seisdedos

Lenda viva do jazz, o pianista Herbie Hancock vive um dos melhores momentos de seus quase 50 anos de carreira brilhante. No início do ano [em fevereiro], ganhou o Grammy de melhor disco de 2007 por seu álbum em homenagem à cantora e compositora canadense Joni Mitchell -"River -The Joni Letters" (Verve/ Universal).

Foi o primeiro disco de jazz a ter recebido o prêmio máximo da indústria musical em 44 anos (o último tinha sido "Getz/Gilberto", de Stan Getz, graças a um fenômeno chamado "The Girl from Ipanema").

Os últimos meses também foram marcados por sua eleição para a lista da revista "Time" dos cem personagens mais influentes e pelo fato de a Universidade Harvard lhe ter dado a distinção de artista do ano.

Hancock é provavelmente o músico de jazz que mais marcas deixou na história da cultura pop. Por exemplo, a trilha sonora de "Blow Up - Depois Daquele Beijo", obra-prima de Michelangelo Antonioni.

Nos anos 1970, liderou a bastardização do jazz com "Headhunters", que marcou época com seu 1 milhão de cópias vendidas.

E, se nos anos 1980 popularizou o "scratch" -técnica empregada pelos DJs de rap- com "Rockit", nos anos 90 viu o trabalho que fez para o selo Blue Note no início de sua carreira ser apropriado pelo hip hop e o acid jazz, conquistando um novo tipo de ouvinte.

Daquele tempo, esse artista camaleônico, membro do inesquecível segundo quinteto de Miles Davis no final dos anos 1960 -talvez a melhor formação jazzística que já existiu-, conserva as mãos finas que chamavam a atenção na elegante e distante capa de seu primeiro disco como artista principal, de 1962.

Foi então que o mundo descobriu um prodigioso pianista de Chicago de formação clássica, um improvisador incansável, capaz de introduzir Debussy no mais arraigado discurso da música negra. Aos 68 anos, Herbie Hancock ainda veste cores escuras e exibe forma física invejável.

Lê revistas de divulgação científica para passar o tempo e dobra o paletó do visitante como um jazzman daqueles de antigamente -pobres, mas cujas roupas eram bem passadas.

PERGUNTA - O atual sucesso do jazz, de que seu prêmio é um exemplo, é freqüentemente atribuído aos popularizadores tradicionais do gênero, como o trompetista Wynton Marsalis e o documentarista Ken Burns -que, diga-se de passagem, costumam contar uma história do jazz um tanto quanto enviesada e edulcorada...
HERBIE HANCOCK - É possível. O que acho é que o jazz é muito saudável para a alma humana, algo que realmente liberta a alma. É como se o espírito não obtivesse satisfação suficiente com outras formas musicais, que podem ser maravilhosas, mas, sinceramente, não chegam até onde chega o jazz.
Todos os gêneros são válidos, mas há algo de muito especial neste ao qual dediquei minha vida. É uma queda livre, e você precisa de músicos nos quais se apoiar. Não conheço ninguém que faça jazz pela fama, as jóias ou as mulheres.

PERGUNTA - Por que ocorreu tão tardiamente o reconhecimento dessa expressão cultural mais duradoura e original dos EUA?
HANCOCK - Eu me recordo de quando tocava com Miles [Davis], nos anos 1960. Naquela época o jazz ainda era uma música que se tocava nos clubes, longe dos grandes festivais.
Éramos sujeitos com classe e fazíamos uma música que ninguém comprava. Eu tinha 20 e poucos anos. Depois disso, o jazz se tornou uma coisa virtuosística demais. As pessoas comuns não assimilam algo muito complicado.
Chegou o rock and roll, e acabou-se a história.

PERGUNTA - Aos 25 anos de idade, você conseguia entender a importância daquela música?
HANCOCK - Curtíamos explorar, nos aventurar em áreas onde ninguém estivera antes. A idéia de explorar terreno novo ainda está muito presente para mim.
Inclusive em "River", que pode ser considerado um álbum mais fácil de se ouvir, ou no anterior ("Possibilities"), que foi muito criticado por eu ter colaborado com artistas como Christina Aguilera.
Diziam que faltava um centro ao disco, que abarcava muita coisa e se fixava em poucas, como se isso fosse algo intrinsecamente ruim.
Para mim, é isso o que é preciso fazer neste momento. Esse é o signo destes tempos de downloads digitais. Ninguém mais ouve álbuns inteiros. As pessoas só se interessam por canções. Por isso fiz um disco em que parecia que cada faixa vinha de um disco diferente.

PERGUNTA - Você sempre pareceu ter sido do tipo íntegro e careta, o cara que ficava longe das drogas, que tomava as decisões certas. Uma imagem que, naquela época, não era típica de um jazzman...
HANCOCK - Vamos deixar claro: não éramos anjos. E não se iluda: eu fiz algumas das coisas que a gente fazia. Foi uma época difícil. E alguns ficaram pelo caminho.

PERGUNTA - Era difícil conviver com alguns deles?
HANCOCK - Sobretudo com aqueles que se afundaram na heroína. Muitos saíram dessa graças ao islã.

PERGUNTA - Nunca se converteu?
HANCOCK - Nos anos 70, flertei com o islã. Me fazia chamar Mwanddishi, mas era mais por solidariedade com a luta política da comunidade negra.

PERGUNTA - Quais são suas lembranças de Joni Mitchell jovem? A loira cantora e compositora de folk foi bem recebida quando começou a se misturar com músicos de jazz?
HANCOCK - Muitos a trataram com frieza num primeiro momento, porque a tinham ouvido no rádio e não entendiam o que ela estaria procurando entre nós. Era uma hippie com seu violão. Pessoalmente, não a tinha ouvido muito antes de conhecê-la. Nascer em 1940 significou fazer parte da geração anterior ao rock and roll.
Lembro-me de que estava fazendo o disco dela, "Mingus", quando fui a um ensaio. [O baixista] Jaco Pastorius me chamou. Eles já tinham trabalhado juntos antes. Disse: "Tio, estamos fazendo um disco em homenagem a Charlie Mingus".
Pensei: "Por que essa garota está se metendo nessa história?". Jaco me falou: "Wayne Shorter está comigo". Bom, se Wayne estava lá, nada de mau poderia acontecer. Então fui.

PERGUNTA - Jaco Pastorius era um daqueles sujeitos incômodos aos quais você se referia antes?
HANCOCK - Muitos eram junkies. Jaco não era exatamente assim. Provavelmente tomou heroína. E cocaína também.
Mas o caso dele era mais grave. Tinha um desequilíbrio químico na cabeça. Acabou louco.
Mas, na época em que eu o conheci, era um sujeito normal.
Vivia na Flórida, tinha mulher e filhos, era um jovem marido que tocava baixo como os anjos. Entrou para o Weather Report, e isso foi ótimo para seu desenvolvimento fenomenal. Faziam música estarrecedora, aclamada pela crítica e pelas platéias de jazz.
Era um público grande para um grupo como aquele, mas não grande como o público de rock. E Jaco era uma estrela de rock, sobretudo quando subia ao palco, mas não ganhou a atenção que esperava. Acho que isso minou sua personalidade frágil, até acabar com ele.

PERGUNTA - Você foi homenageado com o Grammy mais apropriado para a era Barack Obama.
HANCOCK - Ninguém esperava que um negro fosse candidato à Presidência dos EUA, assim como ninguém teria apostado que um velho músico de jazz levasse o Grammy. As duas coisas são sinais de mudanças nos EUA, que está precisando mesmo virar uma página.

PERGUNTA - Isso tem a ver com questões raciais?
HANCOCK - A questão racial é apenas uma parte do problema.
Este inclui questões como a cor da pele, sem dúvida, mas não é apenas isso. Também o gênero faz parte. É um sinal positivo e saudável. Você imaginou que veria uma mulher candidata à Presidência?

PERGUNTA - Nem sequer quando Jesse Jackson esteve a ponto de ser candidato [democrata], em 1988?
HANCOCK - Nunca pus fé nele.
Ele nunca me pareceu confiável, nem mesmo o homem adequado. Já Obama, pelo contrário, o é. Mas não pela cor de sua pele. Tenho muitos amigos com os quais tenho falado sobre assunto. Alguns o apóiam porque o vêem como gente sua.
Mas outros subscrevem as mesmas razões que eu. Obama é o tipo correto, que está despertando a consciência de muitos eleitores jovens. É só isso. Ninguém conseguiu isso antes.
Talvez Kennedy, apenas. Em quem eu, é claro, votei, na época dele, quando tinha pouco mais de 20 anos.

PERGUNTA - Antigamente o jazz era uma coisa que deixava os pais de cabelos em pé, mas já faz tempo que não é assim, infelizmente. Onde foi parar essa periculosidade?
HANCOCK - Sim, o jazz foi irado em sua época. Nos anos 1960, havia discos que representavam o protesto. Ainda existem hoje, mas são poucos.
Quanto à periculosidade que você menciona, é verdade que o jazz pendeu para o comercial.
Se pensar bem, verá que o fato de alguém querer vender discos é uma intenção nobre. As rádios que transmitem jazz autêntico estão morrendo. Os adolescentes acham o jazz limpo demais, às vezes chato.
Mas isso não é algo que se possa atribuir a todo o campo do jazz. Não seria justo atribuir tantos problemas derivados do "smooth jazz" a todos os músicos que ganham a vida como podem nos clubes.

PERGUNTA - Por que não conseguem fazer contato com os jovens?
HANCOCK - Eu ando vendo mais gente jovem nos concertos, graças a programas de educação e iniciativas desse tipo. Talvez não seja a coisa mais beatnik do mundo, mas também não é intrinsecamente mau que se estude o jazz nas escolas.

PERGUNTA - Você é provavelmente o artista de jazz que mais vezes deixou sua marca na cultura pop.
HANCOCK - É que, se todos nós ficássemos sempre dentro de nossas torres de marfim, tocando "Round Midnight" [standard do gênero] de vez em quando, o jazz acabaria morrendo. Não se conquistariam novos ouvintes, os músicos envelheceriam e acabariam por desaparecer.
Qual seria o resultado de algo assim? O jazz morreria, e não haveria saída.

— A íntegra desta entrevista saiu no "El País". Tradução de Clara Allain.