sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O fim das grandes lojas de discos

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 31/dezembro/2010, no caderno "Opinião"

Música entre panelas
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - No começo do século 20, não existiam lojas só de discos. Eles eram vendidos nas lojas de partituras e instrumentos musicais. Tanto fazia, era tudo música. Numa delas, em 1927, a Guitarra de Prata, até hoje na rua da Carioca, o jovem Mario Reis foi apresentado ao sambista Sinhô, do que resultou uma revolução. Dois anos depois, em outra loja, A Melodia, na rua Gonçalves Dias, a também jovem Carmen Miranda foi apresentada a Joubert de Carvalho e este lhe deu a canção "Pra Você Gostar de Mim". Que Carmen transformou na carnavalesca "Taí", e foi outra revolução.

Com o declínio das lojas de pianos, os discos passaram a ser vendidos nos fundos das lojas de eletrodomésticos, tipo Rei da Voz ou Casa Garson. Mas a música nunca se sentiu à vontade em meio àquelas ofertas de armários, colchões, artigos para banheiro, geladeiras e panelas. Foi preciso chegar aos anos 50 e 60 para surgir as lojas especializadas em discos — onde cantores, músicos, produtores, jornalistas e ouvintes se reuniam em função da música.

Esta noite, com o fim da Modern Sound, em Copacabana, a música perderá a última grande loja de discos do país. Um lugar onde, por 44 anos, as pessoas não só encontravam os discos que quisessem, mas se encontravam umas às outras e, dessa troca de fluidos e ideias, a música sempre saía ganhando.

A Modern Sound vai se juntar às suas irmãs — Brenno Rossi, em São Paulo, Templar, em Londres, Footlight, em Nova York, as gigantes Tower e HMV, e outras. Todas morreram nos últimos dez anos.

Ironicamente, as lojas de discos deixam de existir, mas continua-se a vender discos. Só que, agora, em certas livrarias, onde eles ainda encontram um ambiente acolhedor, e nos shoppings e grandes lojas — de novo em meio aos armários, colchões, artigos para banheiro, geladeiras e panelas.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Escolhas da década que passou...

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 29/dezembro/2010, no caderno "Ilustrada"

50 álbuns da década
por Marcus Preto, de São Paulo

Os discos que formaram a identidade da música brasileira nos anos 2000

Quais foram os álbuns que fizeram a identidade da música brasileira da década que termina na sexta-feira?Usando como critério não só a qualidade estética, mas também o sucesso mercadológico e a relevância que tiveram na transformação da indústria musical, editores e repórteres da Folha selecionaram os 50 discos mais representativos do que foi o Brasil nos dez anos passados.

A década começou subvertendo bossa nova em música eletrônica -primeiro pelas mãos do produtor Suba (1961-1999), depois por iniciativas de Fernanda Porto e DJ Marky, entre outros.

A seguir, o samba foi alçado a principal ingrediente na reformulação do pop. O processo partiu da revitalização da Lapa carioca, com Teresa Cristina à frente, chegando ao mainstream em álbuns de Marisa Monte, Maria Rita etc.

O ciclo ufanista diminuiu a partir de 2006. Agora, o pop absorve um sem número de gêneros e volta a beber do rock, da psicodelia e do folk.

Mas a principal revolução dos 00 não foi estética. Muito mais radical foi a transformação das relações entre ouvinte, música e indústria.

Com as facilidades tecnológicas de gravação, o artista independente, antes exceção, se tornou regra do mercado. Essa nova condição fez nascer o espírito colaborativo que resultaria em projetos coletivos como o Instituto, o +2 e a Orquestra Imperial.

Como lembra João Marcello Bôscoli, dono da gravadora Trama, "se por um lado a internet ajudou na derrocada da indústria do disco, por outro serviu de plataforma para novos artistas". Ele cita os exemplos do Cansei de Ser Sexy e de Mallu Magalhães.

Gêneros populares, o tecnobrega, do Pará, e o funk carioca brotaram e ganharam espaço à parte da indústria.

"A indústria só conseguiu manter o controle sobre o [segmento] sertanejo", diz Pena Schmidt, ex-executivo de gravadoras que hoje atua como diretor artístico do Auditório Ibirapuera. "Nem no axé eles mandam mais -a Ivete é dona do seu nariz."

Em contrapartida, a internet "tornou o sucesso fugaz", como acredita João Augusto, dono da pequena gravadora Deck Disc. "O moleque já coloca músicas no computador sabendo que vai jogar fora.

"Mesmo reconhecendo o quanto sua banda deve à internet, Adriano Cintra, baixista do Cansei de Ser Sexy, concorda com isso: "A música virou um acessório do iPod. Ninguém quer mais gastar dinheiro com ela".

DISCOTECA BÁSICA DOS ANOS 00

1.Bebel Gilberto - Tanto Tempo (2000)
2.Suba - São Paulo Confessions (2000)
3.Otto - Condom Black (2001)
4.Ana Carolina - Ana Rita Joana Iracema e Carolina (2001)
5.Seu Jorge - Samba Esporte Fino (2001)
6.Ivete Sangalo - Festa (2001)
7.Los Hermanos - Bloco do Eu Sozinho (2001)
8.Hamilton de Holanda - Hamilton de Holanda (2001)
9.Cachorro Grande - Cachorro Grande (2001)
10.Tribalistas - Tribalistas (2002)
11.Grupo Revelação - Ao Vivo no Olimpo (2002)
12.Mart'nália - Pé do Meu Samba (2002)
13.Instituto - Coleção Nacional (2002)
14.Max de Castro - Orquestra Klaxon (2002)
15.Fernanda Porto - Fernanda Porto (2002)
16.Teresa Cristina - Canta Paulinho da Viola (2002)
17.Zeca Pagodinho - Deixa a Vida me Levar (2002)
18.Nando Reis - A Letra A (2003)
19.Cibelle - Cibelle (2003)
20.Domenico + 2 - Sincerely Hot (2003)
21.DonaZica - Composição (2003)
22.Marcelo D2 - A Procura da Batida Perfeita (2003)
23.Pitty - Admirável Chip Novo (2003)
24.Maria Rita - Maria Rita (2003)
25.Banda Calypso - Ao Vivo em São Paulo (2003)
26.Mombojó - Nadadenovo (2004)
27.Cidadão Instigado - O Ciclo da De.Cadência (2004)
28.DJ Marky & XRS - In Rotation (2004)
29.Mônica Salmaso - Iaiá (2004)
30.Romulo Froes - Calado (2004)
31.Tati Quebra-Barraco - Boladona (2004)
32.Vanessa da Mata - Essa Boneca Tem Manual (2004)
33.Céu - Céu (2005)
34.Roberta Sá - Braseiro (2005)
35.Caetano Veloso - Cê (2006)
36.Kassin + 2 - Futurismo (2006)
37.NXZero - NXZero (2006)
38.Cansei de Ser Sexy - Cansei de Ser Sexy (2006)
39.Marisa Monte - Universo ao meu Redor e Infinito Particular (2006)
40.Orquestra Imperial - Carnaval Só Ano que Vem (2007)
41.Vanguart - Vanguart (2007)
42.Fernanda Takai - Onde Brilhem os Olhos Seus (2007)
43.César Menotti & Fabiano -.com_você (2007)
44.Tiê - Sweet Jardim (2008)
45.Cérebro Eletrônico - Pareço Moderno (2008)
46.Mallu Magalhães - Mallu Magalhães (2008)
47.Marcelo Camelo - Sou (2008)
48.Maria Gadú - Maria Gadú (2009)
49.Marcelo Jeneci - Feito pra Acabar (2010)
50.Tulipa Ruiz - Efêmera (2010)

Os melhores da música em 2010

Ilustrada elege os principais lançamentos da área neste ano e também aponta o que deu errado

Brasileiros
por Marcus Preto

MELHORES

"Feito pra Acabar", de Marcelo Jeneci
Treze hits em potencial que, se caírem no rádio, elevarão muito o nível da programação

"Azul" e "Vermelho", de Nina Becker
Delicada estreia solo da vocalista da Orquestra Imperial em dois álbuns complementares

"Petrobrás III - Devia Ser Proibido", de Itamar Assumpção
Itamar póstumo - e inédito - no mesmo alto nível dos melhores trabalhos que o compositor fez em vida

"Efêmera", de Tulipa
Nasce uma estrela à maneira moderna -sem pose, sem truques, sem frescura

"Vol.2", de Andreia Dias
A compositora mais original da nova geração segue provocativa e inovadora

PIOR

"Canta Bezerra da Silva", de Marcelo D2
Esperava-se muito e pouca coisa foi entregue


Internacionais
por Thales de Menezes

MELHORES

"Teen Dream", de Beach House
Uma francesa e um americano que conseguem fazer pop grudento, para tocar em festinha, mas com guitarras lentas, quase arrastadas

"The Drums", de The Drums
Roupinhas coloridas, dancinhas no palco, som para levantar o ânimo de qualquer um. Banda de moleques como sempre deveria ser

"Reimagines Gershwin", de Brian Wilson
O cara que reinventou o pop americano nos anos 1960 busca material com o sujeito que definiu o que era pop nos anos 1930 e 1940

"American Slang", de Gaslight Anthem
Punks tatuados de Nova Jersey, eles adoram Bruce Springsteen e Clash. Misturaram os dois com pitadas de fúria e deu muito certo

"The Suburbs", de Arcade Fire
Um terceiro disco muito melhor do que o segundo, que já era bem melhor que o ótimo primeiro. Onde esses canadenses vão parar?

PIOR

"Michael", de Michael Jackson
Coisas piores chegaram às lojas, mas nenhuma com a expectativa gerada por este álbum. Valeria um single, "Hollywood Tonight"

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O fim da Modern Sound

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 17/dezembro/2010, no caderno "Opinião"

Política suicida
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - O desenho já se insinuava desde os anos 90. Se você tivesse uma loja de discos, pequena ou média -daquelas de rua, com clientes fiéis, não importava o sotaque musical da loja-, as dificuldades para trabalhar, mesmo que com lucros modestos, ficaram enormes. O problema não era vender. Era comprar.

Uma gravadora soltava o novo CD de um artista de venda certa, nacional ou estrangeiro. Se o disco custasse R$ 20 ao varejista, este teria de vendê-lo por R$ 30, para pagar os custos do ponto, os impostos, o contador, o empregado, a luz e ainda embolsar algum. O problema é que, por comprar quantidades menores de cada título, esse varejista seria um dos últimos a ser visitado pelo vendedor da gravadora.

Enquanto o disco do dito artista era procurado em vão na loja por seus clientes fiéis -e, quando finalmente aparecia, saía por R$ 30-, outro cliente não tão fiel vinha relatar que fora ao supermercado X ou à loja de departamentos Y, em busca de outra coisa, e deparara com pilhas do tal CD -por R$ 20. Claro, comprara-o. Com isto, o lojista perdia uma venda e, pior, perdia o cliente, que passava a chamá-lo de ladrão para todo mundo.

Essa política suicida, imposta pelas gravadoras, fechou milhares de lojas de discos no Brasil nos últimos 15 anos. Supermercados e grandes magazines trabalham com imensa variedade de produtos, dos quais o disco é apenas um, e nem de longe o mais importante. Mesmo assim, com sua clientela de milhares, podem comprar maciças quantidades de qualquer CD (o que baixa o preço de custo para cerca de R$ 15) e vendê-lo a R$ 20, ainda com lucro. É possível competir?

Este é um dos motivos do fim da loja Modern Sound, aqui no Rio, no próximo dia 31. O outro é a internet. Era talvez a última e melhor loja de discos de seu tamanho no mundo. Mundo este que, sem ela, fica menos suave e mais surdo.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Homenagem ao grande sambista

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 11/dezembro/2011, no caderno "Opinião"

Cantando para Billy
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Billy Blanco, 86, sambista brasileiro, autor de "Estatuto de Gafieira", "Viva Meu Samba", "Pistom de Gafieira", "Pano legal", "Aeromoça" e, em São Paulo, tão conhecido pelo "Vam'bora, vam'bora/ Tá na hora/ Vam'bora, vam'bora" de sua sinfonia "Paulistana", está internado num hospital carioca desde 2 de outubro por causa de um AVC. Desde então, Billy não se mexe nem fala. Sabe-se que está consciente porque às vezes abre os olhos e chora em silêncio.

Mas chora de emoção. Seus parentes e visitas não querem se arriscar a que, por trás dos olhos fechados e do semblante tranquilo, Billy os esteja ouvindo e entendendo tudo. Por isso, em vez de se lamentarem em voz alta pela sorte do amigo, preferem cantar para ele. E, vindo de Billy, há muito o que cantar.

Doris Monteiro canta "Mocinho Bonito" e "A Banca do Distinto", que Billy lhe deu nos anos 50. Leila Pinheiro, "Domingo Azul". Pery Ribeiro, "Esperança Perdida". Bilinho, filho de Billy e também cantor, põe para tocar o CD com a "Sinfonia do Rio de Janeiro", parceria de Billy com Tom Jobim, e faz um dueto com a voz do pai. Um dos netos de Billy, Pedro Sol, faz o mesmo com outra parceria Blanco-Jobim, a safadinha "Teresa da Praia". De repente, cantam em coro "Samba Triste" e "Se Gente Grande Soubesse", das mais bonitas de Billy.

O hospital fica na rua Moura Brito, na Tijuca, no mesmo quarteirão e calçada onde, há 60 anos, num porão, funcionava o lendário Sinatra-Farney Fan Club. Dele saíram grandes nomes da futura bossa nova, como Johnny Alf, João Donato e Paulo Moura. Billy também o frequentava, mas não apenas pela música: estava de olho em Ruth, uma bela associada, com quem se casou —até hoje.

Muitos ali já dividiram o palco com Billy. Mas nunca esse palco pareceu tão grande, intransponível e absurdamente vazio como aquele quarto de hospital.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Centenários esquecidos

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 4/dezembro/2010, no caderno "Opinião"

Desmemórias centenárias
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - As esferas estavam indecentemente musicais em 1910. Naquele ano nasceram Claudionor Cruz (1º/4), Jorge Veiga (14/4), Custodio Mesquita (25/4), Vadico (24/6), Luiz Barbosa (7/7), Haroldo Lobo (22/7), Adoniran Barbosa (6/8), Nássara (11/11) e Noel Rosa (11/12). Todos esses compositores e/ou intérpretes teriam feito 100 anos este ano. E o que o Brasil fez pela memória deles em 2010?

As grandes massas terão sido lembradas de que Claudionor Cruz foi um dos autores da valsa "Caprichos do Destino", da marchinha "Eu Brinco" e do samba "Disse-me-disse"? De que, sem Haroldo Lobo, o Carnaval não teria "Alá-la-ô", "O Passarinho do Relógio", "Retrato do Velho", "Pra Seu Governo", "Tristeza" e o samba não conheceria "Emília"? Ou de que, sem Nássara ("Maria Rosa", "Periquitinho Verde", "Florisbela", "Balzaqueana", a dita "Alá-la-ô"), não haveria o Carnaval?

Em 2010, quantos se lembraram de Luiz Barbosa, que incorporou a caixinha de fósforos ao samba e lançou no rádio sucessos que outros consagraram, como "Seu Libório" e "Minha Palhoça"? Sem a bossa de Luiz Barbosa, teria havido a de Jorge Veiga com "Eu Quero é Rosetar", "Café Soçaite", "Estatuto de Gafieira"? E o que seria dos aviadores do Brasil sem Jorge a "orientá-los" pelo microfone dos auditórios? Estariam perdidos no céu.

Será que fizemos justiça a Custódio Mesquita, a quem devemos foxes e valsas como "Nada Além", "Mulher", "Enquanto Houver Saudade" e "Velho Realejo"? Já Adoniran foi bem mais festejado, mas terá sido suficiente?

Quanto a Vadico, seu centenário passou a zero. Mas, como co-autor de "Feitio de Oração", "Feitiço da Vila", "Conversa de Botequim" etc., ele será muito lembrado nas celebrações a Noel, no sábado próximo. Aliás, sem Noel, não sei se o samba teria sua precoce maturidade. Ou se teríamos o samba, ponto.

sábado, 13 de novembro de 2010

"Lei Hugo Chávez" para a MPB retida nas gravadoras

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 13/novembro/2010, no caderno "Opinião"

Liberdade ainda que tardia
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Meu velho amigo Tárik de Souza — o que ele não conhece de música popular ninguém precisa conhecer — tem uma ideia revolucionária para libertar os acervos de música brasileira dos túmulos a que foram condenados pelas gravadoras. Túmulos sobre os quais elas se sentam e cujo conteúdo desprezam e desconhecem.

A ideia se resume numa palavra: desapropriar. Viria por meio de um decreto-lei, como já se fez muito no Brasil e ainda se faz por aí, motivo pelo qual Tárik a está chamando de "Lei Hugo Chávez". Por esta lei, as gravadoras brasileiras (na verdade, multinacionais instaladas aqui há décadas) entregariam tudo que gravaram de artistas nacionais, de, digamos, 1970 para trás, a um órgão central (como o MIS ou a Funarte), que disponibilizaria os fonogramas para quem quisesse relançá-los.

Não que as multis tenham os fonogramas originais. No seu desinteresse por qualquer música que não vá para as paradas, elas deixaram que coleções inteiras se perdessem. E estas teriam desaparecido de vez se não fossem os pesquisadores, que, por amor, conservaram tudo que se gravou no Brasil desde 1902. O que se quer é que as gravadoras abram mão e liberem -para sempre- o uso desses fonogramas, para serem "baixados", prensados ou o que for por quem tiver uso para eles.

Isso significaria a volta imediata de Pixinguinha, Francisco Alves, Carmen Miranda, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Lucio Alves, os Anjos do Inferno e mil outros ao patrimônio nacional, assim como a reabilitação de homens como Alcyr Pires Vermelho, Zé da Zilda, Haroldo Lobo, Haroldo Barbosa, Garoto, Valzinho, Luiz Antonio e muitos mais, autores de tantos sucessos e eles próprios quase desconhecidos.

Essa medida é impensável nos EUA, e sabe por quê? Porque, lá, as gravadoras não se atreveram a deixar a grande música americana fora de circulação.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

...E a nossa memória musical? Onde fica?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 20/agosto/2010, no caderno "Ilustrada"

Ary de primeira
por Juliana Paz, colaboração para a Folha

Pesquisador reúne primeiras gravações do autor de "Aquarela do Brasil", mas projeto não é lançado por falta de verba

"Meus amigos. Quero deixar às futuras gerações alguma coisa que o tempo não destrua. Muita gente, daqui a muitos anos, irá ouvir falar no compositor popular Ary Barroso. (...) Se o meu objetivo for colimado, estarei perfeitamente tranquilo e compensado."

As palavras, de ninguém menos que Ary Barroso (1903-1964), abriam o LP "Encontro com Ary", de 1955. Mais de meio século depois, o desejo do mineiro de Ubá que se tornou um dos mais importantes ícones da música brasileira ainda vale.

Uma caixa ambiciosa que resgata a obra completa do autor de "Aquarela do Brasil", reunindo em 20 CDs 318 de 323 gravações originais de músicas compostas por Ary -sambas, choros, valsas, foxtrotes, canções- permanece sem perspectivas de chegar ao mercado.

Segundo o responsável pela compilação, o pesquisador e colecionador musical Omar Jubran, 57, nenhuma instituição privada ou órgão público se dispôs a lançá-la.

Jubran, um ex-professor de biologia, levou mais de uma década para reunir as gravações, a maioria originalmente lançada em discos de 78 rotações por minuto, com uma faixa em cada lado. Com o rigor de um cientista, recuperou e remasterizou os fonogramas, sem comprometer a sonoridade da época.

O pacote traz um livro com a letra de cada canção, o intérprete, o ano de lançamento e gravação, o número do disco, além de comentários sobre o teatro de revista. "É uma batalha inglória", diz Jubran. "As pessoas pensam que vai ter que botar uma nota preta. Não sei, mas para grandes empresas não é nada. Para o próprio Ministério da Educação, é dinheiro de pinga."

DESILUSÃO

A seu favor, Jubran tem a caixa "Noel Pela Primeira Vez", lançada há dez anos, em que reuniu em 14 CDs as primeiras gravações do Poeta da Vila (1910-1937).

À época, a compilação saiu graças a um acordo entre a gravadora Velas e a Funarte, e lhe rendeu, além de espaço na mídia, um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Com tal cartão de visitas, Jubran achou que podia repetir o feito. Enganou-se. "Depois do Noel, veio a desilusão", lamenta.

A esperança chegou em 2002, quando, às vésperas do centenário de nascimento de Ary, foi criada pelo Ministério da Cultura uma comissão para celebrar sua memória. Dela, o pesquisador diz que recebeu apenas um "parabéns" pelo projeto.

"O trabalho do Omar Jubran é fantástico. Deveria ser prestigiado. A caixa tem que sair, é fundamental", afirma Sérgio Cabral, crítico musical e biógrafo de Ary Barroso. Jubran não é tão otimista.

"O Ary Barroso está pronto porque ainda foi no vácuo da ilusão. Agora eu não faço mais nada mesmo, acabou."

(Colaborou João Paulo Gondim, de São Paulo)

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RAIO-X
(de Ary Barroso)

Nasceu em 1903, em Ubá (MG). Político, advogado, criou o "samba-exaltação", em que elogiava o Brasil. Morreu em 1964

Raridades no acervo Entre os achados do pesquisador, estão as seguintes parcerias com ouvintes de rádio "Vou à Penha", 1ª gravação em 78 rpm

"Carne Seca com Tutu"*
PARCEIRA Vilma Quantiere de Azevedo
LANÇAMENTO 1950

"Primavera"*
PARCEIRA Lúcia Alves Catão
LANÇAMENTO 1951

"Cruel Resistência"*
PARCEIRO Irasse Nascimento Silva
LANÇAMENTO 1952

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Pesquisador diz combater "amnésia musical"
por Juliana Paz

Aposentado faz um programa de rádio dedicado à música brasileira

Ex-professor planeja ainda recuperar toda a obra de Lamartine Babo (1904-1963), um de seus três "filhos"

Em sua casa em Pinheiros, Omar Jubran guarda, dentro de uma sala onde a luz do sol entra com dificuldade, uma vasta coleção onde estima ter mais de 15 mil discos.

Na parede, ao lado de cartazes de Charles Chaplin, está uma fotografia em que aparece com Sérgio Cabral, autor de "No Tempo de Ary Barroso".

O fanatismo começou na infância, quando pelo rádio foi apresentado a Orlando Silva e Noel Rosa.
"Eu resolvi ter três filhos: Noel Rosa, Ary Barroso e Lamartine Babo", conta. "Na minha opinião, são os caras mais importantes em termos de pilar: um tripé do qual brotou todo o resto. A bossa nova deve muito aos três, de alguma forma".

Pessimista, Jubran confessa que, de Lamartine, recuperou menos da metade da obra original.
Para a caixa de Ary, conseguiu grande parte dos discos 78 rotações por minuto com a ajuda de colecionadores. Um deles, Brasílio Carvalho, era seu vizinho.

"Ele foi o avô que eu não conheci. Infelizmente, na época em que faleceu, eu não tinha concluído a remasterização", lamenta.

Os cinco títulos que faltam para completar as 323 composições originais de Ary, acredita, foram gravadas, mas não prensadas e distribuídas comercialmente.

Desde 2007 aposentado, o ex-professor hoje se dedica ao combate daquilo que chama de falta de memória musical do país.

Sozinho e sem apoio, ele comanda há quatro anos um programa de música brasileira, transmitido nas manhãs de domingo pela rádio USP.

Jubran tenta recuperar em minibiografias nomes que considera essenciais na música brasileira. Sempre tendo como referência o passado, ele quer que seja veiculado no ensino básico.

"O [produtor cultural] Oswaldo Sargentelli (1925-2002) morreu com esse sonho: que se instalasse nas escolas um curso de MPB. Ele queria que fosse algo agradável, com a historia da nossa música."

Sua preferida é "Aquarela do Brasil". "Não vejo como uma canção ufanista", diz, encantado.

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OPINIÃO

Não há música feita no Brasil sem influência de Ary Barroso
por Ronaldo Evangelista

Ary Barroso é importante por tudo. Nascido em 1903, sua história se confunde com a da música brasileira.

Pianista sofisticado, Ary tocava para acompanhar filmes mudos no cinema Odeon, participava de orquestras que tocavam no Rio e viajavam o país, compunha para o teatro de revista, participava de concursos de canções de Carnaval -e isso tudo antes de entrar para o rádio, quando se tornou realmente famoso, em meados da década de 1930.

Pelas rádios como Mayrink Veiga e Nacional, Ary, que também era autor de novelas, locutor e comentarista esportivo (quando usava uma gaita pra anunciar gols), lançou incontáveis carreiras nos famosos programas de calouros que promovia.

Exigente, só aceitava que executassem música brasileira e literalmente gongava os maus cantores e músicos.

Todas as biografias passam por Ary Barroso: Raul de Souza, Elza Soares, Luiz Gonzaga, Dolores Duran, Jamelão e centenas de outros começaram ali.

Se já teria o nome nas enciclopédias garantido pelo tanto que fez, o lugar no Olimpo Ary garantiu com a sofisticação de suas canções e suas inovações como compositor. A música acima de tudo em sua história.

Não foi apenas o inventor do samba-exaltação, com "Aquarela do Brasil", ou lançador da tendência nacional de cantar a Bahia, com "No Tabuleiro da Baiana" e "Na Baixa do Sapateiro", mas também sucesso internacional com todas elas.

Nascido mineiro, vivendo no Rio de Janeiro, apaixonado pelo Nordeste, juntou suas influências em animadas crônicas da vida carioca, como em "Camisa Amarela", "Morena Boca de Ouro", "É Luxo Só", e belos sambas como "Na Virada da Montanha", "Pra Machucar meu Coração", "Caco Velho", "Risque" e "Folha Morta".

Todo seu cancioneiro na íntegra é um panorama da nossa música: não há o que tenha sido feito desde então que não tenha sentido a influência de Ary Barroso.

sábado, 7 de agosto de 2010

O samba de um carioca, num teatro do Leblon...

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 07/agosto/2010, no caderno "Opinião"

Redescoberta do sambista
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Você conhece esses sambas. Só não se lembra do autor, certo?

"Você conhece o pedreiro Valdemar?/ Não conhece?/ Pois eu vou lhe apresentar..." ("O Pedreiro Valdemar"). "Louco/ Pelas ruas ele andava/ O coitado chorava/ Transformou-se até num vagabundo..." ("Louco"). "Etelvina, minha nega/ Acertei no milhar/ Ganhei 500 contos/ Não vou mais trabalhar..." ("Acertei no Milhar").

"Aquele mundo de zinco que é Mangueira/ Desperta com o apito do trem..." ("Mundo de Zinco"). "Quem trabalha é quem tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar..." ("O Bonde São Januário"). "Lá vem a mulher que eu gosto/ De braço com o meu amigo/ Ai, meu Deus/ Até parece castigo..." ("A Mulher Que Eu Gosto").

"Hoje não tem ensaio/ Na escola de samba/ O morro está triste, o pandeiro, calado/ Maria da Penha, a porta-bandeira/ Ateou fogo às vestes/ Por causa do namorado..." ("Mãe Solteira"). "Alô, padeiro/ Bom dia/ De amanhã em diante/ Eu vou suspender o pão..." ("Alô, Padeiro"). "Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá/ Vai haver mais um baile no Maracanã..." ("Samba Rubro-negro").

"Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso..." ("Lenço no Pescoço"). "Quero uma mulher/ Que saiba lavar e cozinhar/ E que de manhã cedo/ Me acorde na hora de trabalhar..." ("Emilia"). "Cheguei cansado do trabalho/ Logo a vizinha me chamou/ Oh, seu Oscar/ Tá fazendo meia hora/ Que a sua mulher foi embora..." ("Seu Oscar").

De quem são? De Wilson Batista (1913-1968), com parceiros. Outros 30 sambas poderiam ser citados. O Rio está redescobrindo um de seus maiores sambistas, num show de Rodrigo Alzuguir e Claudia Ventura, dedicado a Wilson Batista, num teatro do Leblon. Já era tempo.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O festival de 1967

Texto Publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 29/julho/2010, no caderno "Ilustrada"

A noite que não terminou
por Ana Paula Souza, Marcus Preto, de São Paulo

Longa refaz história da MPB a partir da grande final do festival de 1967; arquivos e entrevistas revelam bastidores e acertam contas com o passado

É impossível esquecer aquela noite. Ao mesmo tempo, como é difícil recordá-la.

A final do 3º Festival da Música Popular Brasileira, exibida pela Record em 21 de outubro de 1967, ficou congelada na memória do público como um momento único.

Para seus protagonistas, porém, se foi alegria, foi também perturbação. É isso que revela, quatro décadas mais tarde, "Uma Noite em 67", documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, crítico de cinema da Folha.

Por meio dos arquivos da TV Record e de depoimentos de quem estava lá, o filme revê um momento que iria se provar fundamental para a forma que assumiria, a partir dali, a música brasileira.

Há Chico Buarque ("Roda Viva"), Caetano Veloso ("Alegria, Alegria"), Gilberto Gil ("Domingo no Parque") e Roberto Carlos ("Maria, Carnaval e Cinzas") a defender suas canções. E há todos eles a rememorar aquela noite.

"Eu era um fantasma no palco", diz Gil, que caiu de cama, em pânico, horas antes da apresentação.

INTIMIDADE

É desses reencontros profundos com o passado que se constitui o filme. Fica claro que os diretores sabiam que muitos, como Caetano e Gil, tiveram suas falas sobre aquela noite banalizadas, tamanha a quantidade de entrevistas dadas a respeito.

Tinham também em mente que outros, como Chico e Roberto, dificilmente baixariam a guarda. "Era fundamental criar uma cumplicidade. Nós nos preparamos muitos e tentamos ser delicados, respeitosos", diz Calil.

Com isso, arrancaram de cada um momentos de graça, emoção e intimidade, como raras vezes se veem na tela.

"Ao ver o filme, assustei-me mais com suas revelações do que em me ver naquela agonia de não poder mostrar uma música", diz Sergio Ricardo que, impedido pelo público de cantar "Beto Bom de Bola", atirou a viola à plateia. O filme traz à luz a cena inteira, e não apenas a explosão. "Me sinto de alma lavada."

Há também um quê de acerto de contas no que sente Marília Medalha, que cantou, com Edu Lobo, "Ponteio", a grande vencedora da disputa de jovens gigantes.

"Fui espoliada após o festival, não só por pessoas da música, mas também por artistas do universo teatral", diz. "Com o AI-5 [1968], o negócio piorou muito. Num show com Vinicius [de Moraes], fui proibida de cantar "Ponteio". Não descobri se era por causa da música ou por saberem que tinha vínculos com presos políticos", diz.

A entrevista com Medalha, como dezenas de outras — entre elas as de Ferreira Gullar, Chico Anysio, Arnaldo Batista, Martinho da Vila —, ficou fora do corte final do filme. Estarão todos no DVD.

A opção de concentrar-se nas cinco primeiras classificadas faz com que cada canção seja vista de ponta a ponta. Por meio dessas imagens, o espectador não só conhece os maiores artistas da MPB quando jovens, como também visita os primórdios da TV. Ali, o cigarro em cena era tão natural quanto o jovem Chico, com 23 anos, apresentar-se de smoking.

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Chico revela mágoa com fama de "velho"

Em depoimentos para o documentário "Uma Noite em 67", ícones da MPB revivem as marcas deixadas pelo festival

Edu Lobo liga Tropicália a "roupas diferentes"; Gil diz ter sido levado ao movimento por insistência de Caetano

De imediato, o maior impacto do documentário "Uma Noite em 67" está nas imagens de acervo da TV Record — as sequências completas de Chico, Caetano, Gil, Mutantes, Roberto, Sérgio, Edu e Marília defendendo suas canções.

Mas, colocadas em contraponto ao material histórico, são as entrevistas feitas especialmente para o filme — recentes, portanto — as responsáveis pelas grandes revelações sobre os personagens.

"O tropicalismo foi a fase agônica da minha vida musical", conta Gil. Para fazer todos os rompimentos — musicais e até pessoais — necessários à criação do movimento precisou que Caetano o puxasse pelas mãos, ele diz.

Edu Lobo, por sua vez, deixa claro que, 43 anos depois, não mudou muito o modo como entende o tropicalismo. Para ele, toda a revolução liderada por Caetano e Gil a partir daquela noite "girou mais em torno da atitude no palco e das roupas diferentes do que da música".

As tais roupas que Edu cita, usadas sobretudo pelos Mutantes e pelos Beat Boys — as bandas de rock que acompanharam Gil e Caetano em seus números —, foram introduzidas nos festivais a partir daquele ano.

Era praxe, até ali, que artistas se apresentassem na TV vestindo smoking.

Revendo sua aparição naquela noite — de smoking —, Chico Buarque diz que, então, não sabia que aquelas mudanças nos figurinos aconteceriam. Ou melhor: sabia, mas tinha esquecido.

Entre risadas, conta que estava sob efeito de álcool quando Caetano lhe falara, tempos antes da primeira eliminatória, sobre a ideia das roupas. Por isso, não chegou a registrar a informação.
Mas o clima da entrevista sai da anedota quando o autor de "Roda Viva" revela ter se sentido "muito sozinho" naquele período.

Pelo contraste com a estética pop tropicalista, percebeu estar imediatamente identificado como "o velho", "o conservador" — tanto em música quanto em atitude.

"É duro ser chamado de velho, ainda mais quando você tem 23 anos", afirma Chico no filme.
Provocado pelos diretores, Caetano concorda. "Era natural que ele se sentisse assim." Até aquela noite, Chico mantinha o posto de unanimidade nacional e nunca havia encontrado qualquer restrição. Foi a primeira vez.

Na manhã do dia seguinte, nenhum deles seria o mesmo. Nem ele, nem o Brasil. (APS E MP)

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FOCO

Militante revê no filme sua "atuação" como fã
por Nina Lemos, colunista da Folha

"Quando as pessoas vaiavam, estavam vaiando a ditadura, e não as músicas."

A jornalista e militante Rose Nogueira, 65, explica isso enquanto assiste a "Uma Noite em 67" pela primeira vez. Quer dizer, pela segunda, já que ela estava presente no festival onde foi lançado o Tropicalismo, Chico cantou "Roda Viva" e Sérgio Ricardo quebrou um violão.

Ela era uma das moças "de tiara no cabelo, que já vinha com uma peruca" que adoravam Sérgio Ricardo e, claro, achavam Chico Buarque lindo. Rose tinha 20 anos na época. E continua achando Chico "lindo e com uma capacidade de construir poesia como ninguém".

Na tal noite de 67, ela ficou na parte de trás do auditório. E, ao ver o filme, relembra de tudo. "Olha o Sérgio Ricardo pedindo calma. Lembro exatamente disso. E nessa hora em que ele jogou o violão, nossa, fiquei em choque."

Apesar de achar Sérgio Ricardo "um charme", Rose torcia para "Roda Viva". "Está vendo ali? Eu era uma daquelas moças cantando "roda mundo, roda pião"."

A jornalista torcia para Chico em todos os festivais. Mas até hoje se emociona com "Alegria, Alegria".

"Que coisa maravilhosa. Essa hora em que todo mundo grita "eu vou" é emocionante. As pessoas estavam dizendo que não iam desistir. E o Caetano estava lutando com a poesia."

Ela acha que nem Caetano (e nem ninguém no Brasil) fez músicas tão bonitas depois "porque a ditadura veio e acabou com tudo".

As músicas podem não ter melhorado na opinião de Rose. Mas a aparência... "O Caetano era horroroso. Foi melhorando com o tempo. Desculpe, Caetano, mas você hoje é mais bonito."

"O Caetano também foi preso?", pergunta a cozinheira da casa. "Todo mundo foi preso." Até Rose, que um ano depois foi detida e torturada no presídio Tiradentes, onde permaneceu por oito meses. "Depois desse festival tudo mudou."

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CRÍTICA/DOCUMENTÁRIO

Brasil se revela por inteiro nos bastidores do festival
por José Geraldo Couto, colunista da Folha

Diretores captam um país entre as marcas da província e as antenas da metrópole

A última noite do Festival de Música Popular Brasileira de 1967 foi um desses raros momentos que condensam e catalisam as forças vivas de toda uma cultura.

Estavam ali não apenas artistas extraordinários em seu apogeu criativo, mas um caldeirão de elementos díspares numa rara e irrepetível sinergia: o berimbau e a guitarra elétrica, a poesia de vanguarda e o ti-ti-ti das revistas de fofoca, as marcas da província e as antenas da metrópole, o pop e a roça.

Diante desse evento singular, a virtude maior dos diretores Renato Terra e Ricardo Calil foi a de preservar uma certa modéstia e um escrupuloso respeito a todos os protagonistas e coadjuvantes da noite memorável.

O documentário busca transportar o espectador de hoje àquele ambiente sem intervir esteticamente, sem interpor interpretações políticas ou sociológicas, sem, em suma, "perfumar a flor", como diria o poeta João Cabral de Melo Neto.

Todos os depoentes são testemunhas presenciais e todos têm o que dizer. Por vezes ligeiramente contraditórios entre si, esses depoimentos ajudam a iluminar o acontecimento por vários ângulos e a construir os seus sentidos.

PROVÍNCIA X MUNDO

Mas o ponto mais forte do filme são as cenas de bastidores do festival, as entrevistas antes e depois das apresentações, em que transparece, nas perguntas dos repórteres e nas respostas dos artistas Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes, um alegre descompasso entre uma televisão familiar, provinciana, herdeira do rádio, e uma música revolucionária, sintonizada com o mundo.

Tudo ali diz muito sobre uma época: as roupas, os penteados, a gíria, o humor. O país se revela inteiro em cada fotograma.

Lamentou-se já a ausência de uma fala da cantora Marília Medalha, intérprete da vencedora "Ponteio". Outros testemunhos poderiam ser enriquecedores: de Nana Caymmi, Hermeto Pascoal, Rita Lee. A lista seria interminável, e o filme também.

Material não falta para outros documentários, para extras de DVD ou para uma série de TV, que talvez seja o destino mais adequado para esse tipo de documentário mais jornalístico do que propriamente cinematográfico.

Mas o filme "Uma Noite em 67", por sua força compacta e seu caráter de celebração, vai bem, muito bem na tela grande.

UMA NOITE EM 67
DIREÇÃO Ricardo Calil e Renato Terra
ONDE estreia amanhã no Frei Caneca Unibanco Arteplex, Espaço Unibanco Augusta e circuito
CLASSIFICAÇÃO livre
AVALIAÇÃO bom

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O som verdadeiro

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 28/julho/2010, no caderno "Tec"

Áudio 3D é aposta no mercado do som
por Amanda Demetrio, de São Paulo

Empresa brasileira investe em sistema de captação especial, que faz com que o usuário se sinta no meio da cena

Microfone em forma de cabeça permite captação de áudio que dá sensação de imersão mais realista ao ouvinte


Fazer com que o usuário se sinta dentro da cena que está assistindo. Além de ser o trunfo das TVs 3D, a máxima guia engenheiros que fazem pesquisa na área de som. Surge, então, o áudio 3D.

O som que dá a noção tridimensional pode ser de dois tipos: o surround e o binaural. O surround é usado tradicionalmente nas salas de cinema e alguns aparelhos de home theater tentam reproduzi-lo. Mas o binaural parece dar uma noção maior de imersão na cena.

Pensando nisso, a produtora de som Comando S Áudio investiu na área adquirindo o microfone Dummy Head. O aparelho é uma espécie de cabeça de madeira e outros materiais que simulam a caixa craniana com microfones posicionados no local em que ficam os ouvidos. Assim, o som é captado da mesma maneira como ele é recebido pela cabeça humana.

Os microfones acoplados não são quaisquer. Eles foram fabricados de acordo com um estudo da percepção auditiva humana, segundo Marcelo Cyro, engenheiro de som da Comando S Áudio.

A sensação de profundidade do som é criada a partir da interação entre as ondas do som produzidas ao redor. Quando essa interação é captada na mesma posição dos ouvidos, o resultado final de imersão impressiona.

Um porém da tecnologia é que só pode ser conferida em sua totalidade com o uso de fones de ouvido.

EXPERIMENTE

Estudos e experimentos sobre o áudio binaural já ocorrem há alguns anos. Ouça dez áudios gravados com o uso da técnica (lembre-se dos fones de ouvido!) em bit.ly/binaudio.

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ENTENDA

Binaural e surround têm efeitos diversos

Os tipos de áudio 3D (binaural e surround) trazem grandes diferenças.

Geralmente, o surround cria a dimensão do som por meio de caixas localizadas em pontos estratégicos do ambiente. A técnica é usada em salas de cinema e teatros, por exemplo.

Segundo Marcelo Cyro, engenheiro de som da Comando S Áudio, o surround traz a imersão, mas não dá a noção dos 360º ao redor do usuário.

Para dar essa percepção, o som binaural é indicado, mas existe a limitação da obrigatoriedade do uso do fone de ouvido. (AD)

sábado, 17 de julho de 2010

Clarineta brasileira - 2

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 17/julho/2010, no caderno "Opinião"

Tarde demais
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Há anos, passando em frente a uma lavanderia da Lapa, algo me chamou a atenção: uma pilha de 50 ou 60 discos de 78 rpm, no chão, na porta do estabelecimento. Velho fuçador de sebos, abaixei-me para examinar. O primeiro da pilha já era espetacular: um disco da gravadora Sinter, apresentando um choro no lado A e um "bop" no lado B. Intérpretes: "Os melhores de 53".

E quem eram "os melhores de 53"? A lista vinha impressa no selo: entre outros, os saxofonistas Zé Bodega e Cipó; o trompetista Julio Barbosa; o trombonista Nelsinho; o clarinetista Severino Araújo; o pianista Radamés Gnatalli; o baterista Luciano Perrone; e outro saxofonista, Paulo Moura. Em 1953, Paulo Moura tinha 20 anos, mas já podia sentar-se entre aqueles mestres. E o fato de o disco conter um choro e um tema puxado ao jazz indicava as duas direções de sua carreira.

Folheei os outros discos e nenhum me interessou. Perguntei ao homem do balcão se estavam à venda. Respondeu que eram de graça — desde que eu levasse todos. Não os jogara fora há mais tempo porque tivera pena, um deles poderia interessar a alguém. Não discuti. Fiz sinal para um táxi, e o motorista me ajudou no carreto das bolachas para o banco traseiro. Já o dos "Melhores de 53" foi a salvo comigo, preso pelas duas mãos.

E até hoje o tenho. Mas, agora, com um travo de remorso. Certa vez, falei desse disco ao próprio Paulo Moura. Ele disse que já não o tinha havia décadas e lamentava que nunca mais voltaria a escutá-lo. Prometi-lhe uma cópia, mas, com as idas e vindas da vida, o disco sumiu de minhas vistas. Estive com Paulo muitas vezes, e ele, elegantíssimo, nunca me cobrou. Eu é que me sentia em dívida.

Pois, esta semana, reencontrei o disco em casa, numa estante. E me comovi ao ler o título do choro —"Agora É Tarde Demais"—, porque Paulo acabara de morrer.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Clarineta brasileira

Texto publicado no portal "estadao.com.br", em 13 de julho de 2010, 15h41, na seção Notícias/Cultura

Paulo Moura, um dos maiores clarinetistas do Brasil

Músico de 77 anos morreu enquanto realizava tratamento para curar um linfoma (câncer no sistema linfático)

Paulo Moura ganhou um Grammy por 'Pixinguinha: Paulo Moura e os Batutas'


SÃO PAULO - O clarinetista e saxofonista, Paulo Moura, de 77 anos, estava internado desde o último dia 4 na Clínica São Vicente, na Gávea, zona sul do Rio, e realizava tratamento para tentar curar um linfoma (câncer no sistema linfático). Morreu às 23h30 desta segunda-feira e o velório do corpo do músico será realizado no Salão Nobre do Teatro Carlos Gomes, nesta quarta, das 11h às 16h30. Em seguida, será realizada a cremação, no Memorial do Carmo, só com a presença da família.

Ganhador do Grammy por seu disco Pixinguinha: Paulo Moura e os Batutas, tem mais de 40 discos lançados desde 1956. Paulista de São José do Rio Preto, onde nasceu em 15 de julho de 1932, tocava clarinete desde os 9 anos, mas era também trompetista, saxofonista, compositor e arranjador. O músico, considerado um dos maiores instrumentistas da música brasileira, tocou com grandes nomes como Ary Barroso, Tom Jobim, Elis Regina, Milton Nascimento e Raphael Rabello.

Paulo Moura, figura sempre afável nos palcos, palmilhou uma longa estrada, apresentando-se com grandes nomes nacionais e estrangeiros. Foi assim desde seu primeiro registro fonográfico, em 1951, quando logo de cara acompanhou Dalva de Oliveira cantando nada mais, nada menos que Palhaço (Nelson Cavaquinho), até seu último trabalho, AfroBossaNova, ao lado de Armandinho, lançado no ano passado.

É difícil citar todos, mas é impossível não lembrar de trabalhos antológicos, como os álbuns gravados com a pianista Clara Sverner; Paulo Moura Interpreta Radamés Gnattali, de 1959; Confusão Urbana, Suburbana e Rural, de 1976; Mistura e Manda, de 1984; Dois Irmãos, de 1992, com Raphael Rabello; Wagner Tiso e Paulo Moura, de 1996; K-Ximblues, de 2001, em homenagem à obra do genial e pouco lembrado saxofonista e compositor K-Ximbinho; Dois Panos Pra Manga, de 2006, com João Donato; e El Negro del Branco, de 2004, com Yamandu Costa.

Amigos e familiares do músico disseram que ele tocou seu clarinete pela última vez no sábado passado, 10, internado no hospital, onde executou Doce de Coco (Dulce de Coco), de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho.

A TV Cultura reprisa hoje, às 23 horas, programa gravado em 2006, com Paulo Moura e João Donato, em bate-papo sobre música, amigos e lugares que frequentavam.
(Colaborou Lucas Nobile)

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Leia a repercussão da morte de Paulo Moura:

Nivaldo Ornelas, saxofonista e flautista - "Ele não me deu aula de música, mas de vida. Tem músicos admirados só do palco pra fora, mas ele era pra dentro também. Gerações ficaram órfãs com a morte dele."

Leo Gandelman, saxofonista - "Doente, Paulo se preocupava com os outros, não queria que sofressem por ele, tentava minimizar. Ninguém podia esperar que estivesse com uma bomba-relógio dessa."

Mauro Senise, saxofonista, ex-aluno - "Sofri uma paulada. Nos shows que fizemos recentemente, ele parecia um adolescente. Paulo foi meu único professor. Era um escultor de melodias, me iniciou na improvisação."

Juca Ferreira, Ministro da Cultura - "Era um instrumentista e solista primoroso, além de compositor, arranjador e regente, conhecido e admirado no mundo todo. Uma figura humana singular."

Marcello Gonçalves, violonista - "Estava com o Paulo no sábado, na clínica São Vicente. Ele teve coragem de mostrar as ideias dele, sempre novas. Deu direção a muitos músicos da minha geração."

Yamandu Costa, violonista - "Nosso último show juntos foi no Equador, há 8 meses. Ele era muito divertido, simpático e malandro ao mesmo tempo. Tinha muita vontade de produzir coisas novas sempre."

terça-feira, 6 de julho de 2010

MPB: "exilada" e "undergound" no Brasil...

Texto publicado no portal "estadao.com.br" em 03/julho/2010 (16h00), na página de Notícias/Suplementos/Cultura

Sobe o som

Se você se pergunta por onde andam os grandes nomes da nossa música que mal dão as caras na TV aberta, mude para canais como TV Brasil, Canal Brasil e Globo News e Record News. É lá que os bambas da MPB são entrevistados por quem entende do assunto, lançam seus trabalhos e, claro, cantam, em programas que reinventam a maneira de apresentar música.

"A MPB está exilada no seu próprio país", dispara o crítico Tárik de Souza, que apresenta o MPBambas no Canal Brasil. O programa mostra o lado musical menos conhecido de gente que foi ou ainda é bastante conhecida. Na próxima quinta-feira, o humorista Chico Anysio relembra seus tempos de compositor, quando foi parceiro de gente como Altamiro Carrilho e Luiz Gonzaga. "Ele foi o primeiro a usar o termo ‘bossa nova’ numa música. Foi em 1955, com Cinema Bossa Nova", conta Tárik, dando uma palinha do recheio do programa. "A graça é mostrar o que essas pessoas, algumas até esquecidas, têm uma dimensão muito maior do que se possa imaginar."

Por que um programa como o MPBambas não está na TV aberta, acessível ao grande público, não é um grande mistério. A desculpa é que iniciativas desse tipo não atraem grande audiência. De dentro de uma espécie de oásis musical na grade da Globo, o Som Brasil, o diretor Luiz Gleiser prefere não questionar os motivos que levam o seu programa ser exibido à 1h40 da madrugada, uma sexta-feira por mês.

"Neste horário, posso experimentar à vontade, sem precisar dar explicações. A partir do momento que você vai para o horário nobre, o cenário muda", diz ele, que tem levado à maior emissora do País gente que nunca havia aparecido na TV. Com todos os poréns, a audiência do Som Brasil é bastante expressiva para o horário: marca em média 6 pontos.

Com grandes encontros musicais raramente vistos na TV aberta, o Altas Horas, pilotado por Serginho Groisman no mesmo canal e também na madrugada, endossa a receita, com boa audiência.

Plataforma. Qualquer telespectador com um pouco de memória pode perceber que o espaço destinado à música na TV não chega perto do que havia nos tempos dos grandes festivais ou de programas célebres como o Fino da Bossa, que Elis Regina e Jair Rodrigues comandaram nos anos 60 na Record. "É realmente incrível um país do tamanho do Brasil, com uma diversidade cultural enorme e que tem uma das melhores músicas do mundo, tenha tão pouco espaço para programas musicais", anota o sambista Diogo Nogueira, o mais badalado da nova geração - e olhe que aparece com frequência em auditórios como o de Faustão.

No ano passado, Diogo entrou para o time dos cantores e compositores que apresentam programas sobre música. O dele, o Samba na Gamboa, na TV Brasil, é um animado bate-papo em clima de botequim, por onde já passou gente como Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Jorge Benjor e João Bosco. No palco, entrevista e canta ao lado dos artistas. Com isso, nessas mais de 70 entrevistas, já gravou mais de 400 músicas - um acervo e tanto do melhor do nosso samba.

Para o ex-Titã Charles Gavin, que há quatro temporadas apresenta O Som do Vinil, no Canal Brasil - um dos que mais têm investido na música -, praticamente não há mais espaço para o que ele chama de "plataforma de lançamento". "É resultado destes tempos que estamos vivendo, em que a música sofre concorrência de outras formas de entretenimento, como videogames e até fofocas. Não sei aonde isso vai levar", lamenta. "Na condição de música e de quem se preocupa com a música, sou pessimista porque não sei como retomar os programas importantes de outros tempos, como o Cassino do Chacrinha e o Globo de Ouro. Desses, o único que sobreviveu é o Raul Gil e, justiça seja feita, é um bom espaço."

O declínio das gravadoras e a divulgação de conteúdo pela internet dão a falsa ideia de que qualquer um pode apresentar seu trabalho para o mundo. Mas mesmo com YouTube e MySpace a mil, a TV ainda é o mais poderoso veículo de divulgação. "A TV não vai perder nunca o seu lugar, o seu destaque", acredita Diogo. " Edu Lobo e Nara Leão se tornaram pop star quando foram lançados pela televisão. Hoje, gente como o Ginga, por exemplo, é consagrado nos subterrâneos. A MPB virou underground", encerra Tárik.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Saudade de Rosa Passos...

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 01/julho/2010, no caderno "Opinião"

Yo-Yo Ma

por Kenneth Maxwell

Yo-Yo Ma concluiu recentemente uma visita ao Brasil, com concertos de sucesso na Sala São Paulo e no restaurado Teatro Municipal do Rio.

Nascido em Paris, filho de pais chineses, sua família se transferiu para Nova York quando o menino tinha cinco anos. Criança prodígio, Yo-Yo Ma estudou na escola Juilliard de música. Tendo se formado na Universidade Harvard, hoje vive em Cambridge, Massachusetts, com a professora de alemão Jill Horner e os dois filhos do casal. É um dos mais versáteis e talentosos músicos do mundo.

Com seu violoncelo de 1733, construído pelo veneziano Domenico Montagnana, ou com seu Davydoff Stradivarius de 1712, Yo-Yo Ma se tornou um instrumentista de amplo alcance, igualmente confortável na execução de clássicos do barroco, Gabriel Fauré, Rachmaninoff e George Gershwin.

Em suas apresentações brasileiras, foi acompanhado pela pianista Kathryn Stott. Ma gravou 80 DVDs e ganhou 16 prêmios Grammy.

Recentemente, o professor Henry Louis Gates Jr., diretor do Centro de Estudos Afro-americanos de Harvard, destacou Yo-Yo Ma em sua série "Faces of America", para a rede de TV pública PBS.

O professor Gates traçou as origens da família de Yo-Yo Ma na China e descobriu que, durante a Revolução Cultural, um parente do violoncelista havia escondido uma genealogia da família, salvando-a da destruição. A árvore genealógica mostra 18 gerações da família Ma, remontando a 1217.

Yo-Yo Ma é famoso por seu trabalho com o projeto "Silk Road" [Estrada da Seda], que celebra a grande rota comercial pela qual a seda chinesa atravessava a Ásia para chegar ao Oriente Médio e à Europa, e usa essa ideia como metáfora moderna para apresentações multiculturais e multidisciplinares que integram música, narrativas, imagens e animação.

O violoncelista tem se voltado cada vez mais às Américas em busca de inspiração. Entre seus mais bem-sucedidos trabalhos recentes, em palco e em disco, está "The Soul of Tango", gravação de peças do argentino Astor Piazzola.

Desde 2004, a música popular brasileira também tem encontrado espaço em seu repertório mundial, que inclui o álbum "Obrigado Brazil", premiado com o Grammy, no qual colabora com a violonista e cantora Rosa Passos, que atualizou de maneira maravilhosa a música de João Gilberto e Antonio Carlos Jobim.

Com sua abertura a novos sons e estilos, sua excelência pessoal, seu sólido treinamento clássico e sua evidente alegria na descoberta do que há de melhor em tradições ecléticas e diversificadas, Yo-Yo Ma é um verdadeiro "cosmopolita", no melhor sentido da palavra.
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KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Tradução de Paulo Migliacci.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Som pior...

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 24/maio/2010, no caderno "The New York Times"

Na era da música móvel, a qualidade do som decai
por Joseph Plambeck

Um iPod não é para audiófilos, mas seus fãs não se importam

Na madura idade de 28 anos, Jon Zimmer é uma espécie de velho cheio de manias. Isto é, ele é obcecado pela qualidade do som de sua música.

Um ex-engenheiro de áudio que hoje trabalha como consultor para a Stereo Exchange, uma requintada loja de som em Manhattan, Zimmer se ilumina quando fala sobre alta-fidelidade e alto-falantes de US$ 10 mil.

Mas os iPods e os arquivos comprimidos em computador -os veículos mais populares para o som hoje- estão "sugando a vida da música", ele diz.

A última década trouxe uma explosão em avanços tecnológicos surpreendentes — incluindo aperfeiçoamentos no som surround, a televisão de alta definição e o 3D —, que transformaram a experiência dos apreciadores. Há avanços na qualidade da mídia em todo lugar, exceto na música.

De muitas maneiras, a qualidade do que as pessoas escutam deu um passo atrás. Para muitos ouvidos experientes, os arquivos de música comprimidos produzem um som mais quebradiço, metálico e fino do que a música dos CDs e dos LPs de vinil.

De certo modo, a indústria da música foi vítima de seu próprio sucesso tecnológico: a facilidade de carregar canções em um computador ou um iPod fez que uma geração de fãs trocasse alegremente a fidelidade pela portabilidade e a conveniência. Esse é o obstáculo que a indústria enfrenta em qualquer esforço para criar maneiras de ouvir música com maior qualidade -e mais cara.

"Há muitas formas de fazer" um som melhor, disse Zimmer. "Mas muita gente nem sequer sabe que poderia se interessar."

Veja Thomas Pinales, um jovem de 22 anos de Nova York e fã de alguns dos artistas mais populares de hoje, como Lady Gaga, Jay-Z e Lil Wayne. Ele escuta música em seu iPod e, embora não se importe em fazer um avanço qualitativo, não está convencido de que valeria o preço.

"Meus ouvidos não são finamente sintonizados", ele disse. "Não sei se poderia realmente perceber a diferença."

A mudança é tanto cultural quanto tecnológica. Durante décadas, aproximadamente a partir dos anos 1950, um sistema estereofônico de ponta era algo para se exibir, mais ou menos como uma nova televisão de tela plana hoje.

Atualmente, a música é muitas vezes transportada de um lugar para outro, tocada ao fundo enquanto o consumidor faz outra coisa, como exercitar-se, transitar pela cidade ou cozinhar.

Na verdade, entre os ouvintes mais jovens a baixa qualidade do som pode até ser preferível.

Jonathan Berger, professor de música na Universidade Stanford, disse que fez uma pesquisa informal entre seus alunos e descobriu que um número crescente preferia o som de arquivos com menos dados às gravações de alta-fidelidade.

"Eu acho que os ouvidos humanos são volúveis. O que é considerado um som bom ou ruim muda com o tempo", disse Berger. "A anormalidade pode se tornar uma atração."

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Música popular escada abaixo...

MÚSICA
Lista das mais tocadas consagra a canção simplória

Nova MPB e grupos jovens de rock perdem lugar para sertanejo moderno e pop digerível no levantamento das músicas mais executadas nas rádios brasileiras

por Thales de Menezes, da Reportagem Local

Depois de uma rápida olhada na lista das músicas mais executadas nas rádios do país, a constatação é inevitável: o gosto popular se afastou completamente do que a MPB produz de mais interessante e sofisticado.

Uma relação que teve em outras épocas "Olhos nos Olhos", de Chico Buarque, ou "Bem que se Quis", de Marisa Monte, fica hoje limitada a canções comportadas, anódinas, simplórias.

Trata-se da lista considerada a mais confiável no gênero, feita pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), que recolhe direitos autorais no Brasil. Engloba rádios AM e FM e abrange de janeiro a dezembro de 2009.

Entre as dez mais bem colocadas há apenas duas músicas de artistas estrangeiros, uma delas a campeã, "Halo", de Beyoncé. Com fenômeno de massa não se discute.

Outros 12 países também tiveram a música no topo das paradas. Pop eficientíssimo, de receita comprovada, feito para conquistar territórios sem se preocupar com as "vítimas".

A outra gringa da lista também segue uma cartilha redondinha: é "I'm Yours", de Jason Mraz, a bola da vez do surf pop, o estilo calminho e "pra cima" liderado por Jack Johnson.

Nas canções nativas, o sertanejo moderno predomina. Victor e Leo, puxados pela boa-pinta e por uma música na trilha de novela no ano anterior, emplacaram duas: a romântica "Borboletas" e a louvação à vida rural "Deus e Eu no Sertão".

Cheios de boas intenções, mas versos como "Foi tudo tão bonito, mas voou pro infinito/ Parecido com borboletas num jardim" entregam a escassez de recursos líricos.

Já João Bosco e Vinicius (nomes que involuntariamente evocam uma fase mais brilhante da MPB) são poeticamente tão "simples" que até uma vírgula falta no título da canção "Chora Me Chama".

Não se pode dizer que Nando Reis e Samuel Rosa não tenham os predicados para grandes composições. "Sutilmente", do Skank, é uma reserva de qualidade na lista.

Mas é triste que tanto ela como "Vem Andar Comigo", que é mais do mesmo Jota Quest, sinalizem um pop rock comportado, digerível. Onde estão as músicas dos grupos mais endeusados pela molecada?

NX Zero e Fresno fecharam o ano com milhares de fã-clubes, mas eles definitivamente não estão sentados esperando o rádio tocar. Devem estar espertos, baixando e trocando o que querem ouvir, na hora que bem entendem.

A chamada nova MPB, de Vanessas, Céus e Mallus, ganha comentários na mídia, mas nem sonha com um "top 10" assim. A lista é completada com gospel, pop rasteiro e trilha de luau que alguém pode até confundir com reggae de verdade.

A presença de Regis Danese se explica pela fé e só mesmo com muita fé para crer que "Faz um Milagre em Mim" mereça todo esse sucesso.

Já a bonitinha cantora pop Ornella de Santis teve ajuda do cantor Belo (a única e modestíssima menção ao samba) para transformar "Agenda" num hit "chiclete", à Latino.

E, para encerrar de forma sintomática este comentário, sobrou "Versos Simples", do Chimarruts, cujo título sintetiza e condena o atual estágio de nossa parada de sucessos.

sábado, 15 de maio de 2010

R. I. P. beautiful Lena Horne

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 15/maio/2010, na seção "Opinião"

Beleza negra
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Lena Horne, que morreu nesta semana aos 92 anos, em Nova York, era uma das últimas cantoras americanas da era clássica — ou seja, das que se vestiam na modista, não no brechó. Era negra, belíssima e sua trajetória diz muito da sociedade americana de seu tempo.

Os obituários falaram de como suas sequências nos musicais da MGM, nos anos 40, eram montadas de forma a poderem ser cortadas sem prejuízo do enredo pelos exibidores racistas. Para isso, bastava que não fizessem parte do enredo. Lena fazia sempre uma cantora de boate, apresentando-se para o casalzinho de protagonistas.

Não que os racistas não gostassem de artistas negros — desde que eles fossem cômicos ou caricaturais. E não havia nada de cômico ou caricatural em Lena Horne. Ao contrário, sua beleza os assustava, além de revelar a baranguice de suas patroas — quantos teriam em casa uma mulher como ela?

Com tudo isso, não acho que Lena tenha sido vítima de racismo ao ser preterida para o papel de Julie na refilmagem de "Show Boat" ("O Barco das Ilusões", 1951). Para Edna Ferber, autora da história, Julie era uma mulher ostensivamente branca que, por ter "uma gota" de sangue negro, era considerada negra. Lena tinha a pele muito clara para o mundo negro, mas seria sempre negra para o mundo branco. Ava Gardner, que ganhou o papel, teria sido uma Julie perfeita se não a tivessem maquiado para escurecê-la, contrariando Edna.

Mais grave é saber que a loura Betty Grable, musa dos soldados americanos, não podia ter sua foto colada no armário ou na mochila dos soldados negros na 2ª Guerra — ou seja, nem em pensamento eles poderiam desejar uma mulher branca. Por sorte, esses soldados não precisavam de Betty Grable. Tinham a foto de Lena Horne, muito melhor, para os inspirar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Onde estão os novos pianistas?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 12/maio/2010, na seção "Opinião"

País sem pianos
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Notícia desta semana alerta para um fato preocupante: a queda a quase zero no interesse pelo piano entre os jovens brasileiros. Em vários Estados, concursos importantes, destinados a formar futuros solistas, deparam com um número insignificante de inscrições. E não se trata de desinteresse pela música -porque outros instrumentos, talvez mais imediatos, continuam prestigiados.

O Brasil e o piano têm uma bela história juntos. Os dois conquistaram seu espaço quase ao mesmo tempo no século 19: o piano, sobre o cravo; o Brasil, sobre a sua condição de colônia. O próprio príncipe dom Pedro era pianista. Em pouco tempo, o piano tornou-se um móvel obrigatório nas nossas casas, tanto quanto o toucador e a escarradeira. Permitiu também que muitos escravos, que o aprenderam, levassem vida melhor.

Desde então, num país em que o violão sempre pareceu onipresente, a grande música, do ponto de vista do compositor, passou decisivamente pelo piano. É só citar Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Freire Junior, Zequinha de Abreu, Sinhô, Ary Barroso, Custodio Mesquita, Alcyr Pires Vermelho, Vadico, Johnny Alf, Tom Jobim, Marcos Valle, Francis Hime, Edu Lobo, João Donato. E os arranjadores, os solistas, os acompanhadores?

Um motivo para o declínio do piano nas casas brasileiras pode ter sido a verticalização das cidades -não é fácil transportar um piano para o 10º andar. Outro pode estar no fato de que leva mais tempo para formar um pianista do que um médico ou engenheiro, sem nenhuma garantia de que um dia ele possa viver das pretinhas. Mas todo estudante de piano precisa chegar a profissional? A educação musical, por si, não deveria ser suficiente?

Tom Jobim me disse que o piano fez o homem acabar de descer da árvore. Mas talvez a árvore seja o nosso destino.

sábado, 27 de março de 2010

Vozes condenadas?

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 27/março/2010, na seção "Opinião"

Deixadas no passado
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Elas podem ser vistas, dignas e lindonas, na plateia de colegas mais jovens, e você imagina que estão ali na condição de fãs desprendidas das novas gerações. Mas não é sempre assim. Mais provável que estejam tentando atrair a atenção de um produtor ou de um agente que lhes dê trabalho —o primeiro, talvez, em seis meses ou um ano de silêncio profissional.

No Rio e em São Paulo, dezenas de grandes cantoras do passado vivem hoje os piores momentos de suas carreiras, esquecidas pela mídia e ignoradas pelos produtores. As mais felizes, que conservaram um apartamentinho próprio, estão livres do aluguel, mas o condomínio já tem um ou dois anos de atraso. Muitas se seguram com uma aposentadoria que mal lhes paga a comida e os remédios. O plano de saúde, vitimado pela inadimplência, há muito que foi para o espaço. Algumas estão vivendo de cestas básicas doadas por amigos.

Não se trata de senhoras que, pela idade, já estariam, se quisessem, no Retiro dos Artistas, mas de mulheres vaidosas, ainda com a voz inteira, em perfeitas condições de trabalhar. Acontece de uma delas conseguir, de surpresa, uma noite num clube ou teatro mais privilegiado e não ter dinheiro para ajeitar o cabelo ou recauchutar o velho vestido.

Seus agentes alegam que esse tipo de oportunidade —aparições relâmpago em casas noturnas— é cada vez mais raro. As grandes casas só querem saber de "projetos" ambiciosos, para interessar os suspeitos de sempre, os patrocinadores. E estes, visando imprensa ou retorno, só reconhecem os nomes de hoje, e não se impressionam se Fulana ou Beltrana foi uma estrela, digamos, da bossa nova.

Sim, elas não são contemporâneas de Chiquinha Gonzaga, mas cantoras que, até outro dia, estavam construindo o futuro da música popular. O futuro chegou, e elas não têm vez nele.

domingo, 14 de março de 2010

“Pai da Bossa Nova”


Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 14/março/2010, no caderno "The New York Times"

Johnny Alf, 80, um "pai da bossa nova"
por Larry Rohter, "The New York Times"
Tradução: Eloise De Vylder

Embora não fosse muito conhecido fora do Brasil e tenha desfrutado de uma popularidade intermitente em sua terra natal, Alf é muito admirado por músicos e musicólogos brasileiros




O influente compositor, pianista e cantor brasileiro Johnny Alf, cuja música delicada foi precursora da bossa nova, morreu em 4 de março em Santo André, no ABC paulista. Ele tinha 80 anos e morava em São Paulo. A causa da morte foi um câncer na próstata, disse seu agente, Nelson Valência.

Embora não fosse muito conhecido fora do Brasil e tenha desfrutado de uma popularidade intermitente em sua terra natal, Alf, nascido Alfredo José da Silva, é bastante admirado por músicos e musicólogos brasileiros. O escritor Ruy Castro, autor de vários livros de referência sobre a música popular brasileira, chamou-o de “o verdadeiro pai da bossa nova”.

Alf foi contemporâneo de Antonio Carlos Jobim, João Gilberto e outros que transformaram a bossa nova num fenômeno mundial, mas ele começou sua carreira mais cedo e passou meados da década de 50 tocando no chamado Beco das Garrafas, uma rua em Copacabana cheia de bares e clubes noturnos. Seus fãs mais jovens entravam nesses bares para ouvi-lo tocar e estudar sua técnica e estilo cheio de improvisação.

“Foi com ele que aprendi todas as harmonias modernas que a música brasileira começou a usar na bossa nova, no samba-jazz e nas músicas instrumentais”, disse o pianista e arranjador João Donato na sexta-feira (12). O violonista e compositor Carlos Lyra acrescenta: “Ele abriu as portas para nós com seu jeito de tocar piano, com sua influência do jazz. Quando minha geração chegou, ele já havia plantado as sementes.”

Alfredo José da Silva nasceu no bairro de Vila Isabel no Rio de Janeiro, um reduto do samba, em 19 de maio de 1929. Seu pai era soldado do Exército, sua mãe dona-de-casa. Ele começou a estudar piano aos 9 anos, concentrando-se num repertório clássico. Mas sua paixão por filmes americanos o levou para longe dos clássicos e aproximou-o do jazz, uma mudança que ele descreveu mais tarde em uma divertida composição chamada “Seu Chopin, desculpe”.

Alf começou a tocar profissionalmente aos 14 anos, quando assumiu seu nome de palco americanizado. Ele ajudou a fundar um fã-clube de Frank Sinatra no Rio e também admirava George Gerswhin e Cole Porter. Mas sua maior influência, como pianista e cantor, foi provavelmente Nat King Cole, cujo vocal suave, o toque sensível e os acordes sofisticados combinavam bem com o jeito quieto, e até mesmo tímido, de Alf.

“Sempre toquei no meu estilo próprio”, disse Alf numa entrevista no ano passado para o jornal Folha de S. Paulo. “Tive a ideia de misturar a música brasileira com o jazz. Tento misturar tudo para atingir um resultado agradável.”

Em seu melhor, a música de Alf tinha um jeito leve e aéreo que expressava o otimismo e a alegria de viver que os brasileiros consideram uma das características nacionais. Isso se reflete não só no título de sua música mais conhecida, “Eu e a Brisa”, mas também em sucessos como “Ilusão à Toa” e “Céu e Mar”, assim como em “O Tempo e o Vento” e “Rapaz de Bem”, um single de 78 rpm lançado em 1955 e agora visto por muitos como os primeiros registros gravados da bossa nova.

Mas, cansado da vida agitada do Rio, mudou-se para São Paulo em meados dos anos 60 e aceitou um emprego de professor num conservatório. Depois disso, embora continuasse a se apresentar regularmente, ele passou a gravar apenas esporadicamente. Em 1990, ele gravou “Olhos Negros”, um CD amplamente elogiado, em que predominam duetos com uma segunda geração de admiradores, incluindo Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Gal Costa.

De acordo com reportagens da imprensa brasileira, Alf não deixou herdeiros imediatos.
“Pelo menos não serei completamente esquecido”, disse ele no ano passado. “Minha música sempre foi considerada difícil. As gravadoras percebiam o valor da minha música, mas ela nunca teve o apelo comercial que elas gostariam.”

sábado, 6 de março de 2010

R.I.P. Johnny Alf

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 6/março/2010, caderno "Opinião"

Rapaz de bem
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Em dezembro, Leny Andrade e Alayde Costa fizeram um show em homenagem a Johnny Alf no teatro Ginástico. Foram duas horas de amor, em que Leny e Alayde falaram de Johnny e cantaram seus clássicos e canções obscuras. Todos sabiam que sua saúde estava por um fio, mas não se pronunciou a palavra morte.

Não era necessário. Ali se tratava de celebrar a música, a beleza, o talento, a vida. Fazia-se por Johnny Alf o que deveria ter sido feito com frequência e em todos os anos: promover recitais, concertos e canjas com seus sambas — "Ilusão à Toa", "Rapaz de Bem", "Céu e Mar", "O Que é Amar", "Disa", "Fim de Semana em Eldorado", "Nós", "Eu e a Brisa" e muitos outros.

Mas não aconteceu assim, e Johnny morreu sem a consagração que bafejou em vida vários de seus contemporâneos, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Baden Powell. Duas opiniões meio correntes acham que isso se deu por "racismo" (Johnny era negro) ou por Johnny ter trocado o Rio por São Paulo nos anos 50, antes da explosão da bossa nova (que ele ajudara a construir).

Será? Dolores Duran, o saxofonista Paulo Moura, Jorge Ben, Gilberto Gil e o próprio Baden não eram arianos, e isso não os impediu de vencer na bossa nova. E quem também saiu do Rio antes de o movimento explodir foi João Donato. Que se mudou até para mais longe: Los Angeles, onde ficou 13 anos. Pois Donato voltou em 1972, reassumiu sua cátedra e hoje é maior do que nunca.

Johnny não se sentia com uma cátedra a retomar. Por modéstia, dispensava tudo o que lhe ofereciam. Nas entrevistas, falava mais de suas admirações (Tom, entre elas) do que de si próprio. Não pedia nada para si. Era completo com sua arte. Quem fracassou fomos nós, que não soubemos dizer ao mundo o artista que tínhamos à mão.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Sampa desencantada por seus compositores

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 28/fevereiro/2010, na "Revista da Folha"

Desencantada da vida

A São Paulo tragicômica de Adoniran e Vanzolini reaparece nas canções de uma nova geração de músicos

Com humor e sarcasmo, nova geração de compositores ecoa os clássicos de Adoniran Barbosa e retrata uma cidade melancólica

Cidade Cantada
por Gustavo Fiorati

Para cantar São Paulo tem que ter o quê? Samba no pé e melancolia de sobra? Língua afiada e nenhuma condescendência? Se os jovens compositores que povoam os bares da Vila Madalena e da rua Augusta não admirassem tanto Adoniran Barbosa, Itamar Assumpção e Caetano Veloso, a cidade encontraria alguma redenção. Quem sabe?

Mas não. Em suas canções, eles continuam reproduzindo o mesmo sentimento de desajuste que permeia clássicos como "Trem das Onze" e "Sampa".

A distância entre os bairros ainda reverbera aquele "se eu perder esse trem..." de Adoniran, que nasceu há exatos cem anos e morreu em 1982. E a ausência de "coisas belas" (o que, tomara, diz respeito aos aspectos geográficos) permanece como qualidade irredutível, desde que falaram de certa "deselegância".

Um exemplo de alusão recente à metrópole está nos versos de "As Papelarias do Itaim", do baixista e pianista Manu Maltez, 32: "...foi lá que eu cresci/ Contra minha vontade".

Ok, vai falar assim de Copacabana...

Outro exemplo, que a Revista selecionou a partir do trabalho de cinco jovens compositores: "Feche os olhos/ Os ouvidos/ As narinas/ Todos os sentidos/ Estação final/ Diga adeus à sua vida". É o que canta o grupo Odegrau em "Estação da Luz". A letra foi escrita por Peri Pane, nome artístico de Marcos Dávila, 34, músico e jornalista colaborador da Folha.

"cheguei no paraíso no último vagão meia-noite, pensei: aonde vai o trem quando fecha a estação?onde vai alguém se não pode voltar pra quem lhe deixou na porta instantânea do metrô?" — O Último Vagão (Peri Pane, Rafael Martinez e João Zilio)

E, para fechar em três citações: "Pra chegar no centro, eu gasto mais de 15 paus/ Perua, trem, ônibus intermunicipal", diz "Depressão Periférica", música de Kiko Dinucci. Nada de "coisa mais linda", muito menos "cheia de graça".

Kiko, 31, acha particularmente difícil fazer alguma exaltação a São Paulo. "Aqui, as coisas se modificam muito rapidamente. Posso escrever sobre um lugar que, daqui a alguns anos, não vai existir mais", diz, passando em frente a uma demolição incompleta no Bexiga, de onde sobrou em pé a fachada dos anos 1920, solta no terreno vazio.

"as papelarias do itaim não vendem papel são açougues são boates agências de publicidade são escolas que secaram"As Papelarias do Itaim (Manu Maltez)

Foi daquela região que o compositor extraiu outra musa improvável. Uma de suas canções prediletas é "Garoa Seca", que cita o rio Saracura, hoje canalizado. "Resolvi falar de alguma coisa que desapareceu. Foi o único jeito de exaltar um patrimônio natural da cidade", explica.

Outra música dele retoma a tradição da crônica, já que, nas canções de hoje, "não se conta mais tanta história como antigamente". Em "Depressão Periférica", um rapaz é abandonado por sua amada porque a casa dela é distante da dele. A menina prefere ficar com alguém da Vila Madalena. Segundo o compositor, é uma referência ao samba macarrônico de Adoniran, pegando carona na "tristeza de uma cidade propensa à solidão".

Mais uma vez, a distância é um obstáculo que tece seus caminhos tortuosos. O sambista Rodrigo Campos, 32, -que, há seis anos, trocou São Mateus por Pinheiros- conhece bem a dificuldade de morar longe. Na época, para voltar do centro, Rodrigo enfrentava uma viagem de metrô e mais uma hora de ônibus. Ainda assim, ele escreveu em uma de suas composições que "São Mateus não é um lugar assim tão longe".

"encontrou jadir durante o ritual perguntou da cris e da maria inês, crislaine casou e a maria inês se formou em nutrição"Rua Três (Rodrigo Campos)

Sua canção "Rua Três" traz a atmosfera de um lugar duplamente distante: São Mateus não só pende num extremo da zona leste, mas também fica cada vez mais apagada na memória de um personagem que passou a infância ali e está voltando para um funeral.

A letra é fictícia até certo ponto. Rodrigo nunca precisou voltar a São Mateus para chorar seus mortos. Mas, num rolê pela região, aponta um bairro transformado, em que algo se perdeu: "estes prédios não existiam, tudo isto era um terreno baldio, esta rua era de terra".

Sonhos e delírios

Menos inclinado à crônica, Manu Maltez pincela paisagens com levada surrealista, como fez em "Turvo", que tematiza o Tietê. O músico, que vive em Perdizes desde criança, retratou um pesadelo recorrente, em que está mergulhado nas águas sujas do rio. "A sensação é de que algo vai me contaminar", diz.

A cidade, para ele, é repleta de imagens que sugerem a aproximação com a morte. Coisas em estado de putrefação abundam em suas andanças pelas ruas da metrópole. "Apesar de falar de coisas mortas, acho que tem vida nisso tudo. Como uma reação da natureza sobre a cidade."

Manu ainda cita como fonte de inspiração mistérios relativos à enormidade de São Paulo. "Não consigo entender para onde seguem essas tubulações e encanamentos. Tudo aqui é tão grande que foge da nossa compreensão."

A pedido da Revista, o compositor Arrigo Barnabé ouviu as músicas dos compositores citados acima. Para ele, há uma identidade poética por trás dos jovens autores que já aparecia nos músicos de gerações anteriores: a referência à solidão. "Pense nas lanchonetes. Elas foram criadas para que você possa comer sozinho", diz.

Sobre os discos, Arrigo comenta as obras de Rodrigo Campos, que considerou "muito interessante como cronista", e a do grupo Odegrau, que, para ele, não discorre propriamente sobre São Paulo. "Essa banda fala mais de estados da alma, utilizando a cidade como metáfora. São formas distintas de retratar a metrópole."

O autor de "Clara Crocodilo" lembra que, mesmo se considerados os músicos de sua geração -conhecida como vanguarda paulista-, já era possível separar as abordagens: a dos que tinham a cidade como berço (Premê e Rumo) e a daqueles que vinham de fora, como o próprio Arrigo e Itamar Assumpção. "Para nós, a realidade da cidade era mais dura, nossas famílias não estavam aqui, o que se reflete nas letras das nossas músicas."

"de mim a malvada não tem pena me trocou por um da vila madalena não faz mal, domingo eu ponho a minha roupa de sair pra arranjar uma pequena que more perto daqui"Depressão Periférica (Kiko Dumont)

O olhar de estrangeiros desponta como um capítulo à parte, e os entrevistados apontam o baiano Tom Zé como protagonista deste "fado". Entre todas as canções, "São, São Paulo" surge como ícone da celebração ao caos: "São oito milhões de habitantes/ De todo canto em ação/ Que se agridem cortesmente/ Morrendo a todo vapor".

"puta, meu, tipo, nossa, cara então, puta, meu, tipo, nossa, cara, então puta, meu, tipo assim, tipo, puta, meu tipo, cara, cola na balada de sexta, mó legal"Balada do Paulista (Lulina)

Da nova geração, a pernambucana Lulina é quem arrisca algum sarcasmo. Sua "Balada do Paulista" é uma crônica debochada, que embarca no uso desmedido de gírias. Faz o retrato de um tipo específico de jovem paulistano, que fuma baseado, se joga em baladas e se dedica quase exclusivamente à curtição.

A compositora conta que o refrão "Puta, meu, tipo, nossa, cara, então" foi inspirado em um amigo de São Paulo que proferiu, sem perceber, uma série de interjeições do tipo. "Eu falei: 'Peraí, cara, repete o que você falou'." E mais uma vez, uma São Paulo poética (para não dizer patética) virou canção.

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A prima feia
por Marcus Preto

Autoexaltação nunca foi o forte desta cidade. Não deve ser à toa que "Sampa", a crônica de Caetano Veloso sobre o impacto (negativo, quase sempre) que São Paulo produz em "quem vem de outro sonho feliz de cidade", acabou adotada como "hino municipal" pelos próprios paulistanos.

Gostamos dessa carapuça. Agimos como aquela prima feiosa que, sabendo que não vai ser "a gostosa" da família, investe em ser "a engraçada" ou "a inteligente". Assim, fica fácil fingir que não sentimos falta de ver ostentadas nossas garotas de Ipanema, nossa cidade maravilhosa.

Passamos a só conseguir olhar para nós mesmos com os óculos escuros da autocrítica, esquecendo que, como a tal prima, também queremos ser amados pela beleza, não apenas pelo avesso dela.

Adoniran Barbosa já escondia o amor pela cidade naquela linha tênue que separa o humor da tragédia. Itamar Assumpção, idem. Rita Lee brinca nesse meio-fio.

Talvez por ter assumido o papel de "a mais completa tradução" da cidade, Rita reitera que ironia é nosso ponto forte e criou, em letras, um belo quadro da São Paulo que conhece, com o superego nas alturas.

"Aqui estamos nós, (...) bizarros casais, restos mortais do Ibirapuera" e "O frio de São Paulo me faz transpirar" são imagens criadas em suas canções. Foi Rita quem compôs, nos anos 1970, a balada "Lá Vou Eu", redescoberta pela fluminense Zélia Duncan em 1994. "Na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível como você, e eu e o céu", ela termina, sem culpa pelo romantismo escancarado.

Zélia já contou que foi por causa dessa regravação que o público paulistano se aproximou dela. Viu só? Tudo o que essa cidade quer é também se reconhecer no que tem de bonito - e sem ter que pagar o preço de, a cada elogio, ter que ouvir toda a lista de seus incontáveis defeitos.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Não morre, não deve morrer — ou vice-versa

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 20/fevereiro/2010, no caderno "Opinião"

Patrimônio da cultura
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - "Mudando de conversa/ Onde foi que ficou/ Aquela velha amizade/ Aquele papo furado/ Todo fim de noite/ Num bar do Leblon/ Meu Deus do céu, que tempo bom!", cantou Doris Monteiro na noite de Quarta-Feira de Cinzas, na calçada da Toca do Vinicius, em Ipanema, depois de ter suas mãos gravadas em cimento para a Calçada da Fama.

Em seguida foi a vez do saxofonista Aurino Ferreira, veterano do Beco das Garrafas, do sexteto Bossa Rio de Sergio Mendes e músico de Wilson Simonal no apogeu do cantor, também imprimir as mãos. Aos 84 anos, firme como uma rocha e com fôlego de mergulhador, ele encarou com seu sax-barítono a juventude do quarteto No Olho da Rua, que o acompanhou em clássicos como "Insensatez", "Meditação" e "Batida Diferente".

A plateia, quase 1.000 pessoas na calçada e na rua, era composta de moradores de Ipanema -para quem os eventos da Toca só exigem trazer de casa uma cadeira de praia e sentar- e turistas de toda parte, fãs de bossa nova. A emoção provocada por Doris e a vibração gerada por Aurino não perderam em nada para o espírito do Carnaval que ainda ecoava.

Doris vem de um tempo, anos 50, em que os cantores tinham contratos fixos com boates, gravadoras, rádios e televisões e trabalhavam 365 dias por ano. Aurino faz parte da geração de músicos cariocas que, em 1959, 60, lançou as sementes do samba-jazz: possantes formações instrumentais, tocando sambas e bossas novas com liberdade jazzística e pesado sotaque de gafieira.

Uma noite como a da Toca não deveria ser vista como "nostalgia", nem dirigida apenas aos que "viveram aquele tempo". A música de Doris, de Aurino e de seus pares é um patrimônio da cultura brasileira e como tal deveria ser estudada. De preferência, ministrada por eles próprios.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sinatra no Brasil, 30 anos atrás

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 26/janeiro/2010, no caderno "Ilustrada"

A primeira vez
por Ruy Castro, Colunista da Folha

Há 30 anos, apresentação de Frank Sinatra no Maracanã desafiou limitações técnicas e estrutura precária para colocar o Brasil na rota dos grandes shows

Foi a primeira vez que um megastar internacional precisou de um estádio de futebol para se apresentar para uma plateia brasileira: Frank Sinatra (1915-1998), para 175 mil pessoas, no Maracanã, em 26 de janeiro de 1980 —há 30 anos.

Foi também mágico: a platéia ficou extática quando, às 21h em ponto, Sinatra, 64, pisou o palco erguido no gramado e começou a cantar "I've Got the World on a String", "I've Got You Under My Skin", "The Lady Is a Tramp". E só despertou do transe às 22h15, quando, 20 clássicos depois, ele se curvou pela última vez para o maior público de sua carreira, desceu a longa passarela e sumiu de volta pelos camarins.

Durante os 75 minutos de show, ninguém na multidão podia avaliar o que custara pôr de pé um espetáculo como aquele num país sem know-how no gênero — porque Sinatra e sua música engoliam o Maracanã, a arquibancada e cada um ali. E, no entanto, se algo desse errado, o Brasil talvez fosse riscado para sempre do roteiro dos grandes shows que começavam a tomar os estádios na Europa e nos EUA. Mas tudo deu certo.

Foi uma vitória do empresário carioca Roberto Medina, pai da ideia de trazê-lo e futuro criador do Rock in Rio. Ali abriu-se o caminho para as futuras atrações do Maracanã e de outros estádios brasileiros: Paul McCartney, os Rolling Stones, Madonna.

Até então, uma coisa era o Maracanã receber o papa João Paulo 2º ou o pastor evangélico Billy Graham, promover a chegada anual do Papai Noel ou abrigar regularmente um Flamengo x Vasco para 150 mil pessoas. Outra era servir de palco para o cantor mais exigente do mundo.

A voz

Ao contrário deles, Sinatra precisaria de um minucioso e complexo projeto de som para que sua voz, emoldurada pela orquestra de 40 figuras regida por Vinnie Falcone, chegasse ao mesmo tempo e com os mesmos volume, timbre e clareza em todos os pontos do estádio.

É preciso lembrar que Sinatra era um cantor — não um performer que compensasse a pouca voz com rebolados, canhões de luz ou fumaça e anarquia sonora. Cantores existem para ser ouvidos.

Para isso, a Artplan Publicidade, empresa de Medina, e a Sinatra Enterprises contrataram a A-1 Audio, firma de Los Angeles especializada em montar sistemas de som em grandes espaços. O convite à A-1 foi feito em novembro de 1979; o show seria em janeiro de 1980. Ou seja, habituados a trabalhar com prazos de seis meses a um ano, eles teriam menos de dois meses para vir ao Rio, conhecer o estádio, criar o projeto, escalar os engenheiros e desenhistas, escolher o equipamento, transportá-lo e, sem ninguém que falasse português, montá-lo com mão de obra brasileira.

A Artplan lhes providenciou intérpretes, mas estes, fluentes em praia, feijoada e Carnaval, não eram doutores em eletrônica. E tudo isso torcendo para que a chuva, abundante no período, não castigasse muito o Rio naquele verão.

Quando o equipamento chegou — 25 toneladas de aparelhos em oito contêineres de 12 m³, lotando um Boeing 747 de carga da PanAm —, várias surpresas. Em vez de rampas e guindastes para içá-los, a força bruta e mal paga dos estivadores cariocas; no lugar de grandes caminhões fechados e acolchoados para transportar a preciosa tralha, do Galeão ao estádio, pelas ruas da cidade, uma pequena frota de caminhões abertos, sujeitos a pó, choques e roubo; faltando sete dias para o show, o palco — uma estrutura a céu aberto, em forma de estrela, bem no grande círculo — ainda não estava pronto; e, sem ele, não havia como montar o som.

Não me pergunte como, mas eles conseguiram. Para alguns, foi uma das maiores façanhas da engenharia sonora na história. Só faltava superar um obstáculo: a chuva — que caiu, mansa, mas constante, durante todo o dia do show. Por causa dela, não houve passagem de som — os técnicos não queriam molhar os microfones, nem os 20 violinistas, expor os seus Stradivarius. O carioca ignorara a chuva e fora para o Maracanã do mesmo jeito, sem saber que, se a água não desse uma trégua até as 21h, não haveria show. Pois, às 20h53, os organizadores decidiram que essa trégua se dera e o show aconteceria. Faltando apenas sete minutos, toda uma estrutura foi posta para funcionar.

Sinatra adentrou o palco, olhou para cima e disse: "Meu Deus". Na arquiba, eu também.

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Em 1981, Sinatra cantou para poucos em São Paulo
por Thiago Ney, da Reportagem Local

Cantor se apresentou para apenas 700 pessoas em teatro do hotel Maksoud Plaza

A série de quatro shows foi o evento do ano na capital paulista; além do show, a plateia jantou e ganhou um catálogo com um compacto

Se em 1980 Frank Sinatra precisou do Maracanã para cantar "I've Got You Under My Skin", em agosto de 1981 ele acomodou sua voz no minúsculo teatro do Maksoud Plaza — hoje decadente, mas à época o mais elegante hotel de São Paulo.

Entre 13 e 16 de agosto daquele ano, Sinatra se apresentou para uma plateia de apenas 700 pessoas por noite. Ver Sinatra tão de perto fez dessa série de shows o evento do ano em São Paulo.

Bruna Lombardi e Regina Duarte estavam lá. Jorginho Guinle "fez-se acompanhar de um grupo de mulheres lindas", testemunha o jornal do dia.

"Estava grávida [de João, seu terceiro filho] de oito meses e, por isso, antes do final do show fiquei cansada. Fui embora antes de acabar, o que lamento muito", lembra Regina Duarte.

Nas quatro noites, Sinatra subiu ao pequeno palco às 23h. Porque às 21h iniciava-se o jantar, preparado por Roger Vergé. Do extenso cardápio, lia-se:"Lagosta cozida com pouco sal; fundo de alcachofra com creme sofisticadamente rosado e gostoso; filé mignon com molho repleto de azeitonas sem caroço e alguns cogumelos; doce recheado de chantilly (tipo mil folhas)".

Além de ouvir — e ver bem de perto — Frank Sinatra, a plateia levou para casa uma gravura de Wesley Duke Lee, um catálogo ilustrado e um compacto com as faixas "New York, New York" e "That's What God Looks Like to Me".

"Ainda tenho o convite guardado", conta o advogado Marcos Aurélio Ribeiro, que esteve no primeiro dos shows. "Era uma noite fria de agosto, então os homens estavam todos de terno e as mulheres, de casaco e vestidos longos."

Vestido longo

"O Maksoud era um hotel fantástico na época, então assistir ao Frank Sinatra ali era um acontecimento de gala", relembra a advogada Jane Monachesi. "Só se falava no show e na dificuldade de comprar os ingressos. Porque, além de caros, eram poucos. Durante o show, o Frank Sinatra estava brincalhão, descontraído, parecia que ele estava cantando na sua casa. A formalidade foi quebrada quando o show começou."

"Contei, entre os carros que chegavam, mais de duas dúzias de Mercedes, um BMW e um Cadillac Supreme. Ah, sim, um Mustang 69", escreveu, sobre a primeira noite, Mino Carta na Ilustrada de 16 de agosto de 81.

Comandada pelo maestro Vincent Falcone, a pequena orquestra acompanhou Sinatra em canções que não poderiam faltar, como "Strangers in the Night", "I've Got You Under My Skin" e "My Kind of Town", entre outras, durante os 75 minutos de apresentação.

Logo após a série de shows, Sinatra pegou um helicóptero para o aeroporto.

Ali, no teatro do Maksoud Plaza, foi a última vez que o Brasil ouviu Frank Sinatra.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Nosso maestro "piador"

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 25/janeiro/2010, seção "Opinião"

Maestro piador
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - O compositor, letrista, cantor, maestro, arranjador, pianista e piador Antonio Carlos Jobim, morto em 1994, faria 83 anos hoje. Um recorte enviado por meu amigo João Antonio Buhrer, de Campinas, me alertou para essa qualidade quase despercebida no rol de gostos e aptidões de Tom: o domínio da arte de piar, usando complexos pios artesanais para conversar com seus irmãos de asas. Cada pássaro, um pio — uma língua — diferente.

Em 1989, andando com Tom pelo Central Park, em Nova York, ouvi-o identificar vários pássaros pela música que faziam — era íntimo também dos passarinhos americanos. Não tinha a menor dificuldade para identificá-los em português. "Robin" era pintarroxo, "nightingale", rouxinol, "horned grebe", mergulhão. Mais difícil era saber como se chamavam certos pássaros brasileiros em inglês — como traduzir a variedade dos nossos urubus?

Em jovem, nas suas incursões pelo mato, Tom piava inhambus para matá-los. "O inhambu vinha todo apaixonado e eu o matava à traição", confessou. Era uma prática comum aos homens de sua geração. Mas, mais cedo do que muitos, ele enxergou a desumanidade daquilo. Continuou a piar vários pássaros, mas para firmar com eles um diálogo de amor.

A faixa "O Boto", em seu álbum "Urubu", é uma sinfonia de pios. Estão integrados com tal naturalidade à orquestração que podem nem ser "escutados" pelos menos atentos. Mas estão lá no disco, e executados pelo próprio Tom — quem mais? Eram os pios de ipê ou bambu, torneados por seus fornecedores: os velhos artesãos piadores da Fábrica de Pios de Aves, de Cachoeiro de Itapemirim (ES), da qual certamente ouviu falar por Rubem Braga.

Posso garantir que, não importa o que Tom piasse, os tico-ticos, jerebas e patos pretos o entendiam.

domingo, 24 de janeiro de 2010

A batalha dos downloads de música

Texto publicado no "UOL Notícias-Internacional" de 23/janeiro/2010, traduzido do "Financial Times" (texto original em inglês de Salamander Davoudi)

Indústria da música alega que 95% dos downloads são ilegais enquanto cai venda de CDs
por Salamander Davoudi, Financial Times

Um quarto de toda a receita da indústria fonográfica vem dos canais digitais, mas o compartilhamento de arquivos online continua a minar a indústria fonográfica global, com as vendas de música física ou digital caindo no ano passado.

A Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), uma entidade setorial, estima que 95% dos downloads de música em todo o mundo são ilegais.

A IFPI disse que as vendas de música física, como CDs, caíram 16%, para US$ 11,6 bilhões. O crescimento das vendas digitais desacelerou para 12%, chegando a US$ 4,2 bilhões.

As gravadoras têm lutado para compensar o declínio acentuado na venda de CDs ao longo dos últimos 10 anos. O crescimento digital está desacelerando, apesar dos novos serviços online legais como o Spotify e do número crescente de países adotando legislação para proteção do direito autoral.

A taxa de crescimento digital caiu de 25% em 2008 para 12% no ano passado, deixando as vendas de música em geral em queda pelo 10º ano consecutivo.

John Kennedy, presidente executivo da IFPI, disse: "Seria ótimo poder relatar que essas inovações foram recompensadas com crescimento do mercado, mais investimento em artistas, mais empregos. Infelizmente, este não é o caso".

"A pirataria digital continua sendo uma enorme barreira para o crescimento do mercado."
As vendas globais da indústria fonográfica -tanto física quanto digital- caíram 30% ao longo dos últimos cinco anos apesar do crescimento de 940% nas vendas digitais, segundo a IFPI.
A IFPI disse que países como a Suécia, Taiwan e Coreia do Sul conseguiram certo sucesso após introduzir uma legislação de direitos autorais, com aumento nas vendas de CDs.

A Espanha foi apontada e descrita como correndo o risco de se transformar em um "deserto cultural", em parte pela "apatia tolerada pelo Estado" em relação ao compartilhamento de arquivos.

"A Espanha tem o pior problema de pirataria dentre todos os grandes mercados da Europa. Em 2009, nenhum novo artista espanhol figurava nos 50 álbuns mais vendidos, em comparação a 10 em 2003", disse Kennedy.

Tradução: George El Khouri Andolfato