terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Música & religiosidade

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 6/janeiro/2009, Caderno "Cotidiano"

O caos e a beleza
por Rubem Alves


A minha alma, sem que tivesse sido ensinada, sabia distinguir muito bem o ruído caótico e sem sentido dos sons da beleza

QUANDO EU ERA seminarista gostava de dormir ouvindo música. Eu tinha um radinho de válvulas e a música vinha sempre misturada com os ruídos da estática. Eu preferia a música às rezas. Se eu fosse Deus, eu também preferiria.

Na verdade eu já não rezava mais por duas razões.

Primeiro, as aulas de teologia, pela mediocridade, me fizeram pensar — e o pensamento é um perigoso adversário das ideias religiosas. Eu nem sabia se ainda acreditava em Deus.

Segundo, se Deus existia, valia o dito pelo salmista e por Jesus de que, antes que eu falasse qualquer coisa, Deus já sabia o que eu iria falar; o que tornava desnecessária a minha fala.

Eu estava mais interessado em ouvir a divina beleza da música que em repetir as minhas mesmices que deveriam dar um tédio infinito ao Criador.

Se Deus existe, a beleza é o seu jeito de se comunicar com os mortais.

Disso sabem os poetas, como é o caso da Helena Kolody, que escreveu:
"Rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo".

Ela poderia ter sido uma amiga da solitária Emily Dickinson, que sentia igual. "Alguns guardam o domingo indo à igreja / Eu o guardo ficando em casa / Tendo um sabiá como cantor / E um pomar por santuário / E, ao invés do repicar dos sinos na igreja / Nosso pássaro canta na palmeira / É Deus que está pregando, pregador admirável / E o seu sermão é sempre curto. Assim, ao invés de chegar ao céu, só no final eu o encontro o tempo todo no quintal."

Às vezes, Deus se revela como pássaro...

Deitei-me e liguei o radinho. Era uma noite de mau tempo, tempestade. O ar estava carregado de eletricidade — que entrava no rádio sob a forma de ruídos, estática, assobios. Era um caos sem sentido. Mas não perdi a esperança e continuei a procurar.

De repente — a estática dominava a audição — ouvi lá no fundo uma música que muito amo: o concerto para piano e orquestra n.º 1, de Chopin. Fiquei ali lutando contra a estática: 90% de ruído caótico, 10% de beleza.

Eu não entendo esse mistério: todos os sons, estática e música chegavam juntos, misturados. Mas a minha alma, sem que tivesse sido ensinada, sabia distinguir muito bem o ruído caótico e sem sentido dos sons da beleza, que me comoviam.

Minha alma sabia que a ordem morava no meio do caos e ela estava disposta a suportar o horrendo do caos pela beleza quase inaudível que existia no meio dele.

Aí me veio uma ideia sob a forma de uma pergunta que me pareceu uma revelação: a vida toda não será assim, uma luta contra o caos sem sentido em busca de uma beleza escondida? E essa busca da beleza, não será ela a essência daquilo a que se poderia dar o nome de "sentimento religioso?"

"Sentimento religioso", como eu o entendo, nada tem a ver com ideias sobre o outro mundo. É algo parecido com a experiência que se tem ao ouvir a "valsinha" do Chico, ou a primeira balada de Chopin. Uma sonata de Mozart... Um crítico musical poderia escrever um livro inteiro analisando e descrevendo a sonata. Mas, ao final da leitura do livro, o leitor continuaria sem nada saber sobre a sua beleza.

A beleza está além das palavras, exceto quando as palavras se transformam em música, como na poesia.

Ficou aquela imagem. Uma melodia linda se faz ouvir em meio aos horrores da vida. Ainda que seja uma "marcha fúnebre"...

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