Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 18/01/2009, seção Urbe na "Revista da Folha"
O último suspiro do velho hotel
por Ranier Bragon
Foi num melancólico entardecer de domingo que, de mala nas mãos, entrei na recepção do imponente Othon Palace, no centro velho de São Paulo. Era junho e, como de hábito em fins de semana, a rua Líbero Badaró estava deserta, salvo um ou outro consórcio de sem-teto ao deus-dará.
Ficaria cinco meses hospedado no quarto 2.005, com bela vista do Anhangabaú, o "vale dos maus espíritos", e me tornaria testemunha involuntária do crepúsculo daquele que por anos foi um dos mais glamourosos hotéis da cidade.
Rubem Braga conta que certa vez alugou um apartamento em Paris e mandou desinfetá-lo de cima a baixo antes de saber que ali poderia ter morado Marcel Proust. Também rodei a chave no quarto 2.005 ignorante da história do velho prédio.
Inaugurado no final de 1954, o Othon viveu décadas áureas, mas padecia de uma lenta decadência iniciada havia anos. Embora o centro abrigue imperdíveis construções históricas, a vanguarda hoteleira se mudara dali.
A segurança na região, precária durante o dia, desaparecia junto com o sol. Administradores e funcionários se empenhavam em manter um padrão, mas tinham pela frente uma receita curta, 227 quartos e uma infraestrutura castigada por meio século.
A porta do meu 2.005, por exemplo, só abria "com jeito". Dos três elevadores, um funcionava. E o outrora famoso Challet Suisse, no 25º andar, carecia de clientes para provar o bom filé à Oswaldo Aranha.
Uma curiosidade: embora sua sisudez remetesse a cenários de "O Iluminado", estranhamente o Othon não aparece no fértil livro de lendas do centro velho. Mas registro que cruzei no elevador algumas vezes com uma noiva que seguia sempre para a igreja de Santo Antonio, a poucos passos dali. Em uma inacreditável falha jornalística, nunca perguntei aos funcionários quem diabos era ela.
Obrigado a cobrar uma diária que amenizava a fuga de clientes, mas não o sustentava, o hotel deu adeus ao último hóspede em novembro, atolado em dívida milionária. Hoje está à venda.
Voltei ao Othon no último dia 9, exatos 54 anos e dez dias depois da suntuosa inauguração que reunira a elite paulistana. As imensas portas, nunca antes fechadas, agora ostentam uma campainha do lado de fora. Lá dentro, o plim-plim ainda repousa em cima do balcão.
Dias antes, fora informado de que entre os hóspedes ilustres estivera Marlene Dietrich. Procurei-a sem sucesso nas velhas fotos do arquivo, em meio a abundantes instantâneos do carrancudo Costa e Silva.
No livro de ouro, mensagens de JK, Nat King Cole (ambas sem data) e uma de Ella Fitzgerald ("Thanks for a lovely stay", datada de 1960). Nenhuma da diva.
Saí de lá sem a prova definitiva, é verdade, mas agora faz sentido para mim o sutil aroma de cigarro que sentia naquele quarto e a estranha sensação de ouvir sussurros de "I Wish You Love" em noites frias (e não vinham de Costa e Silva, espero).
Como diria Rubem Braga, anotem aí, meus amigos: rua Líbero Badaró, 190, ap. 2.005. O endereço de Marlene Dietrich em São Paulo; e do Bragon!
— Ranier Bragon, 36, repórter da Sucursal de Brasília da Folha, é o colunista convidado desta edição; esteve em São Paulo entre junho e novembro de 2008 para a cobertura das eleições municipais. revista@grupofolha.com.br
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