domingo, 5 de julho de 2009

Judeus & Negros na America

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 05/julho/2009, no caderno "Ilustrada"

Preto & Branco
por Mônica Bergamo
bergamo@folhasp.com.br

Carlos Rennó e Jaques Morelenbaum reúnem astros da MPB para interpretar obras que brancos judeus compuseram e que se transformaram em grandes clássicos da música negra americana
Na década de 30, Abel Meeropol, um professor judeu do ensino médio do Bronx, em NY, colocou os olhos em uma das mais dantescas imagens do século 20: uma foto em que dois negros americanos pendem de uma árvore, depois de linchados por uma multidão em Indiana, no sul dos EUA. Sob o pseudônimo de Lewis Allan, ele escreveu "Strange Fruit", que expressa o seu horror. "Eis uma fruta/ Pra que o vento sugue/ Pra que um corvo puxe/ Pra que a chuva enrugue/ Pra que o sol resseque/Pra que o chão degluta/Eis uma estranha/E amarga fruta." Foi sua primeira, e única, canção gravada.
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Ao descobrir e emprestar sua voz para "Strange Fruit", Billie Holiday a transformou num hino contra o racismo e numa das mais populares canções americanas. Não foi fácil: temendo represálias no sul, a Columbia, por onde ela lançava discos, não quis gravar a música; Billie recorreu à Commodore, selo alternativo de jazz. Era sempre a última música de seus shows. Ela exigia que os garçons parassem de servir e que as luzes se apagassem. Um foco de luz iluminava seu rosto e Billie entoava os versos da canção.
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"Eu não sabia dessa história. Ninguém fala desse professor, porque ele só fez isso", diz o jornalista, letrista e produtor Carlos Rennó. Sentado sobre os joelhos, no sofá de seu pequeno apartamento, em Pinheiros, onde vive sozinho entre livros e centenas de CDs, ele recebeu a coluna para falar de seu novo projeto: um disco de versões de músicas negras americanas, como "Strange Fruit", compostas por judeus. Ele escreveu as versões. O músico, instrumentista, maestro e (...ufa!) produtor Jaques Morelenbaum fez os arranjos. No cardápio, clássicos como "My Romance" com Gal e Carlinhos Brown, "Over The Rainbow" com Zélia Duncan, "Bewitched" por Maria Rita e "Strange Fruit" por Seu Jorge. A dupla, que trabalha em parceria com as maiores estrelas da MPB e planejava há 20 anos fazer um trabalho conjunto, lança o CD "Nego" em agosto.
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Rennó produziu há nove anos, com Rodolfo Stroeter, "Cole Porter, George Gershwin/ Canções, Versões", com letras vertidas para o português e cantadas por Caetano, Gil, Rita Lee, Cassia Eller. Sete faixas do CD foram incluídas em novelas -uma delas, "Let's Do It" (ou "Façamos"), na voz de Chico Buarque e Elza Soares, estourou como tema de "Desejos de Mulher". A ideia de Rennó era tentar um segundo disco de Porter e Gershwin, desta vez com Morelenbaum. Mas... e o dinheiro?
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É então que entra em cena Yael Steiner, diretora do Centro da Cultura Judaica. Amiga de Morelenbaum, ela se interessou em apoiar um projeto da dupla. "Aí eu pensei: cultura judaica...o Gershwin, tudo bem. Mas Porter não era judeu." Rennó foi quebrando a cabeça, juntando informações.
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"A época dos anos 20 aos anos 40 foi um dos pontos mais altos da canção popular americana. Floresceram e se desenvolveram obras que ficarão para sempre na história das canções. E a maior parte do primeiro time de músicos era formada por judeus de origem simples, que descendiam de estrangeiros vindos da Europa: Gershwin, Irving Berlin, Richard Rodgers e Lorenz Hart", diz. O projeto começava a tomar forma. Segue Rennó: "No coração dessa explosão musical está a aliança negro-judaica, onde negros e judeus dos EUA se identificaram como povos exilados, outsiders. A música era uma via de emancipação. E aconteceu então uma identificação em que músicos judeus vão assimilar a música e a musicalidade dos negros. E isso vai ser determinante para o erguimento das grandes obras da música popular americana. Os que mais sofreram são os responsáveis principais pela alegria dos povos, se considerarmos que muito dessa alegria vem do consumo da música."
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Um exemplo representativo da incorporação que os judeus fizeram da musicalidade dos negros e "da identificação que eles tinham no plano existencial", diz Rennó, é "Porgy and Bess", a "ópera negra de Gershwin" que, por sua determinação, só pode ser interpretada até hoje por afrodescendentes. Dela, a clássica "Summertime" foi selecionada para o CD brasileiro, na voz de Erasmo Carlos.
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Gershwin, filho de imigrantes judeus russos, "ainda novinho" foi trabalhar em Tin Pan Alley, rua de NY que abrigava os escritórios dos editores de música na virada do século 20. Na era anterior à popularização do registro fonográfico, o sucesso de uma música era medido pelo número de partituras vendidas. Gershwin as tocava ao piano para potenciais compradores. "Toda família americana tinha um piano em casa para executar canções", diz Rennó. "Esta circunstância também fez com que elas fossem extraordinariamente ricas, sofisticadas do ponto de vista melódico e harmônico."
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Frank Sinatra gravou uma das mais célebres interpretações de "Ol" Man River". Num show nos EUA em que ele era homenageado, Ray Charles subiu ao palco e disse: "Frank, você uma vez juntou um monte de músicos brancos num estúdio branco para tocar e cantar essa música negra -que eu agora vou fazer "in my way"." "Ele só se esqueceu de dizer que a música negra tinha sido feita por brancos judeus [Jerome Kern e Oscar Hammerstein]", diz Rennó, que convidou João Bosco para gravar a faixa, incluída no CD "Nego". "Preto dá duro no Mississippi/Duro pro branco poder brincar/Puxando barco, não descansando/Até o juízo final chegar", diz a letra.
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Rennó diz que, aos quatro anos, ouviu uma pessoa ser chamada de "nego safado", "o que causou em mim forte aversão e me fez repelir aquilo para sempre". "Isso, e a primeira ereção, que eu tive também aos quatro anos de idade, por causa de uma vizinha, tiveram um caráter de revelação forte para mim". Outra experiência que o liga ao novo CD: "Toda essa crueldade de que trata "Strange Fruit", de forma tão comovente, eu vim a perceber de forma intensa exatamente aqui, onde estou, diante desta tela de TV, com uma namorada negra ao meu lado, ao ver um documentário de Billie Holiday. O que eu vivi aqui naquele dia, eu vivi novamente no estúdio, quando Seu Jorge gravou a música". Antes de cantar, Seu Jorge disse: "Preciso representar isso aqui. O que eu devo encarnar? Um amigo dos dois negros pendurados naquela árvore? Ou os amigos que perdi no Brasil?". Os amigos. Ao final, todos choraram. "A versão desta canção tem relação profunda com as duas maiores escravocracias do mundo, a americana e a brasileira." A capa de "Nego" é azul, vermelha, verde e amarela.
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Frases
"Aconteceu uma identificação em que músicos judeus vão assimilar a música e a musicalidade dos negros. E isso vai ser determinante para o erguimento das grandes obras da música popular americana"

"Os que mais sofreram são os responsáveis principais pela alegria dos povos, se considerarmos que muito dessa alegria vem do consumo da música"

"Isso [racismo] e a primeira ereção, que eu tive também aos quatro anos de idade (...), tiveram um caráter de revelação forte para mim"

— CARLOS RENNÓ, letrista

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