Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo" de 27/junho/2009, no "Caderno 2"
A banda que separou corpo e mente
por Lúcia Guimarães
Assim o pesquisador Elijah Wald define a revolução dos Beatles, em livro polêmico que acaba de sair nos Estados Unidos
Nestes tempos de atenção escassa disputada em frases bombásticas, suspeito que o autor à minha frente, explicando pela enésima vez o título de seu livro, começa a se arrepender de não ter ficado apenas com o subtítulo — Uma História Alternativa da Música Popular Americana.
Apesar de os Beatles serem tema do último capítulo, é difícil não questionar o título Como Os Beatles Destruíram o Rock'n'roll.
Cáspite, Elijah Wald! Foi com a indignação de quem sempre esperava o dia 9 de outubro para despejar leite condensado sobre o bolo de aniversário de John Lennon que fiz a repórter calar a fã mirim que um dia eu fui.
O novo livro do historiador Elijah Wald despertou reações variadas, nenhum tédio. Seu argumento é que a história da música popular, e da arte em geral, é monopolizada pelo gosto de críticos.
No caso da música, a história oficial acaba relegando a notas de rodapé personagens importantes como Paul Whiteman, citado como influência por Duke Ellington e Louis Armstrong e, nos anos, 20, o mais bem sucedido band leader dos Estados Unidos.
Wald aponta dois marcos em seu livro. O abandono da performance ao vivo pelos Beatles teria consolidado a gravação como referência primordial da música. E a evolução dos Beatles, da banda que tocava música dançável com influência negra e tinha uma base de fãs adolescentes, para uma banda de "artistas". As aspas não se destinam denegrir a qualidade do som de Sgt. Pepper's Lonely Heart's Club Band.
A língua inglesa distingue artistic de arty: o segundo adjetivo sugere pretensão calculada. Wald acha que nós latinos somos abençoados com uma certa falta de puritanismo e isso faz com que "os mais intelectuais" dos compositores brasileiros criem música que não separa o corpo da mente — mas logo pede para não considerar o comentário uma simplificação da complexa tradição musical brasileira.
Como o rock'n'roll foi destruído pelos Beatles?
É uma ideia que não deve ser tomada literalmente porque o rock ainda está por aí. Até os Beatles aparecerem, a performance ao vivo era a principal parte da música. Os Beatles foram as primeiras grandes estrelas a simplesmente parar de se apresentar ao vivo e se tornaram músicos de estúdio. Isso causou duas grandes mudanças. Desde então, quando pensamos em música popular, pensamos em gravações. Quando os Beatles começaram, e falávamos de sua chegada aos Estados Unidos, pensávamos na famosa apresentação no Ed Sullivan Show e não num disco. Eles foram o último grupo musical importante a comprovar esse truísmo. Depois deles, a principal associação da música popular é com as gravações. Em segundo lugar, o contexto racial. Quando os Beatles chegaram aqui, a música americana estava no momento de maior integração racial de sua história. A música americana, como a brasileira, tinha comportado esse processo de interação entre a tradição africana e a europeia. No começo dos anos 60, pela primeira vez, havia uma interação mais igualitária entre as duas tradições. O pessoal da Motown, Ottis Redding, James Brown, eles eram programados em shows ao vivo e de TV e o público estava mais misto. De repente, acontece a invasão britânica. E a invasão simplesmente dividiu as plateias americanas entre os fãs do rock, que se tornou todo branco, e os fãs do soul, disco e hip hop, que viraram gêneros predominantemente negros.
Mas se você leva em conta que grande parte da plateia do rap era branca e suburbana...
Não desapareceu o público. É aí que faço a conexão com a gravação. Uma vez que a música popular passou a depender de gravação, era possível ser um tremendo fã de música negra sem nunca estar na presença de uma pessoa negra. Uma vez que tudo estava gravado, você ouvia o que quisesse sem estar na companhia especial de ninguém, fora do seu universo. E acho que foi um dos fatores na separação. Quando os Beatles começaram, eles tocavam gêneros negros e brancos. Depois deles, isso não foi mais necessário. Até os anos 50, todas as bandas tinham que tocar todo o espectro da música popular.
Também cresci ouvindo os Beatles mas não vivi o contexto de segregação musical que você viveu.
É verdade, mas vamos levar em conta também o fato de que o Brasil nunca fez a mesma separação. Os mais intelectuais dos grandes músicos brasileiros continuam a compor música que funciona num ambiente de dança. Os Beatles abandonaram o salão. E o rock também abandonou a dança, que ficou mais ligada a outros gêneros. Quando digo que os Beatles destruíram o rock, faço humor sobre o fato de que todos os grandes eventos acomodam ganhos e perdas. O lado vitorioso domina a narrativa e a gente para de pensar no que se perdeu. Eu não quero ser simplista, mas a ideia protestante de que a mente é virtuosa e o corpo, não, pode explicar boa parte do que estamos dizendo aqui. Quando dizem que os Beatles "elevaram" o rock, não se referem apenas à música mais inteligente, mas também à música menos física. E, para mim, este foi um grande racha.
Hoje, com o iPod, a pessoa que houve a Beyoncé pode nunca ser exposta ao Rufus Wainright e vice-versa.
Exatamente. Acabou o mainstream. Antes, não importava qual a sua preferência, era impossível evitar um repertório popular. A outra mudança é que o repertório de grandes compositores, como o Jobim, tinha interpretações variadas. Hoje, as músicas do Caetano Veloso são mais conhecidas como as músicas do Caetano, as gravações dele definem a memória do repertório. E isso é um fator importante para encolher o mercado; se uma canção existe principalmente no momento em que foi gravada e não em centenas de versões.
Um dos contrapontos históricos do seu livro é sobre como a evolução da tecnologia foi afetando formatos e gêneros. O que a tecnologia digital está fazendo com a música?
Todos têm me feito a mesma pergunta. Se há algo que você aprende, como historiador, é que a gente sempre tira conclusões erradas sobre o presente. Neste momento, eu suponho que sabemos menos sobre o estado da música popular do que em qualquer outro momento na história. A música escapuliu das grandes corporações. As vendas de discos não significam mais nada. Uma pessoa compra um CD e aí? Cem outras copiam? Ou serão mil pessoas, online? Ninguém sabe quem está comprando o que. O rádio perdeu influência, é ouvido principalmente no carro, nos Estados Unidos. As pessoas ouvem as suas playlists, não a lista da estação de rádio. Veja dois exemplos recentes que confirmam a minha ignorância. A música mexicana, poderosa nos Estados Unidos, é distribuída predominantemente por celulares. A maioria dos downloads de MP3 no país são de música mexicana, para consumidores que nem têm outro aparelho além do celular. Numa loja de discos, vejo uma seção inteira devotada a álbuns de videogames. Você compra o CD do Aerosmith como um original do jogo Rock Star. Então, quem sabe de fato o que está acontecendo? A ironia é que as corporações multinacionais continuam muito poderosas, mas os sistemas de distribuição mudaram demais. Não sei como está a audiência do YouTube comparada à audiência dos cinemas. E a tecnologia transforma todos em produtores de conteúdo. Uma coisa é certa. A música ao vivo continua perdendo terreno. É cada vez mais difícil arrancar gente de casa para ver qualquer coisa ao vivo.
Uma vez o João Bosco lembrou que a música brasileira relevante da segunda metade do século 20 repousava numa escala de sucesso comercial que hoje seria impensável. Alguns dos nossos grandes compositores não teriam nem contrato com gravadora.
Concordo, o universo dos números é outro. Mas é importante entender também o quanto as gravações adquiriram importância muito mais tarde. Até o começo dos anos 60, a maioria dos artistas ganhava dinheiro ao vivo. Os discos eram veículos promocionais. Os músicos não se ligavam tanto em royalties, até aparecerem os Beatles. Foi a outra mudança que eles trouxeram — a ideia de que podia se ganhar muito mais com as próprias composições. Os Beatles são o exemplo perfeito de uma banda que, por um momento reuniu os dois grupos de público e depois tomou outro caminho. E tomou, das adolescentes que gritavam, a música que tinham dado a elas. E não digo que isso é mau, é apenas diferente. Em nenhum momento considero que foi ruim os Beatles terem se tornado artistas. Só constato que isso removeu a música deles do lugar original.
Você critica os historiadores que consideram, por exemplo, a Sarah Vaughn legítima mas não a imensamente popular Connie Francis. O que há de errado com isto?
Não há nada errado em contar a história do que apreciamos. E é assim que a história do jazz e do rock é contada. Mas, se alguém quer entender o que aconteceu, não pode falar só do que aprecia , tem que falar do que não gosta. Os Beatles, o Elvis Presley, eles eram músicos profissionais trabalhando no mundo real. Eles gostavam de muita música que os críticos ainda detestam. Julgar a música deles pelo que combina com o gosto dos críticos é OK, mas se queremos entender a evolução da música temos de levar em conta mais do que o gosto dos críticos.
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