Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 22/agosto/2008, seção "Opinião
Milagre em Roma
por Nelson Motta
RIO DE JANEIRO - No verão romano de 1983, Dorival Caymmi foi a grande estrela do festival Bahia de Todos os Sambas, no Circo Massimo, ao lado de João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Moraes Moreira, com o trio elétrico de Dodô e Osmar fazendo um carnaval na Piazza Navona.
Depois de um dos shows, dividi um táxi com Caymmi e Nana. O "Algodão" estava feliz, o rosto moreno cercado pelos cabelos branquíssimos, sereno como quem sabe, leve como quem aceita, o perfeito "Buda nagô" cantado por Gilberto Gil. Refestelado no banco traseiro, para deleite meu e do taxista, inicia um dueto da "Tosca" com Nana, enquanto rodamos pelas ruas estreitas do Trastevere. Caymmi foi criado ouvindo ópera e música clássica, adora Bach, diz que todos os acordes e harmonias que ainda hoje surpreendem os que se acham modernos já estavam nele.
Nana canta "Só louco", e a cidade eterna passa iluminada pela margem do Tibre. Dorival faz uma segunda voz, revira os olhos, faz bico com os lábios grossos e sensuais. É a encarnação do "dengo viril", uma macheza dengosa e sedutora, tão presente na vitoriosa mistura de baianos com árabes, como Jorge Amado, ou italianos, como Caymmi.
O motorista está adorando o concerto e desconfio que faz um percurso mais longo mais por prazer do que por dinheiro. Várias músicas depois, quando chegamos ao hotel, abracei Caymmi comovido e, diante de minha expressão abobalhada de êxtase e gratidão, declamou com voz grave e majestosa:
"Cada minuto que passa é um milagre que não se repete".Deu um tempo para que eu absorvesse tanta sabedoria filosófica e, com o timing de um grande comediante, revelou a fonte de tanta poesia: "Rádio Relógio Federal".
Boa noite, Dorival Caymmi.
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