domingo, 3 de agosto de 2008

Pianista Herbie Hancock, o "rei do jazz"

Texto publicado no caderno "+Mais", do jornal "Folha de S.Paulo', de 3/agosto/2008

Cultura

O Rei do Jazz

UM DOS MAIS IMPORTANTES MÚSICOS EM ATIVIDADE, O PIANISTA HERBIE HANCOCK RELEMBRA A PARCERIA COM MILES DAVIS NOS ANOS 1960, FALA DE ELEIÇÕES NOS EUA E SOBRE O FUTURO DO GÊNERO

por Iker Seisdedos

Lenda viva do jazz, o pianista Herbie Hancock vive um dos melhores momentos de seus quase 50 anos de carreira brilhante. No início do ano [em fevereiro], ganhou o Grammy de melhor disco de 2007 por seu álbum em homenagem à cantora e compositora canadense Joni Mitchell -"River -The Joni Letters" (Verve/ Universal).

Foi o primeiro disco de jazz a ter recebido o prêmio máximo da indústria musical em 44 anos (o último tinha sido "Getz/Gilberto", de Stan Getz, graças a um fenômeno chamado "The Girl from Ipanema").

Os últimos meses também foram marcados por sua eleição para a lista da revista "Time" dos cem personagens mais influentes e pelo fato de a Universidade Harvard lhe ter dado a distinção de artista do ano.

Hancock é provavelmente o músico de jazz que mais marcas deixou na história da cultura pop. Por exemplo, a trilha sonora de "Blow Up - Depois Daquele Beijo", obra-prima de Michelangelo Antonioni.

Nos anos 1970, liderou a bastardização do jazz com "Headhunters", que marcou época com seu 1 milhão de cópias vendidas.

E, se nos anos 1980 popularizou o "scratch" -técnica empregada pelos DJs de rap- com "Rockit", nos anos 90 viu o trabalho que fez para o selo Blue Note no início de sua carreira ser apropriado pelo hip hop e o acid jazz, conquistando um novo tipo de ouvinte.

Daquele tempo, esse artista camaleônico, membro do inesquecível segundo quinteto de Miles Davis no final dos anos 1960 -talvez a melhor formação jazzística que já existiu-, conserva as mãos finas que chamavam a atenção na elegante e distante capa de seu primeiro disco como artista principal, de 1962.

Foi então que o mundo descobriu um prodigioso pianista de Chicago de formação clássica, um improvisador incansável, capaz de introduzir Debussy no mais arraigado discurso da música negra. Aos 68 anos, Herbie Hancock ainda veste cores escuras e exibe forma física invejável.

Lê revistas de divulgação científica para passar o tempo e dobra o paletó do visitante como um jazzman daqueles de antigamente -pobres, mas cujas roupas eram bem passadas.

PERGUNTA - O atual sucesso do jazz, de que seu prêmio é um exemplo, é freqüentemente atribuído aos popularizadores tradicionais do gênero, como o trompetista Wynton Marsalis e o documentarista Ken Burns -que, diga-se de passagem, costumam contar uma história do jazz um tanto quanto enviesada e edulcorada...
HERBIE HANCOCK - É possível. O que acho é que o jazz é muito saudável para a alma humana, algo que realmente liberta a alma. É como se o espírito não obtivesse satisfação suficiente com outras formas musicais, que podem ser maravilhosas, mas, sinceramente, não chegam até onde chega o jazz.
Todos os gêneros são válidos, mas há algo de muito especial neste ao qual dediquei minha vida. É uma queda livre, e você precisa de músicos nos quais se apoiar. Não conheço ninguém que faça jazz pela fama, as jóias ou as mulheres.

PERGUNTA - Por que ocorreu tão tardiamente o reconhecimento dessa expressão cultural mais duradoura e original dos EUA?
HANCOCK - Eu me recordo de quando tocava com Miles [Davis], nos anos 1960. Naquela época o jazz ainda era uma música que se tocava nos clubes, longe dos grandes festivais.
Éramos sujeitos com classe e fazíamos uma música que ninguém comprava. Eu tinha 20 e poucos anos. Depois disso, o jazz se tornou uma coisa virtuosística demais. As pessoas comuns não assimilam algo muito complicado.
Chegou o rock and roll, e acabou-se a história.

PERGUNTA - Aos 25 anos de idade, você conseguia entender a importância daquela música?
HANCOCK - Curtíamos explorar, nos aventurar em áreas onde ninguém estivera antes. A idéia de explorar terreno novo ainda está muito presente para mim.
Inclusive em "River", que pode ser considerado um álbum mais fácil de se ouvir, ou no anterior ("Possibilities"), que foi muito criticado por eu ter colaborado com artistas como Christina Aguilera.
Diziam que faltava um centro ao disco, que abarcava muita coisa e se fixava em poucas, como se isso fosse algo intrinsecamente ruim.
Para mim, é isso o que é preciso fazer neste momento. Esse é o signo destes tempos de downloads digitais. Ninguém mais ouve álbuns inteiros. As pessoas só se interessam por canções. Por isso fiz um disco em que parecia que cada faixa vinha de um disco diferente.

PERGUNTA - Você sempre pareceu ter sido do tipo íntegro e careta, o cara que ficava longe das drogas, que tomava as decisões certas. Uma imagem que, naquela época, não era típica de um jazzman...
HANCOCK - Vamos deixar claro: não éramos anjos. E não se iluda: eu fiz algumas das coisas que a gente fazia. Foi uma época difícil. E alguns ficaram pelo caminho.

PERGUNTA - Era difícil conviver com alguns deles?
HANCOCK - Sobretudo com aqueles que se afundaram na heroína. Muitos saíram dessa graças ao islã.

PERGUNTA - Nunca se converteu?
HANCOCK - Nos anos 70, flertei com o islã. Me fazia chamar Mwanddishi, mas era mais por solidariedade com a luta política da comunidade negra.

PERGUNTA - Quais são suas lembranças de Joni Mitchell jovem? A loira cantora e compositora de folk foi bem recebida quando começou a se misturar com músicos de jazz?
HANCOCK - Muitos a trataram com frieza num primeiro momento, porque a tinham ouvido no rádio e não entendiam o que ela estaria procurando entre nós. Era uma hippie com seu violão. Pessoalmente, não a tinha ouvido muito antes de conhecê-la. Nascer em 1940 significou fazer parte da geração anterior ao rock and roll.
Lembro-me de que estava fazendo o disco dela, "Mingus", quando fui a um ensaio. [O baixista] Jaco Pastorius me chamou. Eles já tinham trabalhado juntos antes. Disse: "Tio, estamos fazendo um disco em homenagem a Charlie Mingus".
Pensei: "Por que essa garota está se metendo nessa história?". Jaco me falou: "Wayne Shorter está comigo". Bom, se Wayne estava lá, nada de mau poderia acontecer. Então fui.

PERGUNTA - Jaco Pastorius era um daqueles sujeitos incômodos aos quais você se referia antes?
HANCOCK - Muitos eram junkies. Jaco não era exatamente assim. Provavelmente tomou heroína. E cocaína também.
Mas o caso dele era mais grave. Tinha um desequilíbrio químico na cabeça. Acabou louco.
Mas, na época em que eu o conheci, era um sujeito normal.
Vivia na Flórida, tinha mulher e filhos, era um jovem marido que tocava baixo como os anjos. Entrou para o Weather Report, e isso foi ótimo para seu desenvolvimento fenomenal. Faziam música estarrecedora, aclamada pela crítica e pelas platéias de jazz.
Era um público grande para um grupo como aquele, mas não grande como o público de rock. E Jaco era uma estrela de rock, sobretudo quando subia ao palco, mas não ganhou a atenção que esperava. Acho que isso minou sua personalidade frágil, até acabar com ele.

PERGUNTA - Você foi homenageado com o Grammy mais apropriado para a era Barack Obama.
HANCOCK - Ninguém esperava que um negro fosse candidato à Presidência dos EUA, assim como ninguém teria apostado que um velho músico de jazz levasse o Grammy. As duas coisas são sinais de mudanças nos EUA, que está precisando mesmo virar uma página.

PERGUNTA - Isso tem a ver com questões raciais?
HANCOCK - A questão racial é apenas uma parte do problema.
Este inclui questões como a cor da pele, sem dúvida, mas não é apenas isso. Também o gênero faz parte. É um sinal positivo e saudável. Você imaginou que veria uma mulher candidata à Presidência?

PERGUNTA - Nem sequer quando Jesse Jackson esteve a ponto de ser candidato [democrata], em 1988?
HANCOCK - Nunca pus fé nele.
Ele nunca me pareceu confiável, nem mesmo o homem adequado. Já Obama, pelo contrário, o é. Mas não pela cor de sua pele. Tenho muitos amigos com os quais tenho falado sobre assunto. Alguns o apóiam porque o vêem como gente sua.
Mas outros subscrevem as mesmas razões que eu. Obama é o tipo correto, que está despertando a consciência de muitos eleitores jovens. É só isso. Ninguém conseguiu isso antes.
Talvez Kennedy, apenas. Em quem eu, é claro, votei, na época dele, quando tinha pouco mais de 20 anos.

PERGUNTA - Antigamente o jazz era uma coisa que deixava os pais de cabelos em pé, mas já faz tempo que não é assim, infelizmente. Onde foi parar essa periculosidade?
HANCOCK - Sim, o jazz foi irado em sua época. Nos anos 1960, havia discos que representavam o protesto. Ainda existem hoje, mas são poucos.
Quanto à periculosidade que você menciona, é verdade que o jazz pendeu para o comercial.
Se pensar bem, verá que o fato de alguém querer vender discos é uma intenção nobre. As rádios que transmitem jazz autêntico estão morrendo. Os adolescentes acham o jazz limpo demais, às vezes chato.
Mas isso não é algo que se possa atribuir a todo o campo do jazz. Não seria justo atribuir tantos problemas derivados do "smooth jazz" a todos os músicos que ganham a vida como podem nos clubes.

PERGUNTA - Por que não conseguem fazer contato com os jovens?
HANCOCK - Eu ando vendo mais gente jovem nos concertos, graças a programas de educação e iniciativas desse tipo. Talvez não seja a coisa mais beatnik do mundo, mas também não é intrinsecamente mau que se estude o jazz nas escolas.

PERGUNTA - Você é provavelmente o artista de jazz que mais vezes deixou sua marca na cultura pop.
HANCOCK - É que, se todos nós ficássemos sempre dentro de nossas torres de marfim, tocando "Round Midnight" [standard do gênero] de vez em quando, o jazz acabaria morrendo. Não se conquistariam novos ouvintes, os músicos envelheceriam e acabariam por desaparecer.
Qual seria o resultado de algo assim? O jazz morreria, e não haveria saída.

— A íntegra desta entrevista saiu no "El País". Tradução de Clara Allain.

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