domingo, 5 de abril de 2009

Entrevista com Zuza

Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo" de 05/abril/2009, no "Caderno2"

"Pixinguinha mudou minha maneira de ver a MPB"

Desde a década de 1950, o nome do produtor musical, escritor, jornalista e crítico Zuza Homem de Mello está associado à grande maioria dos projetos ligados à música brasileira — na televisão e no rádio, em festivais e nas principais publicações do País.

Nos anos 1970, ele levou a sua já então extensa experiência como diretor musical à série de shows "O Fino da Música", em São Paulo, na qual se apresentaram tanto artistas consagrados — caso de Elis Regina e Elizeth Cardoso — como outros em início de carreira (João Bosco, Ivan Lins e Alcione, por exemplo).

Entre os livros de Zuza destacam-se "A Era dos Festivais", "A Canção no Tempo" e "Eis Aqui os Bossa-Nova".

Qual disco ou música mudou sua maneira de ver o mundo?

Minha maneira de ver a música brasileira mudou quando vi Pixinguinha tocar no antigo Teatro Colombo, do Brás. Meus ídolos eram Luiz Gonzaga e Mário Reis e com Pixinguinha descobri a liberdade do jazz na música brasileira.

Que obra o senhor detestou à primeira vista e passou a venerar depois?

A de Walter Franco. Estava errado. É um criador rebelde, à frente de seu tempo e dos presunçosos transgressores falsamente exaltados que vão sendo esquecidos. A obra do Walter cresce cada vez que é ouvida.

Qual é o disco ruim que o senhor adora ouvir, mas tem vergonha de dizer que gosta?

Sem vergonha alguma, apesar da formação jazzística, adoro os discos de Roberta Miranda, Nubia Lafayette, Nalva Aguiar, Marinês, Tonico e Tinoco entre outros do universo de artistas amados pelo povo mais simples. São diferenciados da mediocridade laureada e dela separados por uma tênue divisória.

Que artista o senhor não acha tão bom, mas que todo mundo acha?

Marisa Monte. Admiro seu talento e o cuidado que ela tem com a carreira, mas as interpretações não me convencem. O oposto de Nana Caymmi ou Adriana Calcanhotto.

Qual clássico da MPB o senhor acredita que não merece esse título?

Posso inverter a questão? Jackson do Pandeiro nunca teve um LP clássico, nunca foi tratado como Luiz Gonzaga. Bastava deixá-lo gravar à vontade com bons músicos nordestinos. Com o "rei do ritmo", a oportunidade de um clássico foi perdida para sempre.

Que canção considerada clássica mereceria uma letra melhor?

Concordo com o Hermínio Bello de Carvalho. A letra de "Só Danço Samba" é descuidada e é do mestre Vinicius de Moraes. Acontece nas melhores famílias. Em compensação, a única letra conhecida de Jayme Silva é criativa e a mais divertida da bossa nova, "O Pato".

Qual disco o senhor imaginou que seria ótimo e frustrou suas expectativas?

"Babando Lamartine" com As Frenéticas. Reuniria a fome com a vontade de comer num clássico do nonsense. Em vez de um jantar foi um lanchinho sem a menor graça.

Que disco fez o senhor passar uma noite em claro analisando o que tinha ouvido?

Foi literalmente uma noite em claro na antiga casa do Diogo Pacheco e Maria José de Carvalho, no Ipiranga, anos 50. Com outros amigos ouvimos apenas os dois lados de um disco: "Juramento Falso" e a valsa "Lábios Que Beijei", com Orlando Silva.

Qual o senhor nunca deixa de ouvir? Por quê?

Os de João Gilberto, Tom Jobim, Jacob do Bandolim, Duke Ellington, Bill Evans, Thelonious Monk, Nuevo Quinteto Real de Horacio Salgán, Stravinski, Ravel, Debussy e os Concertos para Piano de Mozart. Não são afetados pela passagem do tempo e, a cada vez que ouço, vibro mais, mais me encanto com as letras das canções, mais sorrio cantarolando as melodias, mais admiro as soluções harmônicas, mais sinto prazer em viver.

O senhor é mais Caetano Veloso ou Chico Buarque? Maria Bethânia ou Gal Costa? Por quê?

É como comparar Cartola com Paulinho da Viola. Quantos países têm quatro artistas desse nível em pleno vigor criativo por mais de 40 anos? Estão na linha de frente da MPB, a que o mundo louva. Tenho admiração especial por Maria Bethânia, a única de sua geração que não sofreu influência de João Gilberto.

De qual compositor(a), grupo ou cantor(a) o senhor tem todos os discos?

Com uns 300 LPs de Duke Ellington acreditava estar próximo de todos os seus discos. Ledo engano. Dos brasileiros, penso ter tudo de Paulinho da Viola e certamente vou continuar com o que vier.

Que unanimidade da MPB o senhor não tem interesse?

Quem lida profissionalmente com a música deve saber reconhecer quem são os que conduzem a canção brasileira no rumo contrário ao de sua grandeza. Nesse sentido, existem algumas falsas unanimidades. É o caso, por exemplo, de Zezé di Camargo, cuja obra é montada sobre a mesma fórmula, que segue por um caminho previsível e vulgar. Suas tentativas de composição não passam do que há de mais rasteiro, sem a menor imaginação.

Qual músico o senhor admira por combinar atitude e qualidade artística?

João Bosco.

Que artista, na sua opinião, começou mal a carreira discográfica e depois deslanchou?
Zizi Possi. Era uma grande cantora, mas só ganhou prestígio quando começou a gravar um repertório à altura.

Qual bom disco mal gravado mereceria ser refeito hoje pelo artista original?

As versões originais são quase sempre superiores às regravações. A primeira gravação transpira uma espontaneidade que fica registrada e dificilmente é repetida. Não me dou muito bem com novas versões ou rock em versões acústicas. Tempo perdido.

Aponte um disco que considera um clássico instantâneo.

Elis e Tom. Nesse caso, novamente se reuniu a fome com a vontade de comer, mas dessa vez foi um banquete do qual o mundo se regala até hoje. Chega a ser covardia.

Qual a melhor e a pior regravação de um clássico da MPB?

O primeiro disco de João Gilberto já tem quatro: "Rosa Morena", "Morena Boca de Ouro", "Aos Pés da Cruz" e "É Luxo Só". Quando gravou "Samba do Avião" em 1995, talvez para uma releitura excêntrica, Marina cometeu um erro frequente. O avião se espatifou na aterrissagem.

E outro, lançado nos últimos dez anos, que está entre os melhores de todos os tempos?

O duplo "Ouro Negro", produção de Zé Nogueira e Mario Adnet no resgate da obra de um músico superior, Moacir Santos. Há três menções honrosas: "Música Ligeira" com o grupo mais original destes dez anos (Mario Manga, Fabio Tagliaferri e Rodrigo Rodrigues), desfeito com a morte de Rodrigo. "Achou", segundo disco de Dante Ozzetti, e "Outra Praia", de Swami Jr., que têm vitalidade contemporânea. Nada que seja ouvido naqueles programinhas que todos sabem quais são.

Que artista ou banda badalada pela crítica o senhor considera inferior?

A grande maioria do rock brasileiro. O Skank é rara exceção.

Qual foi o show que mais marcou sua vida?

Mesmo após a primeira resposta, não posso me furtar em destacar os de Ray Charles como os mais tocantes. Os mais empolgantes: de Little Richard e Willie Nelson nos Estados Unidos, de Morais Moreira e Tim Maia no Brasil. O mais arrebatador foi o concerto de jazz no Carnegie Hall, em 29 de novembro de 1957, com a orquestra de Dizzy Gillespie, depois um jovem pouco conhecido, Ray Charles, seguido do quarteto de Thelonious Monk com John Coltrane, do quarteto de Zoot Sims com Chet Baker, do trio de Sonny Rollins e de Billie Holiday, ao final. Ainda guardo na memória alguns daqueles sons, era estudante de música e o ingresso custou US$ 3.

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