Texto publicado no jornal "The New York Times", traduzido para o "UOL Notícias" em 26/abril/2009
Sobre a efemeridade das mídias
por Umberto Eco
No encerramento da Escola para Livreiros Umberto e Elisabetta Mauri, em Veneza, falamos, entre outras coisas, sobre a efemeridade dos suportes da informação. Foram suportes da informação escrita a estela egípcia, a tábua de argila, o papiro, o pergaminho e, evidentemente, o livro impresso. Este último, até agora, demonstrou que sobrevive bem por 500 anos, mas só quando se trata de livros feitos de papel de trapos. A partir de meados do século 19 passou-se ao papel de polpa de madeira, e parece que este tem uma vida máxima de 70 anos (com efeito, basta consultar jornais ou livros dos anos 1940 para ver como muitos deles se desfazem ao ser folheados).
Portanto, há muito tempo se realizam congressos e se estudam meios diferentes para salvar todos os livros que abarrotam nossas bibliotecas: um dos que têm maior êxito (mas quase impossível de realizar para todos os livros existentes) é escanear todas as páginas e copiá-las para um suporte eletrônico.
Mas aqui surge outro problema: todos os suportes para a transmissão e conservação de informações, da foto ao filme cinematográfico, do disco à memória USB que usamos no computador, são mais perecíveis que o livro. Isso fica muito claro com alguns deles: nas velhas fitas cassete, pouco tempo depois a fita se enrolava toda, tentávamos desemaranhá-la enfiando um lápis no carretel, geralmente com resultado nulo; as fitas de vídeo perdem as cores e a definição com facilidade, e se as usarmos para estudar, rebobinando-as e avançando com frequência, danificam-se ainda mais cedo.
Tivemos tempo suficiente para ver quanto podia durar um disco de vinil sem ficar riscado demais, mas não para verificar quanto dura um CD-ROM, que, saudado como a invenção que substituiria o livro, saiu rapidamente do mercado porque podíamos acessar online os mesmos conteúdos por um custo muito menor. Não sabemos quanto vai durar um filme em DVD, sabemos somente que às vezes começa a nos dar problemas quando o vemos muito. E igualmente não tivemos tempo material para experimentar quanto poderiam durar os discos flexíveis de computador: antes de podermos descobrir foram substituídos pelos CDs, e estes pelos discos regraváveis, e estes pelos "pen drives".
Com o desaparecimento dos diversos suportes também desapareceram os computadores capazes de lê-los (creio que ninguém mais tem em casa um computador com leitor de disco flexível), e se alguém não copiou no suporte sucessivo tudo o que tinha no anterior (e assim por diante, supostamente durante toda a vida, a cada dois ou três anos), o perdeu irremediavelmente (a menos que conserve no sótão uma dúzia de computadores obsoletos, um para cada suporte desaparecido).
Portanto, sabemos que todos os suportes mecânicos, elétricos e eletrônicos são rapidamente perecíveis, ou não sabemos quanto duram e provavelmente nunca chegaremos a saber. Enfim, basta um pico de tensão, um raio no jardim ou qualquer outro acontecimento muito mais banal para desmagnetizar uma memória. Se houvesse um apagão bastante longo não poderíamos usar nenhuma memória eletrônica.
Mesmo tendo gravado em meu computador todo o "Quixote", não o poderia ler à luz de uma vela, em uma rede, em um barco, na banheira, enquanto um livro me permite fazê-lo nas piores condições. E se o computador ou o e-book caírem do quinto andar estarei matematicamente seguro de que perdi tudo, enquanto se cair um livro no máximo se desencadernará completamente.
Os suportes modernos parecem criados mais para a difusão da informação do que para sua conservação. O livro, por sua vez, foi o principal instrumento da difusão (pense no papel que desempenhou a Bíblia impressa na Reforma protestante), mas ao mesmo tempo também da conservação.
É possível que dentro de alguns séculos a única forma de ter notícias sobre o passado, quando todos os suportes eletrônicos tiverem sido desmagnetizados, continue sendo um belo incunábulo. E, dentre os livros modernos, os únicos sobreviventes serão os feitos de papel de alta qualidade, ou os feitos de papel livre de ácidos, que muitas editoras hoje oferecem.
Não sou um conservador reacionário. Em um disco rígido portátil de 250 gigabytes gravei as maiores obras-primas da literatura universal e da história da filosofia: é muito mais cômodo encontrar no disco rígido em poucos segundos uma frase de Dante ou da "Summa Theologica" do que levantar-se e ir buscar um volume pesado em estantes muito altas. Mas estou feliz porque esses livros continuam em minha biblioteca, uma garantia da memória para quando os instrumentos eletrônicos entrarem em pane.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Umberto Eco é professor de semiótica, crítico literário e romancista. Entre seus principais livros estão "O Nome da Rosa" e o "Pêndulo de Foucault".
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(*) segundo o "Dicionário Aurélio - Século XXI":
• incunábulo
[Do lat. *incunabulu, 'berço', singular do latim incunabula (pluralia tantum)]
Substantivo masculino
1. Começo, origem
2. Livro impresso nos primórdios da imprensa, i. e., a partir de meados do séc. XV, até o último dia, inclusive, do séc. XVI
3. Impresso produzido nos primórdios de qualquer sistema de gravar, compor ou imprimir
domingo, 26 de abril de 2009
sábado, 25 de abril de 2009
"MPB" já era!?
Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 25/abril/2009, no caderno "Opinião"
Mais que "MPB"
por Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Outro dia, numa reunião do Museu da Imagem e do Som, aqui no Rio, alguém sugeriu que o MIS, já pioneiro dos museus do gênero no Brasil, banisse de seus documentos e discussões a sigla "MPB". E, até pedagogicamente, voltasse a usar as palavras certas: música popular brasileira.
Ué, dirá você, não é a mesma coisa? "MPB" não é apenas uma abreviatura de "música popular brasileira"? Antes cêsse, mas não ésse. Quando foi criada, por volta de 1965 ou 1966, significava um tipo de música então emergente, que não se sabia bem o que era — mas já não era bossa nova, não queria mais ser o samba e, muito menos, iê-iê-iê.
Seu primeiro produto, ainda sem o rótulo, pode ter sido "Arrastão", de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Logo vieram "Lunik 9", de Gilberto Gil, "Upa, neguinho", de Edu e Guarnieri, "Roda Viva", de Chico Buarque, e outras que, com um certo "conteúdo" em comum, também não se encaixavam em nenhum gênero familiar. Donde só podiam ser "MPB".
Quando a "MPB" minguou, dois ou três anos depois, a sigla sobreviveu e começou a ser aplicada — até hoje — a toda música produzida no Brasil, do padre José Mauricio ao padre Marcelo e de Chiquinha Gonzaga ao É o Tchan. Com isso, deseducaram-se várias gerações quanto à memória da nossa diversidade rítmica, até então classificada por sambas (em suas mil variações), marchas, choros, baiões, frevos, valsas, foxes, baladas, cocos etc. Virou tudo "MPB".
Mas não para sempre, espero. Se o exemplo do MIS vingar, vamos passar a chamar "Garota de Ipanema" de samba, "Alegria, Alegria", de marchinha, "Domingo no Parque", de baião, "Travessia", de toada, "Caminhando", de guarânia, "Mania de Você", de rumba, "Beatriz", de valsa, ou "Como uma Onda", de bolero. Que, muito mais que "MPB", é o que eles são.
Mais que "MPB"
por Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Outro dia, numa reunião do Museu da Imagem e do Som, aqui no Rio, alguém sugeriu que o MIS, já pioneiro dos museus do gênero no Brasil, banisse de seus documentos e discussões a sigla "MPB". E, até pedagogicamente, voltasse a usar as palavras certas: música popular brasileira.
Ué, dirá você, não é a mesma coisa? "MPB" não é apenas uma abreviatura de "música popular brasileira"? Antes cêsse, mas não ésse. Quando foi criada, por volta de 1965 ou 1966, significava um tipo de música então emergente, que não se sabia bem o que era — mas já não era bossa nova, não queria mais ser o samba e, muito menos, iê-iê-iê.
Seu primeiro produto, ainda sem o rótulo, pode ter sido "Arrastão", de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Logo vieram "Lunik 9", de Gilberto Gil, "Upa, neguinho", de Edu e Guarnieri, "Roda Viva", de Chico Buarque, e outras que, com um certo "conteúdo" em comum, também não se encaixavam em nenhum gênero familiar. Donde só podiam ser "MPB".
Quando a "MPB" minguou, dois ou três anos depois, a sigla sobreviveu e começou a ser aplicada — até hoje — a toda música produzida no Brasil, do padre José Mauricio ao padre Marcelo e de Chiquinha Gonzaga ao É o Tchan. Com isso, deseducaram-se várias gerações quanto à memória da nossa diversidade rítmica, até então classificada por sambas (em suas mil variações), marchas, choros, baiões, frevos, valsas, foxes, baladas, cocos etc. Virou tudo "MPB".
Mas não para sempre, espero. Se o exemplo do MIS vingar, vamos passar a chamar "Garota de Ipanema" de samba, "Alegria, Alegria", de marchinha, "Domingo no Parque", de baião, "Travessia", de toada, "Caminhando", de guarânia, "Mania de Você", de rumba, "Beatriz", de valsa, ou "Como uma Onda", de bolero. Que, muito mais que "MPB", é o que eles são.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Novas cantoras e o "marketing estratégico"
Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo" de 22/abril/2009, no "Caderno2"
Aydar fica mais próxima de seus pares
por Lauro Lisboa Garcia
No segundo álbum, "Peixes Pássaros Pessoas", cantora aprimora o canto, mas oscila na escolha do repertório, que privilegia o samba e composições de Duani
Quando lançou o primeiro álbum — "Kavita 1" (2006) —, Mariana Aydar teve de enfrentar suspeitas de favorecimentos na mídia pelo fato de ser filha dos famosos Bia Aydar e Mário Manga. Com regravações de material antigo, o CD não fez diferença no mar de novas cantoras sem sal que morrem na praia.
No segundo, "Peixes Pássaros Pessoas" (Universal), Mariana mudou, gravando material inédito de seus pares e contemporâneos, meio na onda do sambinha de isopor, tipo Maria Rita.
Encontrou seu caminho, mas persiste um certo marketing estratégico em torno dela — ou seja, o velho esquemão de gravadora a forçar a barra.
Caetano Veloso escreveu o press release, Zeca Pagodinho participa de uma faixa, "O Samba me Persegue", Kassin, referência de bacanas, assina a produção com Duani, namorado da cantora.
Até aí, nada demais, se o disco fosse algo sensacional a justificar o hype. Não é.
Caetano fala no texto sobre certa implicância da crítica com essas cantoras sedosas que resolveram mexer os pezinhos no terreiro do samba. O problema, porém, não é o gênero, é o que se extrai dele e como se faz.
Bom de samba é Rodrigo Campos, coautor de "Beleza", com Luísa Maita, gravada por Mariana. Mas Duani, que predomina no CD, não é do mesmo quilate. O samba que ele persegue é feito de clichês melódicos, meio bregas e com letras pueris. Há bons arranjos, mas nada de extraordinário.
É espantoso como o canto de Mariana evolui em canções de melhor acabamento, como "Tá?", de Carlos Rennó, Pedro Luís e Roberta Sá (leia letra no quadro), e "Peixes", do gaúcho Nenung, da banda Os The Darma Lovers. São os grandes achados do álbum, que valorizam sua voz.
Outro bom momento é "Nada Disso É Pra Você" (Rômulo Fróes/Clima). Ela própria assina como Kavita outra boa faixa, "Tudo Que Eu Trago no Bolso" (com Nuno Ramos).
Na faixa "Por Quê?", do recém-lançado CD "Tudo Que Respira Quer Comer", Carlos Careqa faz uma bem-humorada crítica ao fato de hoje todo mundo querer ser artista, o que leva a refletir sobre a questão da vaidade que se sobrepõe à aptidão.
É evidente que uns têm talento para determinadas atividades, outros não. Uns "se acham", outros se encontram em seu real valor.
Umas cantoras fazem escolhas certas, como Roberta Sá e Verônica Ferriani. Outras, cheias de si, como Ana Cañas, Marina de la Riva e Luciana Mello, parecem entender mais de pose do que de arte.
Dentre essas, Mariana pelo menos demonstra ter mais noção de equilíbrio sobre o "salto alto", mas ainda desperta dúvidas.
*****
"Tá?"
(Carlos Rennó, Pedro Luís e Roberta Sá)
Pra bom entendedor meia palavra bas-
Eu vou denunciar a sua ação nefas-
Você amarga o mar, deflora a flores-
Por onde você passa, o ar você empes-
Não tem medida a sua sanha imediatis-
Não tem limite o seu sonho consumis-
Você deixou na mata uma ferida expos-
Você descora as cores dos corais da cos-
Você aquece a Terra e enriquece à cus-
Do roubo do futuro e da beleza augus-
Mas de que vale tal riqueza? Grande bos-
Parece que de neto seu você não gos-
Você decreta morte à vida ainda em vis-
Você declara guerra à paz por mais benquis-
Não há em toda a fauna um animal tão bes-
Mas já tem gente vendo que você não pres-
Não vou dizer seu nome porque me desgas-
Pra bom entendedor meia palavra bas-
Tá?
Aydar fica mais próxima de seus pares
por Lauro Lisboa Garcia
No segundo álbum, "Peixes Pássaros Pessoas", cantora aprimora o canto, mas oscila na escolha do repertório, que privilegia o samba e composições de Duani
Quando lançou o primeiro álbum — "Kavita 1" (2006) —, Mariana Aydar teve de enfrentar suspeitas de favorecimentos na mídia pelo fato de ser filha dos famosos Bia Aydar e Mário Manga. Com regravações de material antigo, o CD não fez diferença no mar de novas cantoras sem sal que morrem na praia.
No segundo, "Peixes Pássaros Pessoas" (Universal), Mariana mudou, gravando material inédito de seus pares e contemporâneos, meio na onda do sambinha de isopor, tipo Maria Rita.
Encontrou seu caminho, mas persiste um certo marketing estratégico em torno dela — ou seja, o velho esquemão de gravadora a forçar a barra.
Caetano Veloso escreveu o press release, Zeca Pagodinho participa de uma faixa, "O Samba me Persegue", Kassin, referência de bacanas, assina a produção com Duani, namorado da cantora.
Até aí, nada demais, se o disco fosse algo sensacional a justificar o hype. Não é.
Caetano fala no texto sobre certa implicância da crítica com essas cantoras sedosas que resolveram mexer os pezinhos no terreiro do samba. O problema, porém, não é o gênero, é o que se extrai dele e como se faz.
Bom de samba é Rodrigo Campos, coautor de "Beleza", com Luísa Maita, gravada por Mariana. Mas Duani, que predomina no CD, não é do mesmo quilate. O samba que ele persegue é feito de clichês melódicos, meio bregas e com letras pueris. Há bons arranjos, mas nada de extraordinário.
É espantoso como o canto de Mariana evolui em canções de melhor acabamento, como "Tá?", de Carlos Rennó, Pedro Luís e Roberta Sá (leia letra no quadro), e "Peixes", do gaúcho Nenung, da banda Os The Darma Lovers. São os grandes achados do álbum, que valorizam sua voz.
Outro bom momento é "Nada Disso É Pra Você" (Rômulo Fróes/Clima). Ela própria assina como Kavita outra boa faixa, "Tudo Que Eu Trago no Bolso" (com Nuno Ramos).
Na faixa "Por Quê?", do recém-lançado CD "Tudo Que Respira Quer Comer", Carlos Careqa faz uma bem-humorada crítica ao fato de hoje todo mundo querer ser artista, o que leva a refletir sobre a questão da vaidade que se sobrepõe à aptidão.
É evidente que uns têm talento para determinadas atividades, outros não. Uns "se acham", outros se encontram em seu real valor.
Umas cantoras fazem escolhas certas, como Roberta Sá e Verônica Ferriani. Outras, cheias de si, como Ana Cañas, Marina de la Riva e Luciana Mello, parecem entender mais de pose do que de arte.
Dentre essas, Mariana pelo menos demonstra ter mais noção de equilíbrio sobre o "salto alto", mas ainda desperta dúvidas.
*****
"Tá?"
(Carlos Rennó, Pedro Luís e Roberta Sá)
Pra bom entendedor meia palavra bas-
Eu vou denunciar a sua ação nefas-
Você amarga o mar, deflora a flores-
Por onde você passa, o ar você empes-
Não tem medida a sua sanha imediatis-
Não tem limite o seu sonho consumis-
Você deixou na mata uma ferida expos-
Você descora as cores dos corais da cos-
Você aquece a Terra e enriquece à cus-
Do roubo do futuro e da beleza augus-
Mas de que vale tal riqueza? Grande bos-
Parece que de neto seu você não gos-
Você decreta morte à vida ainda em vis-
Você declara guerra à paz por mais benquis-
Não há em toda a fauna um animal tão bes-
Mas já tem gente vendo que você não pres-
Não vou dizer seu nome porque me desgas-
Pra bom entendedor meia palavra bas-
Tá?
terça-feira, 21 de abril de 2009
No mundo das aparências, uma surpresa
Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 21/abril/2009, no caderno "Ilustrada"
Senhora das tempestades
por João Pereira Coutinho
A interpretação de Susan Boyle deu à canção uma intensidade de desabar o teatro
TODA A gente fala de Susan Boyle. Quem? Bom, talvez você, leitor, tenha vivido em Marte nos últimos dias. Mas Susan Boyle está nas bocas do mundo precisamente desde o momento em que abriu a boca.
Susan é escocesa. Tem 47 anos. Desempregada. Solteira. Nunca foi beijada. Cuidou de mãe moribunda até 2007. Vive com um gato. Frequenta a igreja. E o coro da igreja. O aspecto não é promissor. Simplória. Aldeã.
E com demasiados sonhos na cabeça: quando entrou no palco do programa "Britain's Got Talent", mais um desses shows de TV para revelar talentos musicais anônimos, a audiência riu com seus modos um pouco grosseiros.
Um dos membros do júri, em pose condescendente, começou as hostilidades com um "What's your name, darling?", e "darling", no presente contexto, é de um paternalismo arrepiante. Susan Boyle respondeu: o nome e, depois, o nome que ela gostaria de ser na música. Elaine Paige. Nem mais. A diva dos musicais londrinos que já trabalhou com toda a gente que é gente.
Risos mil. Então soltaram a música. A audiência e o júri prepararam-se para o pior. E o pior veio, mas não exatamente como eles esperavam.
Susan Boyle cantava. Bem. Demais. A música, "I Dreamed a Dream", tema do musical "Les Misérables", era agora servida por capacidade vocal impressionante. Mas não apenas por capacidade vocal impressionante. A interpretação de Susan Boyle conferia à canção uma intensidade que fez desabar o teatro em choros e aplausos.
De Londres a Nova York, passando pelos milhões de internautas no YouTube, Susan Boyle é apresentada como a nova Elaine Paige.
Opinião pessoal? Não, Susan Boyle não é Elaine Paige. Nem poderia. Acredito em talento natural. Não acredito apenas em talento natural.
Mesmo Mozart, um caso sem aparente explicação humana, não seria possível sem a família e o meio musical onde nasceu e cresceu, capaz de fazer florescer o que já era puro gênio no pequeno Wolfgang.
Não se iludam, preguiçosos e indolentes: o talento natural pode ser o primeiro passo. Mas ainda existem todos os outros para dar, em anos infindos de trabalho e solidão pessoal.
Susan Boyle é um caso de talento natural evidente. Mas o que verdadeiramente me impressionou em toda essa história não foram apenas os dotes naturais daquela voz. Também não foi o gritante abismo entre a forma e o conteúdo — ou, se preferirem, o clichê romântico do patinho feio que se revela um cisne.
O que impressionou foi a escolha da canção e as palavras que a canção encerra, um pormenor que parece ter sido ignorado pela humanidade circundante. "I Dreamed a Dream", uma das raras canções audíveis de "Les Misérables", não é apenas um tema sobre sonhos desfeitos. É um tema sobre a "sorte", essa terrível palavra que os gregos conheciam bem mas que a nossa modernidade racionalista eliminou do léxico filosófico.
De acordo com a ideologia reinante, o que somos, o que temos e o que fazemos depende unicamente de nós. A felicidade humana é uma construção pessoal que exige método e esforço. O que implica, inversamente, que a infelicidade é o resultado da nossa incapacidade para sermos felizes. Haverá pensamento mais perverso?
Não creio. E, no entanto, ele é repetido, dia após dia, numa sociedade que se sente infeliz por não ser feliz, como se a felicidade não fosse também um produto de contingências várias, que escapam ao controle dos homens. O produto, no fundo, de oportunidades que vieram ou não vieram; da ação ou da inação de terceiros; e das mil vidas que poderíamos ter tido.
Como no tema musical que Susan Boyle canta com a intensidade própria de quem explica a sua biografia, os nossos sonhos não dependem só da nossa autonomia. Dependem dos "tigres da noite" ou das "tempestades imprevistas" que tantas vezes os envergonham e despedaçam.
Quando a febre passar e Susan Boyle regressar à aldeia e ao anonimato, a memória que deve ficar não é a de um talento escondido que teve os seus 15 minutos, ou 15 horas, ou 15 dias de fama.
O que deve ficar é a lição grandiosa de uma mulher que, na sua tocante simplicidade, disse a cantar o que provavelmente aprendeu com a vida. Que o inferno ou o paraíso, longe de serem prêmios exclusivamente humanos, repousam também nas mãos do destino.
E-mail do autor do texto: jpcoutinho@folha.com.br
Para ver a apresentação de Susan Boyle (legendas em português!):
http://www.youtube.com/watch?v=j15caPf1FRk
Para ver Elaine Paige cantando "I Dreamed a Dream":
http://www.youtube.com/watch?v=kZKKNwiltX0
Senhora das tempestades
por João Pereira Coutinho
A interpretação de Susan Boyle deu à canção uma intensidade de desabar o teatro
TODA A gente fala de Susan Boyle. Quem? Bom, talvez você, leitor, tenha vivido em Marte nos últimos dias. Mas Susan Boyle está nas bocas do mundo precisamente desde o momento em que abriu a boca.
Susan é escocesa. Tem 47 anos. Desempregada. Solteira. Nunca foi beijada. Cuidou de mãe moribunda até 2007. Vive com um gato. Frequenta a igreja. E o coro da igreja. O aspecto não é promissor. Simplória. Aldeã.
E com demasiados sonhos na cabeça: quando entrou no palco do programa "Britain's Got Talent", mais um desses shows de TV para revelar talentos musicais anônimos, a audiência riu com seus modos um pouco grosseiros.
Um dos membros do júri, em pose condescendente, começou as hostilidades com um "What's your name, darling?", e "darling", no presente contexto, é de um paternalismo arrepiante. Susan Boyle respondeu: o nome e, depois, o nome que ela gostaria de ser na música. Elaine Paige. Nem mais. A diva dos musicais londrinos que já trabalhou com toda a gente que é gente.
Risos mil. Então soltaram a música. A audiência e o júri prepararam-se para o pior. E o pior veio, mas não exatamente como eles esperavam.
Susan Boyle cantava. Bem. Demais. A música, "I Dreamed a Dream", tema do musical "Les Misérables", era agora servida por capacidade vocal impressionante. Mas não apenas por capacidade vocal impressionante. A interpretação de Susan Boyle conferia à canção uma intensidade que fez desabar o teatro em choros e aplausos.
De Londres a Nova York, passando pelos milhões de internautas no YouTube, Susan Boyle é apresentada como a nova Elaine Paige.
Opinião pessoal? Não, Susan Boyle não é Elaine Paige. Nem poderia. Acredito em talento natural. Não acredito apenas em talento natural.
Mesmo Mozart, um caso sem aparente explicação humana, não seria possível sem a família e o meio musical onde nasceu e cresceu, capaz de fazer florescer o que já era puro gênio no pequeno Wolfgang.
Não se iludam, preguiçosos e indolentes: o talento natural pode ser o primeiro passo. Mas ainda existem todos os outros para dar, em anos infindos de trabalho e solidão pessoal.
Susan Boyle é um caso de talento natural evidente. Mas o que verdadeiramente me impressionou em toda essa história não foram apenas os dotes naturais daquela voz. Também não foi o gritante abismo entre a forma e o conteúdo — ou, se preferirem, o clichê romântico do patinho feio que se revela um cisne.
O que impressionou foi a escolha da canção e as palavras que a canção encerra, um pormenor que parece ter sido ignorado pela humanidade circundante. "I Dreamed a Dream", uma das raras canções audíveis de "Les Misérables", não é apenas um tema sobre sonhos desfeitos. É um tema sobre a "sorte", essa terrível palavra que os gregos conheciam bem mas que a nossa modernidade racionalista eliminou do léxico filosófico.
De acordo com a ideologia reinante, o que somos, o que temos e o que fazemos depende unicamente de nós. A felicidade humana é uma construção pessoal que exige método e esforço. O que implica, inversamente, que a infelicidade é o resultado da nossa incapacidade para sermos felizes. Haverá pensamento mais perverso?
Não creio. E, no entanto, ele é repetido, dia após dia, numa sociedade que se sente infeliz por não ser feliz, como se a felicidade não fosse também um produto de contingências várias, que escapam ao controle dos homens. O produto, no fundo, de oportunidades que vieram ou não vieram; da ação ou da inação de terceiros; e das mil vidas que poderíamos ter tido.
Como no tema musical que Susan Boyle canta com a intensidade própria de quem explica a sua biografia, os nossos sonhos não dependem só da nossa autonomia. Dependem dos "tigres da noite" ou das "tempestades imprevistas" que tantas vezes os envergonham e despedaçam.
Quando a febre passar e Susan Boyle regressar à aldeia e ao anonimato, a memória que deve ficar não é a de um talento escondido que teve os seus 15 minutos, ou 15 horas, ou 15 dias de fama.
O que deve ficar é a lição grandiosa de uma mulher que, na sua tocante simplicidade, disse a cantar o que provavelmente aprendeu com a vida. Que o inferno ou o paraíso, longe de serem prêmios exclusivamente humanos, repousam também nas mãos do destino.
E-mail do autor do texto: jpcoutinho@folha.com.br
Para ver a apresentação de Susan Boyle (legendas em português!):
http://www.youtube.com/watch?v=j15caPf1FRk
Para ver Elaine Paige cantando "I Dreamed a Dream":
http://www.youtube.com/watch?v=kZKKNwiltX0
sábado, 18 de abril de 2009
13 performances inéditas
Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo" de 18/abril/2009, no "Caderno2"
A Dolores Duran que só poucos puderam ouvir
por Sérgio Augusto
Na antologia inédita que vem por aí, ela canta em inglês e em francês, com Baden Powell ao violão
As três maiores cantoras brasileiras reveladas na década de 1950 morreram precocemente: Dolores Duran, aos 29 anos; Sylvinha Telles, aos 33; Maysa, aos 34 — as duas últimas em acidentes de carro.
Outro ponto em comum: eram legítimos produtos de exportação. Até porque sabiam cantar em outras línguas, poderiam ter feito carreira no exterior, mas apenas Maysa explorou esse veio. Ela também foi a única das três biografada numa minissérie de TV, cuja repercussão deixou a anos-luz de distância a insípida cinebiografia que sobre Dolores (A Noite do Meu Bem) Jece Valadão dirigiu em 1968, com Joana Fomm no papel da cantora.
Sylvinha tinha um jeito luminoso de cantar, Maysa também compunha, mas a obra que em apenas nove anos de carreira Dolores nos legou, sobretudo como autora, só tem equivalentes entre os marmanjos que antes dela também fizeram da dor de cotovelo uma inesgotável fonte de inspiração, como Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues e Antônio Maria.
Precursora da Bossa Nova, inclusive por suas três parcerias com Tom Jobim ("Se É por Falta de Adeus", "Por Causa de Você" e "Estrada do Sol"), tinha tudo para uma participação fulgurante no movimento. Não foi além, contudo, do histórico show da Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio, em 22 de setembro de 1959. Morreria 32 dias depois, dormindo, o coração exaurido por três tipos de excessos: de estresse, de álcool e de barbitúricos.
Na comparação com os grandes ídolos femininos da época, como Marlene, Emilinha Borba, Ângela Maria, Dalva de Oliveira e as irmãs Linda e Dircinha Batista, seu sucesso foi pouco mais que modesto. Teria ficado ao deus-dará se dependesse de fãs-clubes ou de um alentado dossiê de reportagens na Revista do Rádio para ser crooner na noite e da Rádio Nacional.
Sua ascensão ao estrelato deveu-se acima de tudo à admiração que lhe devotavam os colegas de profissão e a elite social e intelectual que todas as noites enchia a cara nas casas noturnas de Copacabana.
Nascida em 7 de junho de 1930 na Saúde, bairro pobre do Centro do Rio, e criada nos subúrbios de Irajá e Pilares, teve uma infância de privações ao lado da mãe viúva e quatro irmãos.
O rádio a salvou. No mais reputado programa de calouros da época, comandado por Ary Barroso, tirou a nota máxima, cantando "Vereda Tropical" em português e espanhol. Tinha apenas 10 anos.
Logo a puseram em outra atração radiofônica da Tupi, Escada de Jacó, e no radioteatro infantil da emissora. Seis anos mais tarde, venceria um concurso de boleros e assinaria contrato com o Vogue, o mais célebre nightclub carioca. Precisou falsificar a idade para virar crooner de rádio e boate.
Adotada pela nata de cronistas e compositores, refinou-se por osmose e até mudou um pouco de personalidade, disfarçando seu jeitão alegre e brincalhão com uma persona compenetrada e sofrida, mais de acordo com o seu repertório musical, mas não com o seu rosto de lua cheia, graças ao qual ganhou o apelido de Bochecha.
Vez por outra, tinha uma recaída e adotava ritmos "plebeus" (um de seus maiores sucessos foi o gaiato baião de Chico Anísio, "Filha de Chico Brito", gravado em 1956) e alguns buliçosos sambinhas de Billy Blanco, como "A Banca do Distinto", "Pano Legal" e "Estatutos de Boate".
Mesmo eleita a melhor cantora de 1955, não se deu por satisfeita. Queria ser mais popular. Não conseguiu. Era outra a sua turma: Tom, Lúcio Alves, Tito Madi, Dóris Monteiro, Os Cariocas, Agostinho dos Santos, Johnny Alf, Luiz Bonfá, João Donato, Newton Mendonça, Vinicius de Moraes etc.
Um ano antes de sua morte, excursionou pela então União Soviética, com Nora Ney, Jorge Goulart e o Conjunto Farroupilha, desistindo em Moscou de prosseguir a turnê até a China, que de bom grado trocou por um mês em Paris, onde se apresentou num barzinho muito prestigiado por brasileiros.
Seu último disco, gravado ao vivo numa boate paulistana, "Dolores no Michel de São Paulo", foi lançado postumamente, pelo selo Copacabana. Nunca saiu em CD. Neste formato, apenas uma compilação de seus maiores sucessos ainda pode ser encontrada à venda, se a sorte estiver do seu lado.
Nos próximos dias, a Biscoito Fino põe no mercado uma preciosidade: um CD com 13 performances inéditas da cantora. Com o título de "Dolores Duran entre Amigos", reúne 10 interpretações registradas em fita magnética durante uma festa na casa do produtor de TV Geraldo Casé, entre 1958 e 1959, mais três, gravadas em outro sarau doméstico, em 1949 e 1953. É um tesouro arqueológico, exumado pela jornalista Angela de Almeida, que a ele chegou quando pesquisava a vida e a obra da cantora.
Entre os amigos, longe dos compromissos das boates, onde sempre lhe pediam para cantar "A Noite do Meu Bem", "Fim de Caso", "Manias", "Ideias Erradas" e outros highlights do seu repertório, Dolores costumava relaxar em inglês, francês, italiano e espanhol.
Reza a lenda que Ella Fitzgerald encantou-se ao ouvi-la cantar "My Funny Valentine", na boate Baccarat, e que Charles Aznavour entrou em êxtase com suas interpretações de canções de Edith Piaf, no Little Club.
Só quatro músicas brasileiras ela apresentou na tertúlia organizada por Casé: "Neste Mesmo Lugar" (um dos maiores hits de Dalva de Oliveira), "Coisa Mais Triste" (de Billy Blanco), "Marca na Parede" (de Ismael Neto e Mario Faccini) e "Mocinho Bonito" (sucesso de Blanco lançado por Doris Monteiro).
O resto viera de fora, consagrado pelas vozes de Ella ("How High the Moon"), Julie London ("Cry me a River"), Piaf ("Hymne à l?Amour"), Eddie Cantor ("Makin' Whoopee"), Fred Astaire ("Cheek to Cheek") e Judy Garland ("Over the Rainbow").
Acompanhando Dolores, três ases instrumentais: os violonistas Baden Powell e Manoel da Conceição (mais conhecido como Mão de Vaca) e Chiquinho do Acordeom. Que jam-session, hem?
A descontração dá a tônica. Dolores deleita-se num scat singing (durante "How High the Moon"), conversa com Powell ("Eu canto em mi, você veio de ré"), pergunta ao dono da casa "se já está gravando", cumprimenta um conviva retardatário, mas jamais condescende com o amadorismo.
As três faixas-bônus que fecham o CD revelam a Dolores que, desde o final dos anos 1940, ainda com seu nome de batismo (Adiléia Silva da Rocha), frequentava o animado apartamento do casal Raul e Helenita Marques de Azevedo, avós da cantora Marisa Monte, no Morro da Viúva, Zona do Sul do Rio.
Ela tinha só 19 anos quando lá cantou "Body and Soul", acompanhada ao piano por Jacques Klein, e "Eu sem Você", de Billy Blanco, com o próprio, ainda estudante de arquitetura, fazendo dupla ao violão com o piano de Klein. A terceira bonificação é uma canja de 1953, com Adiléia, já Dolores Duran, ensaiando o samba-canção de Blanco, "Praça Mauá", que dois anos mais tarde gravaria profissionalmente.
O ano de 1955 não foi o mais importante da carreira de Dolores só por causa do prêmio que os críticos de música cariocas lhe deram mas sobretudo porque pouco antes de completar 25 anos, ela começou a compor. Com a cara e a coragem.
Tinha noções de violão, mas uma pauta de música era, para ela, um hieróglifo. Quando baixava a inspiração, memorizava a melodia, que depois cantarolava para alguém versado em pentagramas transcrevê-la. Esse alguém quase sempre era o pianista Ribamar, seu parceiro em várias músicas: "Ideias Erradas", "Quem Sou Eu?", "Pela Rua", "Se Eu Tiver" e as póstumas "Ternura Antiga" e "Quem Foi?". Mas suas obras-primas ou foram aquelas musicadas por Tom Jobim ou por ela própria.
A propósito, é pura lenda aquela história de que ela teria escrito os versos de "Por Causa de Você" de uma sentada, num lenço de papel, com o lápis de sobrancelha. Ela de fato tinha o hábito de rascunhar rimas e estrofes em guardanapos, com o lápis de sobrancelha, mas a letra de "Por Causa de Você" não brotou de repente, com as últimas notas do piano do Tom ainda vibrando no ar. Na verdade, Tom Jobim precisou tocar a melodia várias vezes para que ela a decorasse e, depois, com a necessária calma, escrevesse os versos. Vinicius de Moraes, a quem a letra fora originalmente encomendada, foi o segundo a reconhecer que Dolores Duran fizera um trabalho difícil de superar.
Mulheres abandonadas, casais esfacelados, terríveis crises de solidão e humilhantes pedidos de perdão — era disso que quase todas as canções de Dolores tratavam. "Estrada do Sol" foi uma rara exceção. Aquela alegre manhã, com os pingos da chuva ainda a brilhar, não se repetiria outra vez em suas composições e raramente, diga-se, aconteceu em sua vida particular, pois não foi das mais felizes a carreira amorosa de Dolores.
Se tivesse feito apenas "Por Causa de Você" e os quatro solos que melhor caracterizam seu estilo ("Castigo", "A Noite do Meu Bem", "Fim de Caso" e "Solidão"), já mereceria o altar em que ainda em vida foi posta pelos seus incontáveis devotos. Santa Dolores.
A música do século 20
Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 18/abril/2009, no caderno "Ilustrada"
LIVROS
Crítica/"O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20"
Ross biografa século desnorteador
Obra de norte-americano peca por mau humor com música pós-1970, mas é melhor relato de tempos de mudanças e incertezas
por Celso Loureiro Chaves, especial para a Folha
Adrian Leverkühn, compositor que nunca existiu, é um dos personagens principais de "O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20", do jornalista norte-americano Alex Ross. Leverkühn foi imaginado pelo escritor Thomas Mann em "Doutor Fausto" e percorre "O Resto É Ruído" como um fantasma, uma alegoria de tudo o que ocorreu na música do século passado.
Ele aparece tantas vezes que a certa altura não resta ao leitor senão berrar "Fora Thomas Mann!" e pedir que os compositores reais apareçam. É que eles já são suficientes para demonstrar as mudanças estéticas, os dogmatismos, as incertezas ideológicas que dominaram a música do século 20.
Talvez Ross, um dos convidados da Flip deste ano (leia mais abaixo), não tenha dado a última palavra sobre o assunto, mas "O Resto É Ruído" é o mais perto que se chegou de transformar em leitura instigante a arte mais incompreendida e menos apreciada de todas as artes do século passado.
Há outro compositor que atravessa o livro quase de ponta a ponta: Igor Stravinsky. Ele aparece bem no início da narrativa e só vai sumir umas 400 páginas adiante, depois de muitas interrupções e divagações que são os próprios desvios das músicas do século passado.
Essa é a maneira de ouvir o século 20 e também de organizar um livro sobre ele -ser linear enquanto for possível e, quando não, abrir desvios espetaculares como o mergulho nas relações promíscuas entre a música do século 20 e as políticas e os regimes, uma promiscuidade até bem comum mas que parecia ter sido enterrada no século 19.
Divisão da música
"O Resto É Ruído" confirma a divisão da música do século 20 em três blocos: um para a música moderna "antiga" até 1933, um interlúdio de guerra até 1945 e um bloco bastante congestionado que traz a música até 2000.
Alex Ross trata bem os dois primeiros blocos, com músicas que já foram bem biografadas e sociologizadas. Mas o terceiro se desfaz em generalidades, e o que era objetividade se transforma em desfile de nomes e obras, uma correria sem fim.
Há impaciência e mau humor com a música pós-1970, como se as suas explosões de estilo e suas estéticas opostas ainda não permitissem linearidade de abordagem ou uma boa porta de entrada.
Não é o único problema de "O Resto É Ruído". O olhar do autor sobre as músicas do século passado é todo norte-americano. Isso explica o exagero dos capítulos sobre Shostakovich, Britten e Sibelius, que só nos Estados Unidos são centrais, e a ausência quase total de compositores latino-americanos.
A edição brasileira deixa um pouco a desejar. A tradução para o português é desajeitada e, além de formalizar a prosa informal de Alex Ross, às vezes contradiz o texto original.
Incontornável
Mesmo assim, este é o melhor livro que se teve até hoje nesse tipo de texto, que prefere descrever do que analisar e que usa a palavra para evitar o exemplo musical. Enquanto a crônica definitiva da música pós-1970 não é escrita, "O Resto É Ruído" torna-se a biografia incontornável da música pré-1970, reunindo um corpo de informações difícil de ser encontrado num só lugar.
Até onde sua objetividade alcança, o livro é um relato extremamente feliz e exato de um dos séculos mais desnorteadores de toda a música. Tão desnorteador que até compositores imaginários tiveram que ser criados para que também eles fizessem músicas que ninguém nunca ouviu.
CELSO LOUREIRO CHAVES é pianista, compositor e professor de história da música da UFRGS.
----------------
O RESTO É RUÍDO - OUVINDO O SÉCULO 20
Autor: Alex Ross
Tradução: Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 64 (688 págs.)
Avaliação: bom
LIVROS
Crítica/"O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20"
Ross biografa século desnorteador
Obra de norte-americano peca por mau humor com música pós-1970, mas é melhor relato de tempos de mudanças e incertezas
por Celso Loureiro Chaves, especial para a Folha
Adrian Leverkühn, compositor que nunca existiu, é um dos personagens principais de "O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20", do jornalista norte-americano Alex Ross. Leverkühn foi imaginado pelo escritor Thomas Mann em "Doutor Fausto" e percorre "O Resto É Ruído" como um fantasma, uma alegoria de tudo o que ocorreu na música do século passado.
Ele aparece tantas vezes que a certa altura não resta ao leitor senão berrar "Fora Thomas Mann!" e pedir que os compositores reais apareçam. É que eles já são suficientes para demonstrar as mudanças estéticas, os dogmatismos, as incertezas ideológicas que dominaram a música do século 20.
Talvez Ross, um dos convidados da Flip deste ano (leia mais abaixo), não tenha dado a última palavra sobre o assunto, mas "O Resto É Ruído" é o mais perto que se chegou de transformar em leitura instigante a arte mais incompreendida e menos apreciada de todas as artes do século passado.
Há outro compositor que atravessa o livro quase de ponta a ponta: Igor Stravinsky. Ele aparece bem no início da narrativa e só vai sumir umas 400 páginas adiante, depois de muitas interrupções e divagações que são os próprios desvios das músicas do século passado.
Essa é a maneira de ouvir o século 20 e também de organizar um livro sobre ele -ser linear enquanto for possível e, quando não, abrir desvios espetaculares como o mergulho nas relações promíscuas entre a música do século 20 e as políticas e os regimes, uma promiscuidade até bem comum mas que parecia ter sido enterrada no século 19.
Divisão da música
"O Resto É Ruído" confirma a divisão da música do século 20 em três blocos: um para a música moderna "antiga" até 1933, um interlúdio de guerra até 1945 e um bloco bastante congestionado que traz a música até 2000.
Alex Ross trata bem os dois primeiros blocos, com músicas que já foram bem biografadas e sociologizadas. Mas o terceiro se desfaz em generalidades, e o que era objetividade se transforma em desfile de nomes e obras, uma correria sem fim.
Há impaciência e mau humor com a música pós-1970, como se as suas explosões de estilo e suas estéticas opostas ainda não permitissem linearidade de abordagem ou uma boa porta de entrada.
Não é o único problema de "O Resto É Ruído". O olhar do autor sobre as músicas do século passado é todo norte-americano. Isso explica o exagero dos capítulos sobre Shostakovich, Britten e Sibelius, que só nos Estados Unidos são centrais, e a ausência quase total de compositores latino-americanos.
A edição brasileira deixa um pouco a desejar. A tradução para o português é desajeitada e, além de formalizar a prosa informal de Alex Ross, às vezes contradiz o texto original.
Incontornável
Mesmo assim, este é o melhor livro que se teve até hoje nesse tipo de texto, que prefere descrever do que analisar e que usa a palavra para evitar o exemplo musical. Enquanto a crônica definitiva da música pós-1970 não é escrita, "O Resto É Ruído" torna-se a biografia incontornável da música pré-1970, reunindo um corpo de informações difícil de ser encontrado num só lugar.
Até onde sua objetividade alcança, o livro é um relato extremamente feliz e exato de um dos séculos mais desnorteadores de toda a música. Tão desnorteador que até compositores imaginários tiveram que ser criados para que também eles fizessem músicas que ninguém nunca ouviu.
CELSO LOUREIRO CHAVES é pianista, compositor e professor de história da música da UFRGS.
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O RESTO É RUÍDO - OUVINDO O SÉCULO 20
Autor: Alex Ross
Tradução: Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 64 (688 págs.)
Avaliação: bom
sexta-feira, 17 de abril de 2009
A paz perdida?
Texto publicado no "JBonline", página "Cultura" de 14/abril/2009, fonte: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/04/13/e130419391.asp
O barulhinho do modem já foi prazeroso. Ele sumiu e a nossa paz também
por Mario Marques, Jornal do Brasil
RIO - Tenho 30 minutos para jantar. Tempo suficiente para que meu PC 286 baixe uma homepage de conteúdo, essencialmente, de texto. Da cozinha ouço o início da conexão, aquele barulhinho de fax quase “digital”. No meio da transmissão dos dados, cai tudo. E, animadíssimo, lembro-me que acionei o recurso automático.
Degustando o resto do nada suculento frango com arroz, com a cabeça na luz do monitor do quarto quase escuro, corro para aguardar a página da internet que me levará a um mundo virtual que nem na ficção científica foi tão bem planejado. É claro que o ano não é este corrente.
Falamos de 1995, época em que, creia, encontrávamos nas bancas uma revista que fornecia... endereços de homepages (o termo site surgiu tempos depois)! Minha namorada, também jornalista, sentenciava-me que aquele era o futuro.
Naquela década, eu enfrentara, por favor, sem o saudosismo medíocre dos chatos, a confecção das páginas de jornal com uma faquinha olfa, usada para abrir janelas nas prints e alocar as fotos (fotos de verdade). Dentro de um pastão, carregávamos montes de papéis, retratos fixados em clipes, rabiscos de medidas a lápis. E aguardávamos um ou dois dias, dependendo do fluxo da gráfica, para aprovarmos os fotolitos. Não dá a menor saudade.
Por isso, naquela noite em que escutei, prazeroso, aquele “barulhinho bom” do modem, tive a certeza de que o mundo, como bem apregoara minha namorada, mudaria. Eu só não sabia que meu estresse, a partir dali, aumentaria em doses colossais.
Pesquisas como a de David Sheffield, acadêmico da Universidade de Staffordshire, na Grã-Bretanha, indicam que as pessoas que têm telefones celulares conectados à internet são mais estressadas e irritadiças. Os usuários mentiam sobre o quanto usavam o aparelho, ficavam irritados depois de utilizá-lo ou se mostravam excessivamente preocupados com o celular.
Sheffield descobriu que eles apresentavam pressão arterial mais baixa depois de abandonar os celulares. É assim que me sinto quando olho para o lado, na cama, para a frente, na mesa, para baixo, o bolso. Em todas as direções para as quais meus olhos apontam está o tal do Blackberry.
Nos últimos dois meses decerto olhei mais para o aparelho do que para o rosto de minha bem-vinda recém-nascida. Para um sujeito como eu, que jamais conseguiu se desligar do trabalho – desde 1995, com o clássico tijolão da Motorola, nunca saí de casa sem o celular no bolso – o Blackberry é mais companheiro do que minha própria mulher. Agrava-se à situação minha mobilização: cadastrei três e-mails diferentes no smartphone. Isso quer dizer que pulsam, vibrando, diariamente, mais de mil e-mails na minha caixa de entrada.
Posso dizer, sem dor, que minha vida é cheia das vibrações. Já respondi a sugestões de pauta às três, quatro da manhã. Aliás, são os horários em que mais costumo dar retornos das solicitações de assessores ou leitores. Pior: quando pinta uma ideia, mando e-mail na mesma hora aos repórteres, faço planejamentos e monto pautas.
Sou um escravo do Blackberry. Ou do que há “dentro” dele. Não estou sozinho nesse mundo de Meu Deus. Tenho pares. Sinto que, quando envio e-mails para outros Blackberrymaníacos, as respostas também chegam em instantes. Isso quer dizer que eles também são movidos à vibraçãozinha diária. Como eu, não desligam.
Outros estudos são mais alarmantes. A Academia Americana da Medicina do Sono em Westchester, no estado de Illinois, EUA, diz que os jovens que usam em excesso seus telefones celulares têm mais dificuldade para dormir e sofrem de estresse e fadiga. O relatório se baseia no cotidiano de 21 jovens entre 14 e 20 anos, com boa saúde e sem problemas de sono. Os que usavam o telefone de forma excessiva mostraram um estilo de vida descuidado, maior consumo de bebidas estimulantes, dificuldades para dormir, além de maior suscetibilidade ao estresse e à fadiga.
Pesquisa recente da Pew Internet & American Life Project mostra que trabalhadores conectados estão mais propensos ao estresse: “Enquanto estas pessoas reconhecem a flexibilidade que tal parafernália lhes proporciona, muitos trabalhadores dizem que estes gadgets também trazem estresse e novas demandas para suas vidas”, diz o estudo.
Para um cidadão obsessivo como eu, o Blackberry virou quase uma doença. No caminho para casa ou na ida para o trabalho, são incontáveis as vezes em que me desligo do volante e checo meus e-mails. Respondo-os a 60/70 km por hora, transgredindo todas as possíveis leis de trânsito. Estou pedindo um acidente.
Neste momento, com a mão quase a tremer, olho-o de soslaio, dentro da capinha de couro, em cima da mesa, pedindo para ser tocado. Estou entre ele e as 19 linhas que faltam para dar o ponto final neste espaço.
Não vou finalizar as reflexões acima como os que, erroneamente, dizem que o mundo (e o jornalismo) de antigamente é que era melhor, sem Blackberrys, PCs e demais tecnologias à disposição. Não era mesmo.
Graças a eles temos, hoje, repórteres mais informados, mais preparados, mais ligados. Imprensa mais atenta, mais interligada com o leitor, mais forte. Mais preguiçosa também – são inúmeros os casos em que uma entrevista por telefone ou ao vivo é trocada por outra via e-mail sem a menor necessidade. Mas esse papo de que “antigamente é que era bom” é também muito preguiçoso. Esse saudosismo bobo, de achar que o mundo era melhor “no meu tempo”. Não era, não.
------
Três discos recém-lançados competem de igual para igual com os e-mails de meu Blackberry, no (longo) caminho de volta à casa (Caetano, Zii e Zie; Guinga e Paulo Sérgio Santos, Saudade do cordão; Diana Krall, Quiet nights).
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E agora, Dinamite? Para onde você vai nos levar?
19:14 - 13/04/2009
O barulhinho do modem já foi prazeroso. Ele sumiu e a nossa paz também
por Mario Marques, Jornal do Brasil
RIO - Tenho 30 minutos para jantar. Tempo suficiente para que meu PC 286 baixe uma homepage de conteúdo, essencialmente, de texto. Da cozinha ouço o início da conexão, aquele barulhinho de fax quase “digital”. No meio da transmissão dos dados, cai tudo. E, animadíssimo, lembro-me que acionei o recurso automático.
Degustando o resto do nada suculento frango com arroz, com a cabeça na luz do monitor do quarto quase escuro, corro para aguardar a página da internet que me levará a um mundo virtual que nem na ficção científica foi tão bem planejado. É claro que o ano não é este corrente.
Falamos de 1995, época em que, creia, encontrávamos nas bancas uma revista que fornecia... endereços de homepages (o termo site surgiu tempos depois)! Minha namorada, também jornalista, sentenciava-me que aquele era o futuro.
Naquela década, eu enfrentara, por favor, sem o saudosismo medíocre dos chatos, a confecção das páginas de jornal com uma faquinha olfa, usada para abrir janelas nas prints e alocar as fotos (fotos de verdade). Dentro de um pastão, carregávamos montes de papéis, retratos fixados em clipes, rabiscos de medidas a lápis. E aguardávamos um ou dois dias, dependendo do fluxo da gráfica, para aprovarmos os fotolitos. Não dá a menor saudade.
Por isso, naquela noite em que escutei, prazeroso, aquele “barulhinho bom” do modem, tive a certeza de que o mundo, como bem apregoara minha namorada, mudaria. Eu só não sabia que meu estresse, a partir dali, aumentaria em doses colossais.
Pesquisas como a de David Sheffield, acadêmico da Universidade de Staffordshire, na Grã-Bretanha, indicam que as pessoas que têm telefones celulares conectados à internet são mais estressadas e irritadiças. Os usuários mentiam sobre o quanto usavam o aparelho, ficavam irritados depois de utilizá-lo ou se mostravam excessivamente preocupados com o celular.
Sheffield descobriu que eles apresentavam pressão arterial mais baixa depois de abandonar os celulares. É assim que me sinto quando olho para o lado, na cama, para a frente, na mesa, para baixo, o bolso. Em todas as direções para as quais meus olhos apontam está o tal do Blackberry.
Nos últimos dois meses decerto olhei mais para o aparelho do que para o rosto de minha bem-vinda recém-nascida. Para um sujeito como eu, que jamais conseguiu se desligar do trabalho – desde 1995, com o clássico tijolão da Motorola, nunca saí de casa sem o celular no bolso – o Blackberry é mais companheiro do que minha própria mulher. Agrava-se à situação minha mobilização: cadastrei três e-mails diferentes no smartphone. Isso quer dizer que pulsam, vibrando, diariamente, mais de mil e-mails na minha caixa de entrada.
Posso dizer, sem dor, que minha vida é cheia das vibrações. Já respondi a sugestões de pauta às três, quatro da manhã. Aliás, são os horários em que mais costumo dar retornos das solicitações de assessores ou leitores. Pior: quando pinta uma ideia, mando e-mail na mesma hora aos repórteres, faço planejamentos e monto pautas.
Sou um escravo do Blackberry. Ou do que há “dentro” dele. Não estou sozinho nesse mundo de Meu Deus. Tenho pares. Sinto que, quando envio e-mails para outros Blackberrymaníacos, as respostas também chegam em instantes. Isso quer dizer que eles também são movidos à vibraçãozinha diária. Como eu, não desligam.
Outros estudos são mais alarmantes. A Academia Americana da Medicina do Sono em Westchester, no estado de Illinois, EUA, diz que os jovens que usam em excesso seus telefones celulares têm mais dificuldade para dormir e sofrem de estresse e fadiga. O relatório se baseia no cotidiano de 21 jovens entre 14 e 20 anos, com boa saúde e sem problemas de sono. Os que usavam o telefone de forma excessiva mostraram um estilo de vida descuidado, maior consumo de bebidas estimulantes, dificuldades para dormir, além de maior suscetibilidade ao estresse e à fadiga.
Pesquisa recente da Pew Internet & American Life Project mostra que trabalhadores conectados estão mais propensos ao estresse: “Enquanto estas pessoas reconhecem a flexibilidade que tal parafernália lhes proporciona, muitos trabalhadores dizem que estes gadgets também trazem estresse e novas demandas para suas vidas”, diz o estudo.
Para um cidadão obsessivo como eu, o Blackberry virou quase uma doença. No caminho para casa ou na ida para o trabalho, são incontáveis as vezes em que me desligo do volante e checo meus e-mails. Respondo-os a 60/70 km por hora, transgredindo todas as possíveis leis de trânsito. Estou pedindo um acidente.
Neste momento, com a mão quase a tremer, olho-o de soslaio, dentro da capinha de couro, em cima da mesa, pedindo para ser tocado. Estou entre ele e as 19 linhas que faltam para dar o ponto final neste espaço.
Não vou finalizar as reflexões acima como os que, erroneamente, dizem que o mundo (e o jornalismo) de antigamente é que era melhor, sem Blackberrys, PCs e demais tecnologias à disposição. Não era mesmo.
Graças a eles temos, hoje, repórteres mais informados, mais preparados, mais ligados. Imprensa mais atenta, mais interligada com o leitor, mais forte. Mais preguiçosa também – são inúmeros os casos em que uma entrevista por telefone ou ao vivo é trocada por outra via e-mail sem a menor necessidade. Mas esse papo de que “antigamente é que era bom” é também muito preguiçoso. Esse saudosismo bobo, de achar que o mundo era melhor “no meu tempo”. Não era, não.
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Três discos recém-lançados competem de igual para igual com os e-mails de meu Blackberry, no (longo) caminho de volta à casa (Caetano, Zii e Zie; Guinga e Paulo Sérgio Santos, Saudade do cordão; Diana Krall, Quiet nights).
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E agora, Dinamite? Para onde você vai nos levar?
19:14 - 13/04/2009
segunda-feira, 6 de abril de 2009
Serviço de saúde musical (parte 2)
Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 06/abril/2009, caderno "The New York Times"
Música vira receita médica contra doenças
por Matthew Gurewitsch
O fato de que a música nos toca no próprio cerne de nosso ser é uma descoberta tão antiga quanto a consciência humana. Mas será que a música pode ser considerada medicamento?Uma especialista que aposta nisso é Vera Brandes, diretora do programa de pesquisas com música e medicina da Universidade Médica Privada Paracelsus, em Salzburgo, Áustria.
“Sou a primeira farmacologista musical”, disse Brandes no ano passado em Viena. Como tal, ela vem desenvolvendo medicamentos na forma de música, prescritos como receita médica. Para promover a linha de produtos, ela ajudou a fundar a Sanoson (http://www.sanoson.at/), empresa que também cria sistemas de música sob medida para hospitais e clínicas.
“Estamos preparando o lançamento de nossas terapias na Alemanha e na Áustria no final de 2009 e prevemos o lançamento nos EUA em 2010”, disse.
O tratamento funciona assim: uma vez dado o diagnóstico médico, o paciente é enviado para casa com um protocolo musical para ouvir e músicas carregadas num tocador semelhante ao iPod. O timing é essencial. “Se você ouvir música para acalmar quando estiver num ponto ascendente de seu ciclo circadiano, isso não o acalmará”, explicou Brandes. “Pode até deixá-lo irritado.”
Brandes e seus colaboradores analisam músicas de todo tipo para retirar seus “ingredientes ativos”, que então são misturados e balanceados para formar compostos medicinais. Embora eles não procurem tratar patologias graves ou doenças infecciosas, afirmam que seus métodos têm aplicações amplas em desordens psicossomáticas, administração de dor e o que Brandes descreve como “doenças da civilização”: ansiedade, depressão, insônia e determinados tipos de arritmia. A farmacopeia contém até agora cerca de 55 faixas de música medicinal, e novas faixas estão sendo planejadas.
Num estudo piloto, que em 2008 foi citado na reunião científica anual da Sociedade Psicossomática Americana, Brandes e seus colaboradores estudaram os efeitos da música sobre pacientes com hipertensão sem causas orgânicas. “O tratamento convencional para pacientes hipertensos é com betabloqueadores, que suprimem seus sintomas”, disse Brandes. “A música pode tratar as causas psicossomáticas originais.”
Segundo seu estudo, depois de ouvir um programa musical criado especialmente para o paciente, por 30 minutos por dia, cinco dias por semana, durante quatro semanas, os pacientes apresentaram melhoras significativas na variação do ritmo cardíaco, um indicador importante da função nervosa autônoma.
Brandes, 52, já foi produtora de eventos e gravações musicais e tem um vasto currículo na área. Mas um acidente de carro quase fatal em 1995 a levou a pensar numa mudança de carreira.
“Quebrei as vértebras 11 e 12, passando a um milímetro da medula espinhal”, ela contou. “O médico disse: ‘Não vou poder fazer nada por você durante algum tempo, mas você pode cantar, se quiser’.” A equipe médica previa que Brandes teria que ficar imobilizada entre 10 e 14 semanas.
Ela estava dividindo o quarto do hospital com uma budista, cujos amigos vinham diariamente entoar cânticos para ela. Após apenas 15 dias no hospital, uma ressonância magnética mostrou que sua espinha estava curada. “Todo o mundo disse que era um milagre”, contou Brandes. “Os médicos me mandaram para casa. Aquilo me fez refletir.”
Brandes, que não tem diploma de estudos avançados em medicina ou ciência, sabia que suas teorias jamais ganhariam aceitação se não passassem por testes clínicos. “Desde o início, eu estava determinada a satisfazer os mais exigentes critérios científicos ocidentais”, disse.
Além dos esforços de Brandes, a Sourcetone Interactive Radio, que se descreve como “o maior serviço mundial de saúde com música”, emprega pesquisas feitas conjuntamente pelo Centro Médico Beth Israel Deaconess, em Boston, e a Escola de Medicina Harvard, onde o neurologista Gottfried Schlaug estuda os efeitos da atividade musical sobre a função e a plasticidade cerebrais. “Acho que é importante participar, fazendo música, não apenas ouvir”, disse Schlaug.
Stefan Koelsch, pesquisador-sênior sobre o neurorreconhecimento da música e da linguagem na Universidade de Sussex, em Brighton, Reino Unido, concorda e está trabalhando com tratamentos musicais participativos para a depressão. No longo prazo, ele enxerga possibilidades mais amplas.
“Fisiologicamente falando, é perfeitamente plausível que a música afete não apenas as condições psiquiátricas, mas também as desordens endócrinas, autoimunes e do sistema autônomo”, disse ele.
Vera Brandes também está pensando no futuro. “Digamos que um paciente chegue sofrendo de depressão”, disse ela. “O primeiro passo sempre é procurar um médico. Mas, a partir disso, haverá opções de tratamento: com psicólogo, antidepressivo ou música.”
Música vira receita médica contra doenças
por Matthew Gurewitsch
O fato de que a música nos toca no próprio cerne de nosso ser é uma descoberta tão antiga quanto a consciência humana. Mas será que a música pode ser considerada medicamento?Uma especialista que aposta nisso é Vera Brandes, diretora do programa de pesquisas com música e medicina da Universidade Médica Privada Paracelsus, em Salzburgo, Áustria.
“Sou a primeira farmacologista musical”, disse Brandes no ano passado em Viena. Como tal, ela vem desenvolvendo medicamentos na forma de música, prescritos como receita médica. Para promover a linha de produtos, ela ajudou a fundar a Sanoson (http://www.sanoson.at/), empresa que também cria sistemas de música sob medida para hospitais e clínicas.
“Estamos preparando o lançamento de nossas terapias na Alemanha e na Áustria no final de 2009 e prevemos o lançamento nos EUA em 2010”, disse.
O tratamento funciona assim: uma vez dado o diagnóstico médico, o paciente é enviado para casa com um protocolo musical para ouvir e músicas carregadas num tocador semelhante ao iPod. O timing é essencial. “Se você ouvir música para acalmar quando estiver num ponto ascendente de seu ciclo circadiano, isso não o acalmará”, explicou Brandes. “Pode até deixá-lo irritado.”
Brandes e seus colaboradores analisam músicas de todo tipo para retirar seus “ingredientes ativos”, que então são misturados e balanceados para formar compostos medicinais. Embora eles não procurem tratar patologias graves ou doenças infecciosas, afirmam que seus métodos têm aplicações amplas em desordens psicossomáticas, administração de dor e o que Brandes descreve como “doenças da civilização”: ansiedade, depressão, insônia e determinados tipos de arritmia. A farmacopeia contém até agora cerca de 55 faixas de música medicinal, e novas faixas estão sendo planejadas.
Num estudo piloto, que em 2008 foi citado na reunião científica anual da Sociedade Psicossomática Americana, Brandes e seus colaboradores estudaram os efeitos da música sobre pacientes com hipertensão sem causas orgânicas. “O tratamento convencional para pacientes hipertensos é com betabloqueadores, que suprimem seus sintomas”, disse Brandes. “A música pode tratar as causas psicossomáticas originais.”
Segundo seu estudo, depois de ouvir um programa musical criado especialmente para o paciente, por 30 minutos por dia, cinco dias por semana, durante quatro semanas, os pacientes apresentaram melhoras significativas na variação do ritmo cardíaco, um indicador importante da função nervosa autônoma.
Brandes, 52, já foi produtora de eventos e gravações musicais e tem um vasto currículo na área. Mas um acidente de carro quase fatal em 1995 a levou a pensar numa mudança de carreira.
“Quebrei as vértebras 11 e 12, passando a um milímetro da medula espinhal”, ela contou. “O médico disse: ‘Não vou poder fazer nada por você durante algum tempo, mas você pode cantar, se quiser’.” A equipe médica previa que Brandes teria que ficar imobilizada entre 10 e 14 semanas.
Ela estava dividindo o quarto do hospital com uma budista, cujos amigos vinham diariamente entoar cânticos para ela. Após apenas 15 dias no hospital, uma ressonância magnética mostrou que sua espinha estava curada. “Todo o mundo disse que era um milagre”, contou Brandes. “Os médicos me mandaram para casa. Aquilo me fez refletir.”
Brandes, que não tem diploma de estudos avançados em medicina ou ciência, sabia que suas teorias jamais ganhariam aceitação se não passassem por testes clínicos. “Desde o início, eu estava determinada a satisfazer os mais exigentes critérios científicos ocidentais”, disse.
Além dos esforços de Brandes, a Sourcetone Interactive Radio, que se descreve como “o maior serviço mundial de saúde com música”, emprega pesquisas feitas conjuntamente pelo Centro Médico Beth Israel Deaconess, em Boston, e a Escola de Medicina Harvard, onde o neurologista Gottfried Schlaug estuda os efeitos da atividade musical sobre a função e a plasticidade cerebrais. “Acho que é importante participar, fazendo música, não apenas ouvir”, disse Schlaug.
Stefan Koelsch, pesquisador-sênior sobre o neurorreconhecimento da música e da linguagem na Universidade de Sussex, em Brighton, Reino Unido, concorda e está trabalhando com tratamentos musicais participativos para a depressão. No longo prazo, ele enxerga possibilidades mais amplas.
“Fisiologicamente falando, é perfeitamente plausível que a música afete não apenas as condições psiquiátricas, mas também as desordens endócrinas, autoimunes e do sistema autônomo”, disse ele.
Vera Brandes também está pensando no futuro. “Digamos que um paciente chegue sofrendo de depressão”, disse ela. “O primeiro passo sempre é procurar um médico. Mas, a partir disso, haverá opções de tratamento: com psicólogo, antidepressivo ou música.”
domingo, 5 de abril de 2009
Entrevista com Zuza
Texto publicado no jornal "O Estado de S.Paulo" de 05/abril/2009, no "Caderno2"
"Pixinguinha mudou minha maneira de ver a MPB"
Desde a década de 1950, o nome do produtor musical, escritor, jornalista e crítico Zuza Homem de Mello está associado à grande maioria dos projetos ligados à música brasileira — na televisão e no rádio, em festivais e nas principais publicações do País.
Nos anos 1970, ele levou a sua já então extensa experiência como diretor musical à série de shows "O Fino da Música", em São Paulo, na qual se apresentaram tanto artistas consagrados — caso de Elis Regina e Elizeth Cardoso — como outros em início de carreira (João Bosco, Ivan Lins e Alcione, por exemplo).
Entre os livros de Zuza destacam-se "A Era dos Festivais", "A Canção no Tempo" e "Eis Aqui os Bossa-Nova".
Qual disco ou música mudou sua maneira de ver o mundo?
Minha maneira de ver a música brasileira mudou quando vi Pixinguinha tocar no antigo Teatro Colombo, do Brás. Meus ídolos eram Luiz Gonzaga e Mário Reis e com Pixinguinha descobri a liberdade do jazz na música brasileira.
Que obra o senhor detestou à primeira vista e passou a venerar depois?
A de Walter Franco. Estava errado. É um criador rebelde, à frente de seu tempo e dos presunçosos transgressores falsamente exaltados que vão sendo esquecidos. A obra do Walter cresce cada vez que é ouvida.
Qual é o disco ruim que o senhor adora ouvir, mas tem vergonha de dizer que gosta?
Sem vergonha alguma, apesar da formação jazzística, adoro os discos de Roberta Miranda, Nubia Lafayette, Nalva Aguiar, Marinês, Tonico e Tinoco entre outros do universo de artistas amados pelo povo mais simples. São diferenciados da mediocridade laureada e dela separados por uma tênue divisória.
Que artista o senhor não acha tão bom, mas que todo mundo acha?
Marisa Monte. Admiro seu talento e o cuidado que ela tem com a carreira, mas as interpretações não me convencem. O oposto de Nana Caymmi ou Adriana Calcanhotto.
Qual clássico da MPB o senhor acredita que não merece esse título?
Posso inverter a questão? Jackson do Pandeiro nunca teve um LP clássico, nunca foi tratado como Luiz Gonzaga. Bastava deixá-lo gravar à vontade com bons músicos nordestinos. Com o "rei do ritmo", a oportunidade de um clássico foi perdida para sempre.
Que canção considerada clássica mereceria uma letra melhor?
Concordo com o Hermínio Bello de Carvalho. A letra de "Só Danço Samba" é descuidada e é do mestre Vinicius de Moraes. Acontece nas melhores famílias. Em compensação, a única letra conhecida de Jayme Silva é criativa e a mais divertida da bossa nova, "O Pato".
Qual disco o senhor imaginou que seria ótimo e frustrou suas expectativas?
"Babando Lamartine" com As Frenéticas. Reuniria a fome com a vontade de comer num clássico do nonsense. Em vez de um jantar foi um lanchinho sem a menor graça.
Que disco fez o senhor passar uma noite em claro analisando o que tinha ouvido?
Foi literalmente uma noite em claro na antiga casa do Diogo Pacheco e Maria José de Carvalho, no Ipiranga, anos 50. Com outros amigos ouvimos apenas os dois lados de um disco: "Juramento Falso" e a valsa "Lábios Que Beijei", com Orlando Silva.
Qual o senhor nunca deixa de ouvir? Por quê?
Os de João Gilberto, Tom Jobim, Jacob do Bandolim, Duke Ellington, Bill Evans, Thelonious Monk, Nuevo Quinteto Real de Horacio Salgán, Stravinski, Ravel, Debussy e os Concertos para Piano de Mozart. Não são afetados pela passagem do tempo e, a cada vez que ouço, vibro mais, mais me encanto com as letras das canções, mais sorrio cantarolando as melodias, mais admiro as soluções harmônicas, mais sinto prazer em viver.
O senhor é mais Caetano Veloso ou Chico Buarque? Maria Bethânia ou Gal Costa? Por quê?
É como comparar Cartola com Paulinho da Viola. Quantos países têm quatro artistas desse nível em pleno vigor criativo por mais de 40 anos? Estão na linha de frente da MPB, a que o mundo louva. Tenho admiração especial por Maria Bethânia, a única de sua geração que não sofreu influência de João Gilberto.
De qual compositor(a), grupo ou cantor(a) o senhor tem todos os discos?
Com uns 300 LPs de Duke Ellington acreditava estar próximo de todos os seus discos. Ledo engano. Dos brasileiros, penso ter tudo de Paulinho da Viola e certamente vou continuar com o que vier.
Que unanimidade da MPB o senhor não tem interesse?
Quem lida profissionalmente com a música deve saber reconhecer quem são os que conduzem a canção brasileira no rumo contrário ao de sua grandeza. Nesse sentido, existem algumas falsas unanimidades. É o caso, por exemplo, de Zezé di Camargo, cuja obra é montada sobre a mesma fórmula, que segue por um caminho previsível e vulgar. Suas tentativas de composição não passam do que há de mais rasteiro, sem a menor imaginação.
Qual músico o senhor admira por combinar atitude e qualidade artística?
João Bosco.
Que artista, na sua opinião, começou mal a carreira discográfica e depois deslanchou?
Zizi Possi. Era uma grande cantora, mas só ganhou prestígio quando começou a gravar um repertório à altura.
Qual bom disco mal gravado mereceria ser refeito hoje pelo artista original?
As versões originais são quase sempre superiores às regravações. A primeira gravação transpira uma espontaneidade que fica registrada e dificilmente é repetida. Não me dou muito bem com novas versões ou rock em versões acústicas. Tempo perdido.
Aponte um disco que considera um clássico instantâneo.
Elis e Tom. Nesse caso, novamente se reuniu a fome com a vontade de comer, mas dessa vez foi um banquete do qual o mundo se regala até hoje. Chega a ser covardia.
Qual a melhor e a pior regravação de um clássico da MPB?
O primeiro disco de João Gilberto já tem quatro: "Rosa Morena", "Morena Boca de Ouro", "Aos Pés da Cruz" e "É Luxo Só". Quando gravou "Samba do Avião" em 1995, talvez para uma releitura excêntrica, Marina cometeu um erro frequente. O avião se espatifou na aterrissagem.
E outro, lançado nos últimos dez anos, que está entre os melhores de todos os tempos?
O duplo "Ouro Negro", produção de Zé Nogueira e Mario Adnet no resgate da obra de um músico superior, Moacir Santos. Há três menções honrosas: "Música Ligeira" com o grupo mais original destes dez anos (Mario Manga, Fabio Tagliaferri e Rodrigo Rodrigues), desfeito com a morte de Rodrigo. "Achou", segundo disco de Dante Ozzetti, e "Outra Praia", de Swami Jr., que têm vitalidade contemporânea. Nada que seja ouvido naqueles programinhas que todos sabem quais são.
Que artista ou banda badalada pela crítica o senhor considera inferior?
A grande maioria do rock brasileiro. O Skank é rara exceção.
Qual foi o show que mais marcou sua vida?
Mesmo após a primeira resposta, não posso me furtar em destacar os de Ray Charles como os mais tocantes. Os mais empolgantes: de Little Richard e Willie Nelson nos Estados Unidos, de Morais Moreira e Tim Maia no Brasil. O mais arrebatador foi o concerto de jazz no Carnegie Hall, em 29 de novembro de 1957, com a orquestra de Dizzy Gillespie, depois um jovem pouco conhecido, Ray Charles, seguido do quarteto de Thelonious Monk com John Coltrane, do quarteto de Zoot Sims com Chet Baker, do trio de Sonny Rollins e de Billie Holiday, ao final. Ainda guardo na memória alguns daqueles sons, era estudante de música e o ingresso custou US$ 3.
"Pixinguinha mudou minha maneira de ver a MPB"
Desde a década de 1950, o nome do produtor musical, escritor, jornalista e crítico Zuza Homem de Mello está associado à grande maioria dos projetos ligados à música brasileira — na televisão e no rádio, em festivais e nas principais publicações do País.
Nos anos 1970, ele levou a sua já então extensa experiência como diretor musical à série de shows "O Fino da Música", em São Paulo, na qual se apresentaram tanto artistas consagrados — caso de Elis Regina e Elizeth Cardoso — como outros em início de carreira (João Bosco, Ivan Lins e Alcione, por exemplo).
Entre os livros de Zuza destacam-se "A Era dos Festivais", "A Canção no Tempo" e "Eis Aqui os Bossa-Nova".
Qual disco ou música mudou sua maneira de ver o mundo?
Minha maneira de ver a música brasileira mudou quando vi Pixinguinha tocar no antigo Teatro Colombo, do Brás. Meus ídolos eram Luiz Gonzaga e Mário Reis e com Pixinguinha descobri a liberdade do jazz na música brasileira.
Que obra o senhor detestou à primeira vista e passou a venerar depois?
A de Walter Franco. Estava errado. É um criador rebelde, à frente de seu tempo e dos presunçosos transgressores falsamente exaltados que vão sendo esquecidos. A obra do Walter cresce cada vez que é ouvida.
Qual é o disco ruim que o senhor adora ouvir, mas tem vergonha de dizer que gosta?
Sem vergonha alguma, apesar da formação jazzística, adoro os discos de Roberta Miranda, Nubia Lafayette, Nalva Aguiar, Marinês, Tonico e Tinoco entre outros do universo de artistas amados pelo povo mais simples. São diferenciados da mediocridade laureada e dela separados por uma tênue divisória.
Que artista o senhor não acha tão bom, mas que todo mundo acha?
Marisa Monte. Admiro seu talento e o cuidado que ela tem com a carreira, mas as interpretações não me convencem. O oposto de Nana Caymmi ou Adriana Calcanhotto.
Qual clássico da MPB o senhor acredita que não merece esse título?
Posso inverter a questão? Jackson do Pandeiro nunca teve um LP clássico, nunca foi tratado como Luiz Gonzaga. Bastava deixá-lo gravar à vontade com bons músicos nordestinos. Com o "rei do ritmo", a oportunidade de um clássico foi perdida para sempre.
Que canção considerada clássica mereceria uma letra melhor?
Concordo com o Hermínio Bello de Carvalho. A letra de "Só Danço Samba" é descuidada e é do mestre Vinicius de Moraes. Acontece nas melhores famílias. Em compensação, a única letra conhecida de Jayme Silva é criativa e a mais divertida da bossa nova, "O Pato".
Qual disco o senhor imaginou que seria ótimo e frustrou suas expectativas?
"Babando Lamartine" com As Frenéticas. Reuniria a fome com a vontade de comer num clássico do nonsense. Em vez de um jantar foi um lanchinho sem a menor graça.
Que disco fez o senhor passar uma noite em claro analisando o que tinha ouvido?
Foi literalmente uma noite em claro na antiga casa do Diogo Pacheco e Maria José de Carvalho, no Ipiranga, anos 50. Com outros amigos ouvimos apenas os dois lados de um disco: "Juramento Falso" e a valsa "Lábios Que Beijei", com Orlando Silva.
Qual o senhor nunca deixa de ouvir? Por quê?
Os de João Gilberto, Tom Jobim, Jacob do Bandolim, Duke Ellington, Bill Evans, Thelonious Monk, Nuevo Quinteto Real de Horacio Salgán, Stravinski, Ravel, Debussy e os Concertos para Piano de Mozart. Não são afetados pela passagem do tempo e, a cada vez que ouço, vibro mais, mais me encanto com as letras das canções, mais sorrio cantarolando as melodias, mais admiro as soluções harmônicas, mais sinto prazer em viver.
O senhor é mais Caetano Veloso ou Chico Buarque? Maria Bethânia ou Gal Costa? Por quê?
É como comparar Cartola com Paulinho da Viola. Quantos países têm quatro artistas desse nível em pleno vigor criativo por mais de 40 anos? Estão na linha de frente da MPB, a que o mundo louva. Tenho admiração especial por Maria Bethânia, a única de sua geração que não sofreu influência de João Gilberto.
De qual compositor(a), grupo ou cantor(a) o senhor tem todos os discos?
Com uns 300 LPs de Duke Ellington acreditava estar próximo de todos os seus discos. Ledo engano. Dos brasileiros, penso ter tudo de Paulinho da Viola e certamente vou continuar com o que vier.
Que unanimidade da MPB o senhor não tem interesse?
Quem lida profissionalmente com a música deve saber reconhecer quem são os que conduzem a canção brasileira no rumo contrário ao de sua grandeza. Nesse sentido, existem algumas falsas unanimidades. É o caso, por exemplo, de Zezé di Camargo, cuja obra é montada sobre a mesma fórmula, que segue por um caminho previsível e vulgar. Suas tentativas de composição não passam do que há de mais rasteiro, sem a menor imaginação.
Qual músico o senhor admira por combinar atitude e qualidade artística?
João Bosco.
Que artista, na sua opinião, começou mal a carreira discográfica e depois deslanchou?
Zizi Possi. Era uma grande cantora, mas só ganhou prestígio quando começou a gravar um repertório à altura.
Qual bom disco mal gravado mereceria ser refeito hoje pelo artista original?
As versões originais são quase sempre superiores às regravações. A primeira gravação transpira uma espontaneidade que fica registrada e dificilmente é repetida. Não me dou muito bem com novas versões ou rock em versões acústicas. Tempo perdido.
Aponte um disco que considera um clássico instantâneo.
Elis e Tom. Nesse caso, novamente se reuniu a fome com a vontade de comer, mas dessa vez foi um banquete do qual o mundo se regala até hoje. Chega a ser covardia.
Qual a melhor e a pior regravação de um clássico da MPB?
O primeiro disco de João Gilberto já tem quatro: "Rosa Morena", "Morena Boca de Ouro", "Aos Pés da Cruz" e "É Luxo Só". Quando gravou "Samba do Avião" em 1995, talvez para uma releitura excêntrica, Marina cometeu um erro frequente. O avião se espatifou na aterrissagem.
E outro, lançado nos últimos dez anos, que está entre os melhores de todos os tempos?
O duplo "Ouro Negro", produção de Zé Nogueira e Mario Adnet no resgate da obra de um músico superior, Moacir Santos. Há três menções honrosas: "Música Ligeira" com o grupo mais original destes dez anos (Mario Manga, Fabio Tagliaferri e Rodrigo Rodrigues), desfeito com a morte de Rodrigo. "Achou", segundo disco de Dante Ozzetti, e "Outra Praia", de Swami Jr., que têm vitalidade contemporânea. Nada que seja ouvido naqueles programinhas que todos sabem quais são.
Que artista ou banda badalada pela crítica o senhor considera inferior?
A grande maioria do rock brasileiro. O Skank é rara exceção.
Qual foi o show que mais marcou sua vida?
Mesmo após a primeira resposta, não posso me furtar em destacar os de Ray Charles como os mais tocantes. Os mais empolgantes: de Little Richard e Willie Nelson nos Estados Unidos, de Morais Moreira e Tim Maia no Brasil. O mais arrebatador foi o concerto de jazz no Carnegie Hall, em 29 de novembro de 1957, com a orquestra de Dizzy Gillespie, depois um jovem pouco conhecido, Ray Charles, seguido do quarteto de Thelonious Monk com John Coltrane, do quarteto de Zoot Sims com Chet Baker, do trio de Sonny Rollins e de Billie Holiday, ao final. Ainda guardo na memória alguns daqueles sons, era estudante de música e o ingresso custou US$ 3.
sábado, 4 de abril de 2009
Serviço de saúde musical
Texto publicado no jornal "O Estado de São Paulo" de 04/abril/2008, no "Caderno2"
Santo remédio à base de sustenidos e bemóis
por Sérgio Augusto
Ruim da cabeça? Angústia? Depressão? Estresse? Hipertensão? Tiques nervosos?
O divã pode ser uma solução; Prozac, Zoloft, Lexotan, Rivotril, betabloqueadores também; mas o único tratamento sem contraindicação para todos esses e outros males é a música. Seus efeitos colaterais praticamente inexistem, embora crianças assustadiças não devam ser submetidas às cortantes violinadas que Bernard Herrmann compôs para o assassinato de Janet Leigh em Psicose, sob pena de perderem o sono ou, pior ainda, sofrerem um ataque de "epilepsia musicogênica" semelhante ao que vitimou um crítico musical do século 19, chamado Nikonov, em quem a ópera O Profeta, de Meyerbeer, sempre provocava convulsões. Mas patologias como a de Nikonov são raríssimas.
Música é uma bênção para o corpo e o espírito. Pura superstição aquela história de que Tristão e Isolda poderia enlouquecer seus ouvintes mais delicados. Por ir fundo às mais recônditas regiões da psique, ativando quase todo o cérebro humano, dos centros nervosos sensitivos ao córtex pré-frontal, cerebelo, hipocampo e córtex motor, a música mexe com as atividades racionais, as emoções, a memória e os movimentos do corpo humano. Indutora de dopamina, serotonina e adrenalina, ela emociona, acalma, relaxa, enleva, consola, inspira, levanta o ânimo e excita ("Ouvimos música com os nossos músculos", apregoava Nietzsche). Já se desconfiava disso desde, pelo menos, Platão.
A musicofilia é inata no ser humano. A fala, aliás, teria derivado, segundo Darwin, da música primal que nossos ancestrais semi-humanos usavam para atrair um parceiro. Os hominídeos paleolíticos já cantavam, comprovou Steven J. Mithen em seu estudo sobre a origem da música, da linguagem, da mente e do corpo, The Singing Neanderthals (Harvard University Press), publicado em 2005.
Assim como a inteligência nada tem a ver com a sensibilidade musical (do contrário, Nabokov e João Cabral de Melo Neto, dois notórios ouvidos de chumbo, não teriam feito o que fizeram), a burrice nunca foi empecilho para o desenvolvimento de algum tipo de musicalidade, ativa e passiva. Oliver Sacks refere-se a um retardado mental que sabia de cor duas mil óperas, era um "dicionário de música ambulante" e assim foi definido num capítulo de O Homem Que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, reaparecendo, com maior destaque, no recente Alucinações Musicais - Relatos sobre a Música e o Cérebro, também traduzido pela Cia. das Letras.
Muito se progrediu desde as especulações de William James sobre a nossa "suscetibilidade à música" (e suas propriedades sedativas, consolativas e emocionais) e o hype em torno do Efeito Mozart (as crianças ficariam mais inteligentes, as galinhas poriam mais ovos e as vacas dariam mais leite se expostas a longas audições de sinfonias e concertos do Wolfgang Amadeus). Sobretudo no campo científico, graças à dobradinha neurociência-informática, que tornou possível estudar e monitorar a complexa orquestração dos milhões de neurônios que compõem o cérebro.
Datam de meados dos anos 1960 as primeiras observações de Sacks sobre os efeitos da música em pacientes com doença de Parkinson. O estudo pioneiro de Macdonald Critchley e R.A. Henson sobre as relações da música com o cérebro, Music and the Brain, foi publicado em 1977. Mas as pesquisas nesse campo atingiram novo patamar na Universidade Médica Paracelsus de Salzburgo, na Áustria, onde a dra. Vera Brandes implantou um programa de pesquisas sobre música e medicina. Com ela, a musicoterapia ganhou (ou está prestes a ganhar) uma farmacologia.
Nada em frascos, bem entendido. Nem comprimidos, nem cápsulas, nem gotas, nem injeções de Beethoven (ou de Mantovani), nem emulsões de Scott Joplin ou soros hardrock punk estão previstos. Florais de Bach? Já bastam os que o dr. Edward Bach legou à homeopatia. O que de benéfico Johann Sebastian nos tem a oferecer está em suas fugas — e, a exemplo dos benefícios à saúde proporcionados por outros músicos e compositores, contido num artefato de armazenamento digital de áudio. É "remédio" de aplicação exclusivamente auricular, capaz de fazer nosso cérebro zunir com intensa atividade neural.
"Ouvir música de qualidade e frequentar concertos com certa regularidade rejuvenesce as pessoas", promete o dr. Michael F. Roizen, do Wellness Institute da Clínica de Cleveland, que admira e acompanha o trabalho da dra. Brandes. "Música de qualidade alivia o estresse, retarda o envelhecimento das artérias e ajuda a enfrentar fatores ambientes adversos e cancerígenos, benefícios que assistir a competições esportivas, por exemplo, não oferece", assegurou ele no congresso Mozart & Ciência, realizado em Viena, em novembro passado.
Até pode ser, mas o conceito de "música de qualidade" é relativo. O produtor de discos e neurocientista Daniel J. Levitin, autor de um livro excelente e delicioso de ler sobre o funcionamento do cérebro sob o efeito de sons harmoniosos e dissonantes, This Is Your Brain on Music (Palmer, 2006), tem uma visão bem mais eclética da sedução e da eficácia terapêutica da música. Suas análises não se limitam aos clássicos; cobrem também o jazz, o pop e o rock; de Abdul (Paula) a Zeppelin (Led). A música que me encanta e constaria da minha receita pode não ser a mesma de que o prezado (& angustiado & deprimido & estressado) leitor prefere e talvez precise aplicar em sua complexa máquina cognitiva.
Os mais estranhos sortilégios da música estão registrados em toda parte. Em seu último livro, Oliver Sacks registra dois casos extremos de musicofilia: o de um ortopedista que aprendeu música depois de atingido por um raio e o de um musicólogo inglês que teve toda a memória apagada, menos a musical. Tony Cicoria, o ortopedista atingido por um raio, saiu do choque com uma vontade louca de ouvir piano, especialmente Chopin, e em questão de meses, partindo do zero, transformou-se num pianista. Clive Wearing, o musicólogo que uma infecção meningocócica condenou à amnésia, não se lembra de nada, só das músicas que ouviu desde a infância. O próprio Sacks recuperou-se das dores num joelho avariado nas montanhas norueguesas ouvindo repetidas vezes o Concerto para Violino, de Mendelssohn.
A dra. Vera Brandes, ex-produtora de shows e concertos, responsável pelos célebres improvisos ao piano de Keith Jarrett em Colônia, em 1975, descobriu sua vocação para farmacologista musical ("a primeira do ramo", vangloria-se) quando se recuperava de um acidente de carro. Dividia o quarto do hospital com um budista, cujos parentes e amigos já entravam no recinto cantando e dançando. Vera sarou em duas semanas. A previsão era de meses.
"Só pode ter sido efeito da música", matutou. E começou a desenvolver "medicações" em forma de música, pesquisando, misturando e balanceando temas, ritmos, timbres e sonoridades, em "compostos medicinais". Primeira cobaia: sua mãe, vítima de câncer. Não a curou, claro, pois o poder de toda a escala musical não chega a tanto, mas ela durou muito mais tempo do que o previsto pelos médicos.
Para comercializar sua teoria, a dra. Brandes criou uma empresa, Sonoson, especializada em montar sistemas musicais personalizados para clínicas, que chegarão aos mercados alemão e austríaco no segundo semestre deste ano e ao americano, em 2010. Funciona assim: o paciente, depois de diagnosticado por seu médico, recebe uma espécie de iPod abarrotado de músicas, testadas em laboratório e com estímulos específicos, mais um fone de ouvido e um medidor de pulso para registrar batimentos cardíacos e outros índices fisiológicos. Parece musak de manipulação, homeopatia sonora, e é inútil, alerta a doutora, no combate a patologias complicadas e doenças infecciosas, mas tiro e queda para desordens psicossomáticas e o que ela qualifica de "doenças da civilização": ansiedade, depressão, insônia e certos tipos de arritmia.
Experiência similar ocorreu ao psicólogo americano Jeff Berger, que, a partir de dados sobre as influências da atividade musical no cérebro, fornecidos pelo dr. Gottfried Schlaug, neurologista da Escola de Medicina de Harvard, criou na internet uma emissora de rádio alternativa (sourcetone.com), "o primeiro serviço de saúde musical do mundo". Seu objetivo é promover o relaxamento, aumentar o vigor, estimular a criatividade e restaurar a felicidade dos ouvintes. Não tive tempo suficiente para testar sua eficácia. Cliquei a opção calmo/tranquilo, e na caixa de som do meu computador entrou Sade (Bullet Proof Soul), a seleção Rhythm & Blues, e , depois, Debussy (a seleção clássicos do século 20) e Joni Mitchell (jazz vocal). Não fiquei mais relaxado, nem mais criativo (de que este texto é uma prova cabal), mas meus tímpanos não se sentiram agredidos, um consolo.
Tentarei mais uma vez. Já me darei por satisfeito se diminuir a insônia.
Santo remédio à base de sustenidos e bemóis
por Sérgio Augusto
Ruim da cabeça? Angústia? Depressão? Estresse? Hipertensão? Tiques nervosos?
O divã pode ser uma solução; Prozac, Zoloft, Lexotan, Rivotril, betabloqueadores também; mas o único tratamento sem contraindicação para todos esses e outros males é a música. Seus efeitos colaterais praticamente inexistem, embora crianças assustadiças não devam ser submetidas às cortantes violinadas que Bernard Herrmann compôs para o assassinato de Janet Leigh em Psicose, sob pena de perderem o sono ou, pior ainda, sofrerem um ataque de "epilepsia musicogênica" semelhante ao que vitimou um crítico musical do século 19, chamado Nikonov, em quem a ópera O Profeta, de Meyerbeer, sempre provocava convulsões. Mas patologias como a de Nikonov são raríssimas.
Música é uma bênção para o corpo e o espírito. Pura superstição aquela história de que Tristão e Isolda poderia enlouquecer seus ouvintes mais delicados. Por ir fundo às mais recônditas regiões da psique, ativando quase todo o cérebro humano, dos centros nervosos sensitivos ao córtex pré-frontal, cerebelo, hipocampo e córtex motor, a música mexe com as atividades racionais, as emoções, a memória e os movimentos do corpo humano. Indutora de dopamina, serotonina e adrenalina, ela emociona, acalma, relaxa, enleva, consola, inspira, levanta o ânimo e excita ("Ouvimos música com os nossos músculos", apregoava Nietzsche). Já se desconfiava disso desde, pelo menos, Platão.
A musicofilia é inata no ser humano. A fala, aliás, teria derivado, segundo Darwin, da música primal que nossos ancestrais semi-humanos usavam para atrair um parceiro. Os hominídeos paleolíticos já cantavam, comprovou Steven J. Mithen em seu estudo sobre a origem da música, da linguagem, da mente e do corpo, The Singing Neanderthals (Harvard University Press), publicado em 2005.
Assim como a inteligência nada tem a ver com a sensibilidade musical (do contrário, Nabokov e João Cabral de Melo Neto, dois notórios ouvidos de chumbo, não teriam feito o que fizeram), a burrice nunca foi empecilho para o desenvolvimento de algum tipo de musicalidade, ativa e passiva. Oliver Sacks refere-se a um retardado mental que sabia de cor duas mil óperas, era um "dicionário de música ambulante" e assim foi definido num capítulo de O Homem Que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, reaparecendo, com maior destaque, no recente Alucinações Musicais - Relatos sobre a Música e o Cérebro, também traduzido pela Cia. das Letras.
Muito se progrediu desde as especulações de William James sobre a nossa "suscetibilidade à música" (e suas propriedades sedativas, consolativas e emocionais) e o hype em torno do Efeito Mozart (as crianças ficariam mais inteligentes, as galinhas poriam mais ovos e as vacas dariam mais leite se expostas a longas audições de sinfonias e concertos do Wolfgang Amadeus). Sobretudo no campo científico, graças à dobradinha neurociência-informática, que tornou possível estudar e monitorar a complexa orquestração dos milhões de neurônios que compõem o cérebro.
Datam de meados dos anos 1960 as primeiras observações de Sacks sobre os efeitos da música em pacientes com doença de Parkinson. O estudo pioneiro de Macdonald Critchley e R.A. Henson sobre as relações da música com o cérebro, Music and the Brain, foi publicado em 1977. Mas as pesquisas nesse campo atingiram novo patamar na Universidade Médica Paracelsus de Salzburgo, na Áustria, onde a dra. Vera Brandes implantou um programa de pesquisas sobre música e medicina. Com ela, a musicoterapia ganhou (ou está prestes a ganhar) uma farmacologia.
Nada em frascos, bem entendido. Nem comprimidos, nem cápsulas, nem gotas, nem injeções de Beethoven (ou de Mantovani), nem emulsões de Scott Joplin ou soros hardrock punk estão previstos. Florais de Bach? Já bastam os que o dr. Edward Bach legou à homeopatia. O que de benéfico Johann Sebastian nos tem a oferecer está em suas fugas — e, a exemplo dos benefícios à saúde proporcionados por outros músicos e compositores, contido num artefato de armazenamento digital de áudio. É "remédio" de aplicação exclusivamente auricular, capaz de fazer nosso cérebro zunir com intensa atividade neural.
"Ouvir música de qualidade e frequentar concertos com certa regularidade rejuvenesce as pessoas", promete o dr. Michael F. Roizen, do Wellness Institute da Clínica de Cleveland, que admira e acompanha o trabalho da dra. Brandes. "Música de qualidade alivia o estresse, retarda o envelhecimento das artérias e ajuda a enfrentar fatores ambientes adversos e cancerígenos, benefícios que assistir a competições esportivas, por exemplo, não oferece", assegurou ele no congresso Mozart & Ciência, realizado em Viena, em novembro passado.
Até pode ser, mas o conceito de "música de qualidade" é relativo. O produtor de discos e neurocientista Daniel J. Levitin, autor de um livro excelente e delicioso de ler sobre o funcionamento do cérebro sob o efeito de sons harmoniosos e dissonantes, This Is Your Brain on Music (Palmer, 2006), tem uma visão bem mais eclética da sedução e da eficácia terapêutica da música. Suas análises não se limitam aos clássicos; cobrem também o jazz, o pop e o rock; de Abdul (Paula) a Zeppelin (Led). A música que me encanta e constaria da minha receita pode não ser a mesma de que o prezado (& angustiado & deprimido & estressado) leitor prefere e talvez precise aplicar em sua complexa máquina cognitiva.
Os mais estranhos sortilégios da música estão registrados em toda parte. Em seu último livro, Oliver Sacks registra dois casos extremos de musicofilia: o de um ortopedista que aprendeu música depois de atingido por um raio e o de um musicólogo inglês que teve toda a memória apagada, menos a musical. Tony Cicoria, o ortopedista atingido por um raio, saiu do choque com uma vontade louca de ouvir piano, especialmente Chopin, e em questão de meses, partindo do zero, transformou-se num pianista. Clive Wearing, o musicólogo que uma infecção meningocócica condenou à amnésia, não se lembra de nada, só das músicas que ouviu desde a infância. O próprio Sacks recuperou-se das dores num joelho avariado nas montanhas norueguesas ouvindo repetidas vezes o Concerto para Violino, de Mendelssohn.
A dra. Vera Brandes, ex-produtora de shows e concertos, responsável pelos célebres improvisos ao piano de Keith Jarrett em Colônia, em 1975, descobriu sua vocação para farmacologista musical ("a primeira do ramo", vangloria-se) quando se recuperava de um acidente de carro. Dividia o quarto do hospital com um budista, cujos parentes e amigos já entravam no recinto cantando e dançando. Vera sarou em duas semanas. A previsão era de meses.
"Só pode ter sido efeito da música", matutou. E começou a desenvolver "medicações" em forma de música, pesquisando, misturando e balanceando temas, ritmos, timbres e sonoridades, em "compostos medicinais". Primeira cobaia: sua mãe, vítima de câncer. Não a curou, claro, pois o poder de toda a escala musical não chega a tanto, mas ela durou muito mais tempo do que o previsto pelos médicos.
Para comercializar sua teoria, a dra. Brandes criou uma empresa, Sonoson, especializada em montar sistemas musicais personalizados para clínicas, que chegarão aos mercados alemão e austríaco no segundo semestre deste ano e ao americano, em 2010. Funciona assim: o paciente, depois de diagnosticado por seu médico, recebe uma espécie de iPod abarrotado de músicas, testadas em laboratório e com estímulos específicos, mais um fone de ouvido e um medidor de pulso para registrar batimentos cardíacos e outros índices fisiológicos. Parece musak de manipulação, homeopatia sonora, e é inútil, alerta a doutora, no combate a patologias complicadas e doenças infecciosas, mas tiro e queda para desordens psicossomáticas e o que ela qualifica de "doenças da civilização": ansiedade, depressão, insônia e certos tipos de arritmia.
Experiência similar ocorreu ao psicólogo americano Jeff Berger, que, a partir de dados sobre as influências da atividade musical no cérebro, fornecidos pelo dr. Gottfried Schlaug, neurologista da Escola de Medicina de Harvard, criou na internet uma emissora de rádio alternativa (sourcetone.com), "o primeiro serviço de saúde musical do mundo". Seu objetivo é promover o relaxamento, aumentar o vigor, estimular a criatividade e restaurar a felicidade dos ouvintes. Não tive tempo suficiente para testar sua eficácia. Cliquei a opção calmo/tranquilo, e na caixa de som do meu computador entrou Sade (Bullet Proof Soul), a seleção Rhythm & Blues, e , depois, Debussy (a seleção clássicos do século 20) e Joni Mitchell (jazz vocal). Não fiquei mais relaxado, nem mais criativo (de que este texto é uma prova cabal), mas meus tímpanos não se sentiram agredidos, um consolo.
Tentarei mais uma vez. Já me darei por satisfeito se diminuir a insônia.
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