Resolvi guardar esta interessante entrevista publicada no jornal "Folha de S.Paulo" de domingo, 15 de junho de 2008, no caderno "+Mais". Um exercício de futurologia bastante viável.
A sagração da web
Pai da internet, Vinton Cerf diz que celulares ultrapassarão computadores como meio de acesso e prevê um novo conceito para definir a rede
DA REDAÇÃO
Vinton Gray Cerf prega a disseminação da internet. Esse é seu cargo na corporação Google, líder nesse mercado: evangelista-chefe de internet, além de vice-presidente.
Mas Cerf, 64, é mais conhecido como pai da internet, por haver criado, com Robert Kahn, os protocolos TCP/IP, parte da estrutura básica de funcionamento da rede mundial — em breve interplanetária, se depender dele- de computadores.
Na entrevista abaixo, concedida a Michel Alberganti, do jornal "Le Monde", ele fala sobre a evolução da web e suas perspectivas, incluindo a integração de objetos do cotidiano.
PERGUNTA - O sr. fez parte do grupo que conceituou a internet. Como vê a evolução da rede mundial?
VINTON CERF - Hoje em dia, muito mais gente tenta inovar na internet. Para descrever seu modo de evolução atual, muitas vezes recorro ao modelo do formigueiro. Caso você observe duas ou três formigas ao longo de todo um dia, é provável que pouco aconteça de interessante. Mas há milhões delas no formigueiro.
E, a cada dia, uma ou duas formigas descobrem alguma coisa que beneficiará todas. A internet funciona assim. Com quase 1,3 bilhão de usuários — o equivalente a cerca de 20% da população mundial —, novas experiências são realizadas a cada dia.
Fico sempre um pouco febril ao ler as páginas de negócios da imprensa, porque muitas vezes descubro ali que alguém inventou um novo uso para a internet, ao qual teremos de nos adaptar, uma vez mais.
PERGUNTA - Como a web 2.0 contribui para novos usos da rede (blogs, chats, trocas de arquivo)?
CERF - A meu ver, o termo "web 2.0" é basicamente um slogan de marketing. Dá a entender que uma nova geração da web apareceu.
Acredito, em lugar disso, que a internet se transforma de acordo com um modelo de coevolução. Interage com tudo que a cerca e, então, se adapta. As novas aplicações levam a rede aos seus limites e forçam a criação de novas soluções técnicas.Isso posto, devo reconhecer que certas inovações associadas à web 2.0 são um fato.
No passado, os primeiros sistemas de troca de informações entre empresas não funcionavam bem por falta de padronização — e foi isso exatamente que a web 2.0 veio a fornecer.
E o avanço chegou em um bom momento. Nos EUA, os grandes investimentos realizados para enfrentar o bug do milênio, antes de 2000, permitiram automatizar a atividade interna das empresas.
Resta efetuar a etapa seguinte: automatizar o intercâmbio de informações entre empresas. E que melhor ferramenta para isso do que a internet?
PERGUNTA - Os internautas se beneficiarão desses intercâmbios?
CERF - Os consumidores já interagem com empresas via internet. Isso acontece, o mais das vezes, na realização de transações, com confirmação por e-mail. Mas as empresas muitas vezes precisam reescrever a mão os pedidos dos internautas para transmiti-los a seus parceiros.
É essa parte do processo que é preciso automatizar. E é perfeitamente possível fazê-lo, graças a aplicativos como o Google Earth ou o Google Maps, que foram concebidos de maneira a permitir que outras empresas os integrem a seus serviços de web próprios.
Dessa forma, os cientistas podem localizar via Google Earth as posições dos sismógrafos em sua rede internacional de prevenção de terremotos. Para obter acesso aos dados, basta clicar sobre o ícone que representa cada estação.
Cada vez mais os pesquisadores podem, dessa forma, trabalhar juntos, ao aglutinar diferentes redes de sensores independentes e ao correlacionar suas informações com a geografia e a climatologia.
PERGUNTA - E quanto ao comércio eletrônico?
CERF - Tomemos por exemplo uma empresa que disponha de uma lista de apartamentos para alugar em Dallas, no Texas.
Ela pode inserir essas informações no Google Maps. Quando uma pessoa está procurando casa, o banco de dados da imobiliária mostra todos os apartamentos que atendam aos critérios especificados. Uma empresa assim estaria utilizando os recursos da web para aumentar o valor de suas informações.
PERGUNTA - Podemos esperar aplicações semelhantes para celulares?
CERF - Com certeza. Trata-se de um objeto que a pessoa carrega aonde quer que vá. Pode-se,
nesse caso, apresentar perguntas que não fariam sentido caso o sistema de informação associado desconhecesse sua localização. Procurar o cinema mais próximo, por exemplo.
Os aparelhos móveis abrem as portas à obtenção de informações geograficamente indexadas de grande valor. Já existem 3 bilhões de celulares no mundo, dos quais 15% são capazes de acesso à internet, ou seja, quase meio bilhão de aparelhos. No futuro, para fração significativa da população, o primeiro contato com a internet acontecerá via celular, e não pelo computador.
PERGUNTA - Usar o celular torna menos confortável a utilização da internet?
CERF - À primeira vista, sim. A tela não tem tamanho parecido. Quanto ao teclado, seria ótimo se nós tivéssemos dez centímetros de altura. Mas quase todos nós somos maiores.
É preciso, assim, imaginar novas práticas. O celular que possa detectar a presença de uma tela de computador no local — não haveria motivo para que a informação não pudesse ser transmitida para ela e exibida. O mesmo vale para um teclado sem fio.
As pessoas estão tão acostumadas a usar a internet com um aparelho por vez que nem imaginam que um celular poderia se tornar o coração de uma pequena rede.
PERGUNTA - Que impacto isso terá sobre a vida cotidiana?
CERF - Imagine esse tipo de uso do celular em um automóvel. Os carros muitas vezes dispõem de receptores GPS e de instrumentos que indicam, por exemplo, quanto resta de gasolina. O importante é que o celular possa conectar o carro à internet. E isso funciona nos dois sentidos. O carro obterá informações da web e as fornecerá à rede.
Sua velocidade, por exemplo, pode ser transmitida sem identificação de identidade para a rede, que a usará para avaliar condições de tráfego naquele percurso a fim de orientar outros veículos.
PERGUNTA - O que o sr. está descrevendo não se enquadraria já à web 3.0, a internet dos objetos?
CERF - Decerto. A internet dos objetos permitirá, em geral, delegar a terceiros a gestão de objetos. Será possível dirigir a sites de serviços pedidos como "gravar tal filme", sem ter de procurar por ele em diferentes programas. As máquinas se encarregarão. Elas se comunicarão entre si para determinar quando o filme será exibido, a fim de gravá-lo para nós.
Bilhões de objetos disporão, assim, de capacidade de comunicação mútua. Isso permitirá mascarar a complexidade da tecnologia que estará em ação.
Tudo se passará nos bastidores.
— Este texto foi publicado no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci.
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