domingo, 21 de setembro de 2008

Billie, Monk & Getz

Texto publicado na "Folha de S.Paulo" de 21/setembro/2008, caderno "+Mais!"

+Cultura
O escritor japonês Haruki Murakami relembra três das maiores lendas do jazz

O perdão de Billie
por Haruki Murakami

Eu ouvia muito Billie Holiday quando era jovem e a achava comovente. Mas só fui apreciar de fato o quanto era maravilhosa mais tarde, quando estava bem mais velho. Acho que isso quer dizer que envelhecer traz, sim, algumas compensações. Nos velhos tempos, eu ouvia a música gravada por Billie na década de 1930 e no início da de 1940.

Naqueles anos, sua voz era jovem e nova, e Billie lançava uma canção após outra, a maioria relançada mais tarde pela Columbia nos EUA.

Essas canções eram repletas de imaginação e vôos melódicos acrobáticos. O mundo inteiro dançava no ritmo do suingue de Billie Holiday.

Quero dizer que o planeta se mexia, de fato. Não estou exagerando. Estamos falando aqui de magia, não simplesmente arte. O único outro músico que conheço que possuía virtuosismo tão mágico foi Charlie Parker.

O eu mais jovem não ouviu com tanta atenção as gravações posteriores de Billie Holiday, sua fase na Verve, canções que ela gravou quando as drogas tinham endurecido sua voz e corroído seu corpo.

Ou talvez, quem sabe, eu tenha mantido distância consciente delas. Eu achava suas canções daquela era, especialmente as dos anos 1950, dolorosas, opressivas, patéticas. À medida que fui passando pela casa dos 30 anos e depois dos 40, porém, me vi colocando esses discos na vitrola com freqüência cada vez maior.

Sem me dar conta disso, eu estava começando a sentir desejo e necessidade, física e emocional, daquela música.

O que havia nas canções posteriores de Billie Holiday -canções que poderíamos descrever como alquebradas- que eu era cada vez mais capaz de escutar e que eu não escutara antes? Ando pensando muito sobre isso. Por que essas canções passaram a exercer atração tão poderosa sobre mim?

"Está tudo bem"

Entendi recentemente que a resposta talvez envolva a idéia de "perdão". Quando ouço as canções posteriores de Billie Holiday, posso senti-la abrindo os braços para abraçar os corações das muitas pessoas que magoei ao longo de minha vida e dos meus escritos, as pessoas que sofreram devido a meus muitos erros, e aproximando-as dela. "Está tudo bem", ela canta para mim.

Deixe estar. Isso não tem nada a ver com "curar feridas" - não estou sendo curado de modo nenhum. É perdão, puro e simples.

Sei que essa interpretação da música de Billie Holiday é profundamente pessoal. Eu jamais sugeriria que ela se aplica a todos. É por isso que recomendo sua maravilhosa coleção lançada pela Columbia. Se eu tivesse que escolher uma só canção dela, seria sem dúvida alguma "When You're Smiling". O solo de Lester Young no meio também é um deleite, um trabalho de gênio.
"Quando você está sorrindo, o mundo inteiro sorri com você."E o mundo sorri, de fato. Você pode não acreditar, mas é verdade - ele fica radiante!

Thelonious mágico
por Haruki Murakami

Em certa etapa de minha vida eu me sentia atraído pela música de Thelonious Monk, como por uma atração fatídica. A cada vez que ouvia o som inconfundível de seu piano - como um cinzel golpeando gelo duro em algum ângulo estranho, mas eficaz-, eu suspirava: "Isso sim é jazz!". Ela me alegrava e inspirava.

Mesmo hoje, um cenário em especial me conecta com Monk: café preto forte, um cinzeiro repleto de pontas de cigarro, um conjunto de grandes alto-falantes JBL, um romance parcialmente lido (pode ser algo de Georges Bataille ou William Faulkner), o primeiro suéter do outono, a solidão friorenta de um pequeno café onde se toca jazz.

Ainda adoro imaginar essa cena. Talvez ela tenha pouca ligação com qualquer coisa que tenha acontecido de fato, mas está preservada em minha memória, perfeitamente equilibrada, como uma foto bem composta.

A música de Monk era obstinada e doce, intelectual e excêntrica; entretanto, por alguma razão que nunca fui capaz de identificar, ela sempre acertava o alvo em cheio.Era como um "homem misterioso" que aparece sem aviso prévio, coloca algum objeto incrível sobre a mesa e então some sem dizer palavra.

Ouvir a música de Monk quando se está sozinho é como abraçar algo misterioso. Miles Davis e John Coltrane foram músicos de genialidade espantosa, mas nenhum deles foi um homem misterioso, nesse sentido do termo.

Não me recordo bem quando foi que a música de Monk começou a perder seu brilho original, quando o mistério deixou de ser mistério. Assim como o próprio Monk foi lentamente sumindo na névoa, sem que eu me desse conta disso, o mesmo aconteceu com o equilíbrio e a aura de mistério do cenário do qual ele fizera parte. Então veio a incoerência daquela menos heróica das eras, os anos 1970.

Comprei o LP de título simétrico de Monk, "5 by Monk by 5", numa loja chamada Marumi Records, perto do santuário Hanazono, em Shinjuku, no centro de Tóquio. Era um disco importado - logo, bastante caro para mim, em vista do estado de minha carteira.

Solidão

Ouvi "5 by Monk by 5" inúmeras vezes, sem nunca me entediar. Cada nota, cada frase musical, era tão rica, tão repleta de alimento, que era possível espremê-la mais e mais, sem que seu sumo se esgotasse. E eu, com o privilégio especial que às vezes acompanha a juventude, absorvi cada gota dele em minhas próprias células.

A música de Monk tocava constantemente em minha cabeça, mesmo quando estava simplesmente andando na rua. Mas nunca pude explicar a ninguém a razão do grande amor que sentia por Monk. Parecia que as palavras certas para isso não existiam.

Então me dei conta: essa é uma das formas mais intensas que a solidão pode assumir.Mas não havia problema. Sim, eu estava só, mas estava bem assim. Hoje me parece que, naquela época, eu estava determinado a reunir todas as formas de solidão possíveis. Ao mesmo tempo em que fumava uma montanha de cigarros.

O anjo Stan Getz
por Haruki Murakami

Stan Getz foi um homem complexo, emocionalmente problemático, cuja vida dificilmente poderia ser descrita como feliz ou tranqüila. Seu ego era como um trator, enquanto seu corpo era corroído constantemente por quantidades maciças de álcool e drogas.Na verdade, praticamente não conheceu um momento de paz desde o dia em que nasceu até o dia de sua morte.

Quase sempre, feriu as mulheres de quem se aproximou, e seus amigos acabaram se afastando dele, enojados.

Porém, por mais violenta que possa ter sido a vida do Stan Getz de carne e osso, a doce magia que animava sua música, como o bater de asas de anjos, nunca se enfraqueceu. Quando pisava no palco, com o instrumento nas mãos, todo um novo mundo nascia.Como o pobre rei Midas, cujo simples toque transformava tudo em ouro.

Podemos enxergar ouro, também, nas melodias brilhantes que estão no cerne da música de Getz. Por mais quente que fosse o refrão fora do tempo que ele estivesse criando, sempre era espontaneamente lírico e brilhante.

Como um cantor abençoado por Deus com uma voz perfeita, Getz manipulava seu sax tenor com virtuosidade absoluta, tecendo versos de clareza transcendente, sem palavras. A história do jazz já teve inúmeros saxofonistas, mas nenhum outro foi capaz de tocar com tanta intensidade e paixão quanto Getz, sem descambar para o sentimentalismo barato.

Ao longo dos anos já mergulhei e me perdi em muitos romances e me deixei enfeitiçar por muitas performances de jazz. Mas, para mim, F. Scott Fitzgerald sempre será sinônimo de "o romance" e Stan Getz, de "jazz". Pensando bem, há certas semelhanças entre os dois homens.

Crueldade

A arte de cada um deles tinha vários defeitos evidentes -isso é algo que deve ser dito claramente. Mas, se não tivessem pago o preço desses defeitos, é pouco provável que nos legassem obras de beleza tão duradoura.

De todas as obras de Getz, minha favorita é o álbum duplo gravado ao vivo no clube de jazz Storyville em 1951 [pelo selo Blue Note]. Getz realmente se supera nessa performance: cada faceta de sua arte é magnífica.

Experimente ouvir, por exemplo, a faixa intitulada "Move". A seção rítmica de Al Haig, Jimmy Rainey, Teddy Kotick e Tiny Kahn é perfeita, direta e cool, mas seu ritmo flui com a força incandescente de lava subterrânea.

Mesmo assim, Getz é de longe o melhor. O que explica essa força?

É que suas melodias despertam o bando de lobos famintos que cada um de nós esconde na alma. O hálito delas afunda na neve tão espessa, branca e linda que você tem a impressão de que poderia cortá-la com uma faca. É isso o que a música de Stan Getz nos permite contemplar: a crueldade fatídica oculta nas selvas impenetráveis de nossas almas.

- A íntegra destes textos saiu na "Believer". Traduções de Clara Allain.

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