sábado, 25 de junho de 2011

Hoje, a memória musical vai até a esquina

Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo", de 25/junho/2011, caderno "Opinião"

De todos os tempos
por Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - O site da revista britânica "NME" -"New Musical Express"- perguntou a seus leitores quais eram os "20 maiores cantores de todos os tempos". Dez milhões de pessoas responderam. Deu Michael Jackson na cabeça, seguido por Freddie Mercury, Axl Rose, John Lennon, David Bowie, Robert Plant, Paul McCartney etc. Dos 20, os únicos "antigos" são Ray Charles e Elvis Presley. Todos os outros são pós-1960.

Pelo visto, a música popular não existia até então. Frank Sinatra, por exemplo, de 1939 a 1982 — para quem acha isso importante — ganhou 31 discos de ouro, nove de platina, três de platina dupla, um de platina tripla e dez Grammys. Sua voz foi trilha sonora para mais beijos que a de qualquer cantor no século 20. E nenhum outro foi tão respeitado por músicos e musicólogos. Mas, para os leitores da "NME", ele não existiu.

Bing Crosby, muito menos. Ainda para quem gosta desses números, de 1927 a 1962 o campeoníssimo Bing emplacou 396 gravações nas paradas americanas; Sinatra, 209; Elvis, 149; os Beatles, 68; e nenhum outro roqueiro chegou sequer perto. Dessas, Bing pôs 38 no 1º lugar; os Beatles, 24; Elvis, 18. E calcula-se que, somente até 1980, Bing tenha vendido 400 milhões de discos. Mas, para os leitores da "NME", ele também não existiu.

Assim como não existiram Al Jolson, Louis Armstrong, Bessie Smith, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Judy Garland, Nat "King" Cole, Billy Eckstine, Mel Tormé, Peggy Lee, Doris Day, Sarah Vaughan, Tony Bennett e muitos mais, que construíram a canção americana. Cantores de outras línguas, como Carlos Gardel, Charles Trenet, Orlando Silva, Edith Piaf, Amália Rodrigues, João Gilberto, nem pensar.

A noção de "todos os tempos" dos leitores da "NME" é deliciosamente curta — vai só até a esquina. Além desta, há apenas uma caverna escura e sem fim.