Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 27/março/2010, na seção "Opinião"
Deixadas no passado
por Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Elas podem ser vistas, dignas e lindonas, na plateia de colegas mais jovens, e você imagina que estão ali na condição de fãs desprendidas das novas gerações. Mas não é sempre assim. Mais provável que estejam tentando atrair a atenção de um produtor ou de um agente que lhes dê trabalho —o primeiro, talvez, em seis meses ou um ano de silêncio profissional.
No Rio e em São Paulo, dezenas de grandes cantoras do passado vivem hoje os piores momentos de suas carreiras, esquecidas pela mídia e ignoradas pelos produtores. As mais felizes, que conservaram um apartamentinho próprio, estão livres do aluguel, mas o condomínio já tem um ou dois anos de atraso. Muitas se seguram com uma aposentadoria que mal lhes paga a comida e os remédios. O plano de saúde, vitimado pela inadimplência, há muito que foi para o espaço. Algumas estão vivendo de cestas básicas doadas por amigos.
Não se trata de senhoras que, pela idade, já estariam, se quisessem, no Retiro dos Artistas, mas de mulheres vaidosas, ainda com a voz inteira, em perfeitas condições de trabalhar. Acontece de uma delas conseguir, de surpresa, uma noite num clube ou teatro mais privilegiado e não ter dinheiro para ajeitar o cabelo ou recauchutar o velho vestido.
Seus agentes alegam que esse tipo de oportunidade —aparições relâmpago em casas noturnas— é cada vez mais raro. As grandes casas só querem saber de "projetos" ambiciosos, para interessar os suspeitos de sempre, os patrocinadores. E estes, visando imprensa ou retorno, só reconhecem os nomes de hoje, e não se impressionam se Fulana ou Beltrana foi uma estrela, digamos, da bossa nova.
Sim, elas não são contemporâneas de Chiquinha Gonzaga, mas cantoras que, até outro dia, estavam construindo o futuro da música popular. O futuro chegou, e elas não têm vez nele.
sábado, 27 de março de 2010
domingo, 14 de março de 2010
“Pai da Bossa Nova”
Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 14/março/2010, no caderno "The New York Times"
Johnny Alf, 80, um "pai da bossa nova"
por Larry Rohter, "The New York Times"
Tradução: Eloise De Vylder
Embora não fosse muito conhecido fora do Brasil e tenha desfrutado de uma popularidade intermitente em sua terra natal, Alf é muito admirado por músicos e musicólogos brasileiros
Johnny Alf, 80, um "pai da bossa nova"
por Larry Rohter, "The New York Times"
Tradução: Eloise De Vylder
Embora não fosse muito conhecido fora do Brasil e tenha desfrutado de uma popularidade intermitente em sua terra natal, Alf é muito admirado por músicos e musicólogos brasileiros
O influente compositor, pianista e cantor brasileiro Johnny Alf, cuja música delicada foi precursora da bossa nova, morreu em 4 de março em Santo André, no ABC paulista. Ele tinha 80 anos e morava em São Paulo. A causa da morte foi um câncer na próstata, disse seu agente, Nelson Valência.
Embora não fosse muito conhecido fora do Brasil e tenha desfrutado de uma popularidade intermitente em sua terra natal, Alf, nascido Alfredo José da Silva, é bastante admirado por músicos e musicólogos brasileiros. O escritor Ruy Castro, autor de vários livros de referência sobre a música popular brasileira, chamou-o de “o verdadeiro pai da bossa nova”.
Alf foi contemporâneo de Antonio Carlos Jobim, João Gilberto e outros que transformaram a bossa nova num fenômeno mundial, mas ele começou sua carreira mais cedo e passou meados da década de 50 tocando no chamado Beco das Garrafas, uma rua em Copacabana cheia de bares e clubes noturnos. Seus fãs mais jovens entravam nesses bares para ouvi-lo tocar e estudar sua técnica e estilo cheio de improvisação.
“Foi com ele que aprendi todas as harmonias modernas que a música brasileira começou a usar na bossa nova, no samba-jazz e nas músicas instrumentais”, disse o pianista e arranjador João Donato na sexta-feira (12). O violonista e compositor Carlos Lyra acrescenta: “Ele abriu as portas para nós com seu jeito de tocar piano, com sua influência do jazz. Quando minha geração chegou, ele já havia plantado as sementes.”
Alfredo José da Silva nasceu no bairro de Vila Isabel no Rio de Janeiro, um reduto do samba, em 19 de maio de 1929. Seu pai era soldado do Exército, sua mãe dona-de-casa. Ele começou a estudar piano aos 9 anos, concentrando-se num repertório clássico. Mas sua paixão por filmes americanos o levou para longe dos clássicos e aproximou-o do jazz, uma mudança que ele descreveu mais tarde em uma divertida composição chamada “Seu Chopin, desculpe”.
Alf começou a tocar profissionalmente aos 14 anos, quando assumiu seu nome de palco americanizado. Ele ajudou a fundar um fã-clube de Frank Sinatra no Rio e também admirava George Gerswhin e Cole Porter. Mas sua maior influência, como pianista e cantor, foi provavelmente Nat King Cole, cujo vocal suave, o toque sensível e os acordes sofisticados combinavam bem com o jeito quieto, e até mesmo tímido, de Alf.
“Sempre toquei no meu estilo próprio”, disse Alf numa entrevista no ano passado para o jornal Folha de S. Paulo. “Tive a ideia de misturar a música brasileira com o jazz. Tento misturar tudo para atingir um resultado agradável.”
Em seu melhor, a música de Alf tinha um jeito leve e aéreo que expressava o otimismo e a alegria de viver que os brasileiros consideram uma das características nacionais. Isso se reflete não só no título de sua música mais conhecida, “Eu e a Brisa”, mas também em sucessos como “Ilusão à Toa” e “Céu e Mar”, assim como em “O Tempo e o Vento” e “Rapaz de Bem”, um single de 78 rpm lançado em 1955 e agora visto por muitos como os primeiros registros gravados da bossa nova.
Mas, cansado da vida agitada do Rio, mudou-se para São Paulo em meados dos anos 60 e aceitou um emprego de professor num conservatório. Depois disso, embora continuasse a se apresentar regularmente, ele passou a gravar apenas esporadicamente. Em 1990, ele gravou “Olhos Negros”, um CD amplamente elogiado, em que predominam duetos com uma segunda geração de admiradores, incluindo Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Gal Costa.
De acordo com reportagens da imprensa brasileira, Alf não deixou herdeiros imediatos.
“Pelo menos não serei completamente esquecido”, disse ele no ano passado. “Minha música sempre foi considerada difícil. As gravadoras percebiam o valor da minha música, mas ela nunca teve o apelo comercial que elas gostariam.”
sábado, 6 de março de 2010
R.I.P. Johnny Alf
Texto publicado no jornal "Folha de S.Paulo" de 6/março/2010, caderno "Opinião"
Rapaz de bem
por Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Em dezembro, Leny Andrade e Alayde Costa fizeram um show em homenagem a Johnny Alf no teatro Ginástico. Foram duas horas de amor, em que Leny e Alayde falaram de Johnny e cantaram seus clássicos e canções obscuras. Todos sabiam que sua saúde estava por um fio, mas não se pronunciou a palavra morte.
Não era necessário. Ali se tratava de celebrar a música, a beleza, o talento, a vida. Fazia-se por Johnny Alf o que deveria ter sido feito com frequência e em todos os anos: promover recitais, concertos e canjas com seus sambas — "Ilusão à Toa", "Rapaz de Bem", "Céu e Mar", "O Que é Amar", "Disa", "Fim de Semana em Eldorado", "Nós", "Eu e a Brisa" e muitos outros.
Mas não aconteceu assim, e Johnny morreu sem a consagração que bafejou em vida vários de seus contemporâneos, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Baden Powell. Duas opiniões meio correntes acham que isso se deu por "racismo" (Johnny era negro) ou por Johnny ter trocado o Rio por São Paulo nos anos 50, antes da explosão da bossa nova (que ele ajudara a construir).
Será? Dolores Duran, o saxofonista Paulo Moura, Jorge Ben, Gilberto Gil e o próprio Baden não eram arianos, e isso não os impediu de vencer na bossa nova. E quem também saiu do Rio antes de o movimento explodir foi João Donato. Que se mudou até para mais longe: Los Angeles, onde ficou 13 anos. Pois Donato voltou em 1972, reassumiu sua cátedra e hoje é maior do que nunca.
Johnny não se sentia com uma cátedra a retomar. Por modéstia, dispensava tudo o que lhe ofereciam. Nas entrevistas, falava mais de suas admirações (Tom, entre elas) do que de si próprio. Não pedia nada para si. Era completo com sua arte. Quem fracassou fomos nós, que não soubemos dizer ao mundo o artista que tínhamos à mão.
Rapaz de bem
por Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Em dezembro, Leny Andrade e Alayde Costa fizeram um show em homenagem a Johnny Alf no teatro Ginástico. Foram duas horas de amor, em que Leny e Alayde falaram de Johnny e cantaram seus clássicos e canções obscuras. Todos sabiam que sua saúde estava por um fio, mas não se pronunciou a palavra morte.
Não era necessário. Ali se tratava de celebrar a música, a beleza, o talento, a vida. Fazia-se por Johnny Alf o que deveria ter sido feito com frequência e em todos os anos: promover recitais, concertos e canjas com seus sambas — "Ilusão à Toa", "Rapaz de Bem", "Céu e Mar", "O Que é Amar", "Disa", "Fim de Semana em Eldorado", "Nós", "Eu e a Brisa" e muitos outros.
Mas não aconteceu assim, e Johnny morreu sem a consagração que bafejou em vida vários de seus contemporâneos, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Baden Powell. Duas opiniões meio correntes acham que isso se deu por "racismo" (Johnny era negro) ou por Johnny ter trocado o Rio por São Paulo nos anos 50, antes da explosão da bossa nova (que ele ajudara a construir).
Será? Dolores Duran, o saxofonista Paulo Moura, Jorge Ben, Gilberto Gil e o próprio Baden não eram arianos, e isso não os impediu de vencer na bossa nova. E quem também saiu do Rio antes de o movimento explodir foi João Donato. Que se mudou até para mais longe: Los Angeles, onde ficou 13 anos. Pois Donato voltou em 1972, reassumiu sua cátedra e hoje é maior do que nunca.
Johnny não se sentia com uma cátedra a retomar. Por modéstia, dispensava tudo o que lhe ofereciam. Nas entrevistas, falava mais de suas admirações (Tom, entre elas) do que de si próprio. Não pedia nada para si. Era completo com sua arte. Quem fracassou fomos nós, que não soubemos dizer ao mundo o artista que tínhamos à mão.
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